sexta-feira, dezembro 22, 2006

Regresso ás memorias, é natal…

…É natal. Não se sente ainda o cheiro mas é natal. É natal na minha ilha. É natal nas ruas, é natal nas montras, é natal no frio que está chegando.
O natal, cada vez começa mais cedo, perde a graça. Nunca passei um natal na minha ilha, dou-me conta que nunca lá passei o natal. Hoje ao andar na auto-estrada pensei no natal, é por lá enquanto conduzo, que as palavras assomam ao pensamento, as memórias me assaltam de repente. Nunca passei um natal na minha ilha, mas tenho um que recordo todos os natais. Não é bem recordar, guardo-o no pensamento desde miúdo porque vivo com esse natal em mim. Quem sabe, hoje ao escreve-lo aqui nas minhas memórias avanço e me liberto desse natal…quem sabe…


Tinha seis anos e vivia na minha ilha, eu chamo-lhe a minha ilha mas de minha não tem rigorosamente nada, sou um estranho por lá, mas são as minhas memórias mais longínquas que por lá se perdem e se perdem de mim também. É a minha ligação umbilical no ventre da mãe à ilha porque ali podia ter nascido, ali fui gerado, ali se amaram os pais para que eu hoje aqui estivesse a recordar. Tinha seis anos e fazia sete no dia de início da escola. Nunca tive em pequeno uma festa de anos, calhava num dia mau, e também não tinha miúdos para fazer uma festa, viver numa ilha é muito reduzido em horizontes, éramos 5 crianças, eu o mais velho, as coisas não eram fáceis naquele tempo, assim porque o meu tempo se aproximava vim passar o verão de férias para casa dos avos no norte, o que para mim era óptimo, todo o dia no rio, conhecia cada pocinha, cada sitio das solhas, cada sitio das enguias, autentico peixe de água. O pai veio em Agosto três semanas, a mãe o mês todo. Depois foram embora com os manos, fiquei eu só. Custou-me a despedida, lembro-me como se fosse hoje. O pai não tinha carro, e foi numa carrinha ford transit de um senhor da terra habituado a levar pescadores. Fiquei sentado no portão da entrada na estrada a olhar o rio e o mar em frente, essa noite foi de silêncio interior em mim, um vazio enorme. Não me dei conta na altura mas as separações marcam. Senti-me abandonado.


O meu natal desse tempo. O natal que me faz falar de natal hoje foi o natal dos sete anos. Recordo esse natal na casa dos avos maternos, junto ao rio, mesmo na boca da barra, podia ser um natal como os outros, não foi, para mim não foi um natal igual.


O ano da ida a primeira vez para a escola. Antigamente não era como agora. Fui mas não sabia bem ao que ia, todos os dias com uma sacola verde ás costas e uma lousa onde escrevia as primeiras letras. tentava, que nunca tive jeito para aquela escrita na lousa…
Aguentei-me sem os pais, sabia que voltavam em Dezembro pelo natal, mas custava, lembro-me que acordava meio perdido de manhã e só queria morrer, uma tristeza imensa, um vazio, sentia-me abandonado e incompreendido. Depois a bisavó lá me corria porta fora p´rá escola…

O natal era único. A família vinha de muitos lados, os tios vinham da França e traziam as novidades, os brinquedos eléctricos e com comandos para os sobrinhos todos. Quer dizer, quase todos. Até hoje ainda não percebi porque se esqueciam de me trazer um brinquedo.


Mas o natal de antigamente era especial, tinha um cheiro especial, uma luz especial, um luar especial, uma magia que se perdeu. Os natais de agora são achinesados. Não tenho nada contra os chineses, nada mesmo, mas estou farto de luzinhas chinesas dois meses antes do natal nas montras, farto das árvores de natal chinesas, dos pais natais chineses, do espírito chinês para o nosso natal…adiante…


O natal de agora perdeu o brilho. Não acho piada ao natal que nos impingem. Não presto atenção ás prendas, à troca de presentes, nunca fui de receber prendas. Assim não são importantes as prendas para mim. Natal é quando um homem quiser. Para mim pode ser num dia qualquer, menos neste instituído. Cheira-me a falso, porque nos vendem já o natal embalado, cheio de fitas coloridas e de luzes de árvores plásticas, e reis magos chineses, e meninos Jesus chineses, tudo coisas sem vida, sem cheiros, sem aromas, sem calor humano. Uma correria nos shopping’s…


Gostava nesse tempo de sujar as mãos com o musgo, de as cheirar e elas cheiraram a terra orvalhada. De entranhar as unhas com terra. Fazer o presépio com os bonecos comprados na feira de Barcelos. De ir ás pinhas mansas e de as abrir á lareira enquanto a bisavó contava historias, ou o avó comigo sentado numa perna me descrevia as aventuras por Africa e pelo Brasil, e eu já nesse tempo deixava que o meu pensamento fosse a todo o lado, livre puro e inocente. O natal desse tempo tinha um tempo certo de rituais, de preparos. A matança do porco. O desmanche no dia seguinte, as fêveras que eu assava espetadas num pau de loureiro que a bisavó me ia dando. A preparação das carnes nas assadeiras. As toalhas de linho na mesa, as melhores loiças, a abertura do pipo com o vinho especial que o avo sempre todos os anos fazia. A confecção dos doces, o leite-creme, o arroz doce, a aletria amarela e docinha que a avó fazia fantástica que ainda hoje recordo como a melhor aletria que alguma vez comi.


A sexta-feira à noite era sempre o dia de se cozer o pão, a broa de milho feita algumas vezes com o milho que eu levava com a avó ao moinho na freguesia da abelheira e de que hoje só restam as paredes. Gostava de sentir a farinha na masseira, de a amassar com a avó, de a por a um lado a repousar e levedar, a massa marcada em cruz que a avó me deixava fazer com as minhas mãos pequenas a quererem agarrar tudo. O ritual do acender o forno, tarefa sempre do avó, o tirar as brasas, o limpar o forno a preparação da cora na soleira do forno para se coser o bolo de sardinha. A avó sabia fazer uns bolos fantásticos. Uma massa fininha estaladiça, impregnada pela gordura das sardinhas salgadas e demolhadas, a salgadeira sempre cheia de sardinhas amareladas e tão boas.
Ainda vejo a avó a voltear a massa no ar na pequena gamela e depois espalhar na pá de botar ao forno. Gostava de espalmar a massa do bolo do avô, ficavam os meus dedos pequenitos marcados na crosta tostada, dizia sempre: - deixa-me comer o bolo feito pelo meu neto…


Eu também tinha uma pá pequena de botar o pão ao forno, o meu avô tinha-me feito uma. Ele tinha sido carpinteiro enquanto andou imigrado, também tinha um banquinho para tirar o leite ás vacas, e um sacho pequeno para sachar o milho, e uma samarra aos quadrados brancos e pretos com gola de pelo como se usava na altura, e umas chancas compradas na feira de Barcelos. As chancas eram umas botas com a sola de pau, e uns socos como o avó, o avo andava sempre de socos todo o ano, só os tirava para ir á missa ou quando saia, mas era raro sair, dizia-me que já tinha saído demais…O avó era um sábio!


Até hoje não me tinha dado conta da palavra exacta para o que senti na altura, quando os pais se foram embora e me deixaram a chorar no meio da estrada, e isso andou sempre bailando em mim até hoje. Mudou-me o feitio, fechou-me por dentro. Os meus assomos de tristeza, a nostalgia que sinto, a saudade que escrevo vezes demais. O abandono que senti estes dias e me levaram a reflectir neste natal sempre igual em mim. Porque na minha cabeça existe um quadro velho, com um menino sentado na estrada e um carro que se perde na noite ao longe. No carro iam os pais…

…No carro iam os pais, e eu não tenho palavras ainda hoje para explicar o que senti, a dor que ficou gravada em mim. Fiquei ali não sei quanto tempo sentado no chão, lembro que depois me pus a correr atrás do carro pelo meio da estrada. Já não via as luzes mas sabia que para atravessar a ponte tinha que abrandar. Perdi os sapatos, feri os pés, o coração apertadinho, apertadinho, apertadinho. Tinham sido tão penosos os meses anteriores. Andava tão triste e saudoso do colo da mãe, dos mimos da mãe, das brincadeiras com os manos. Os adultos não sabem escutar nem ver o olhar das crianças.

O natal de 66 ficou em mim até hoje, com ele aprendi a saudade, com ele aprendi a ausência, com ele aprendi o abandono, com ele aprendi o ser só rodeado de gente…quem sabe este natal me liberto dele…

João marinheiro, natal de 2006

5 comentários:

Anónimo disse...

Os adultos por vezes fazem coisas que não lhes passa pela cabeça o mal que podem fazer ás crianças. Não gosto do Natal talvez porque a minha infância tenha sido preenchida por situações que me marcaram de tal maneira que fizeram desta época um tempo triste.
Mas tu também tens boas recordações dos teus avós.
O que me chamou a atenção neste teu texto foi falares da tua ilha.
Eu também tenho uma ilha! :)
é para lá que vou todos os anos para recuperar do cansaço da vida...
Foi esta ilha que me ajudou a crescer quando a descobri. É nela que estão grande parte dos meus amigos que me dão força quando estou menos bem.
O Natal lá é diferente. Sinto um aconchego junto daquela gente.
E isto tudo só para te desejar, apesar de tudo, um Bom Natal. Que o passes da melhor forma que encontrares.

Um abraço forte
Sandra C.

Anónimo disse...

Cada um de nós tem a sua história sobre o natal, a sua imagem gravada: a tua é o carro a ir embora.. Escreveste com tanta intensidade que me senti como que a entrar dentro do "teu quadro" e a melancolia que já sinto nestes dias apoderou-se de mim com mais força ainda. E a única coisa que te posso dizer é que esqueças os shoppings, as luzes e os bonecos chineses e te lembres sempre do colo terno da tua mãe, dos cheiros e sabores do azeite, da aletria e do arroz doce.É o unico modo de trazeres ao de cima algo de bom nos teus natais da infância. Temos de o fazer não é? não há modo de fugir João.. por isso deixa-o entrar, de outra maneira menos dolorosa. Posso desejar-te um Feliz Natal na mesma? é com o coração e não porque a quadra obriga. Beijos

Anónimo disse...

Beijos da ana.

...na esperança que nos chegue a Bonança.



Adeus João.

filipelamas disse...

Não há como estas memórias e como as maravilhosas experiências e pensamentos que connosco vais partilhando! Um forte abraço de Boas Festas!

joão marinheiro disse...

Querida Morgaine, perdoa se te fiz sentir melancolica, não era a intenção. Sabes nesta hora em que escrevo o natal já passou, ontem tive uma alegria, e hoje está sol, amanhã é outro dia, e aos poucos liberto-me de mim proprio...
Beijo terno minha amiga.

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Jacky, obrigado pelas tuas palavras, e pela visita, uma quadra feliz para ti tambem.

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Minha querida A. se eu pudesse abraçar-te ou se puderes sentir o meu abraço ele vai de mim para ti. Obrigado por tudo. OBRIGADO.

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Filipelamas, carissimo, obrigado pelas palavras de incentivo a que continue a libertar-me das minhas memórias. Obrigado pela visita. Os desejos de uma quadra plena de paz.