segunda-feira, abril 23, 2007

Os ponteiros do relógio...






Os ponteiros do relógio. Retorcidos. O relógio que já não marca o tempo. Os ponteiros traços de um rosto de esmalte vidrado envelhecido. A estação parou, as linhas velhas e carcomidas foram levadas. Só a memória do lugar fica. Os sons. Os cheiros. O resfolgar cansado e húmido da velha máquina a vapor das minhas viagens. O cheiro a carvão e óleo queimado. O rosto do fogueiro a suar com um olhar esgazeado e cansado. O olhar atento do maquinista.
Só a partir do passado eu sei quem sou.
Só a partir do passado construo o meu futuro que há-de vir. Me identifico com os lugares onde retorno outra vez, como uma primeira vez cheia de memórias presentes. As memórias dos lugares. Das terras. As terras têm de ter memória. Só as terras com passado podem ter futuro. Nisso são como as pessoas. Completam-se. O futuro é uma visão moderna do passado.
Só quem sabe de onde vem, sabe até onde pode ir. Eu vou. Procuro os trilhos do comboio a vapor das minhas memórias na linha da Póvoa. Encontro os sítios. Abro a porta às memórias de menino. Deixo-as virem de encontro a mim como um mar imenso.
Não lhes sinto já os cheiros. São importantes os cheiros dos lugares. Não lhes sinto já os sons estridentes da máquina, o apito do chefe com a bandeirola ao alto dando a partida. Perdeu-se o lado humano. As pessoas não têm rostos agora. Correm como máquinas tristes. Perdem-se umas das outras.


- O que são as pessoas hoje?

Sento-me num banco moderno e frio e observo as idas e vindas do comboio chamado Metro que anda silencioso na linha polida e certa. Já não sinto o cheiro do alcatrão que abraçava as travessas de carvalho onde adormeciam os carris de outrora. Fazia-me falta sentir esse cheiro agora para me sentir na minha estação do comboio.



Observo.

- O que são pessoas?


Estou ali sentado e ninguém fala comigo. Ninguém me olha, ninguém dá por mim. Estou só, mais as minhas memórias de um dia menino em que subi a primeira vez para a carruagem que me levou à Trindade. Ninguém dá por mim, ou se dão não se importam que me sinta perdido.
Sinto na pele uma espécie de maus-tratos. Fazia-me falta uma palavra de alguém. Uma espécie de mimo sonoro. Uma espécie de silvo estridente que ressoasse por dentro dos tímpanos e me fizesse vibrar, me fizesse acordar deste torpor em que me encontro.
Olho de novo o relógio da estação. Só existe na minha cabeça. E na certeza de tantas vezes ter olhado para ele na incerteza de não chegar a tempo para apanhar o comboio cansado. O velho relógio que controlava o tempo e me controlava a mim nas idas e vindas.

Esta terra é um emaranhado de memórias em mim. Uma data de nós sucessivos que tento desembaraçar com a perícia do marinheiro ou o desprendimento do afecto.
Devagarinho o futuro é um refúgio para onde adio sempre o presente.
Para sempre.

O comboio da chegada foi sempre o comboio da partida. Só eu fiquei ali. Sentado. A olhar as pessoas que vão e vem apresadas.

- O que são as pessoas hoje?

A vida de cada lugar nasce e morre com cada lugar. Só a memória perdura como testemunho. A memória popular repleta de lendas e mitos. E a minha memória? Quem preserva a minha memória dos lugares onde fui pessoa. Será o tempo? O tempo lento de outrora. O tempo que lento mesmo assim não deixava ninguém ficar para trás. E agora? O tempo não tem ponteiros que nos indiquem as horas, nem relógios de corda nas estações abandonadas.
As pessoas passam, e os mais fracos ficam para trás abandonados nas esquinas da noite, tendo por cama uns pedaços de papelão e por cobertor uns jornais com notícias atrasadas. Que tempo este que deixa as pessoas sós?

Levanto-me do banco moderno e frio e caminho de encontro à cidade moderna de agora que quase não conheço. Percorro os mesmos caminhos de outrora. As ruas estão nos lugares certos. Só o silêncio é diferente. Só a luz é diferente, só as pessoas são diferentes.
- O que são as pessoas hoje?
Só eu me sinto a mais, como um estrangeiro na terra onde fui menino e onde retorno quase com uma violência interior a abrir portas cerradas por dentro da memória. Onde a custo ensaio as chaves que possam abrir as fechaduras cicatrizadas.
Cansado sento-me neste jardim requalificado. Estranho. Arrefecido. Faltam as flores vivas. As pessoas. Tu vens. Sinto-te quente. O teu corpo quente. Devagar sem que me aperceba sentas-te na minha perna e abraças-me. És o mimo que queria faz tempo. Sinto-te a respirar junto do meu ouvido. Um ar quente que vem de dentro de ti. Um ar que cola os sentidos e embriaga o sentir. Não sei se é amor ou paixão ou desejo.
Não falas. Não dizes nada. Ofereces-me os teus braços que abandonas ao redor do meu pescoço. Estremeço. Não te dás conta. Não te olho. Não te toco. Tenho medo que te desvaneças, ou que partas também tu. Não falo para não quebrar o momento mágico que se instalou em nós e ao redor de nós.
A cidade parou. Voltou aos dias diferentes. As pessoas voltaram a ser pessoas e a sorrirem e a dizerem bom dia, boa tarde, boa noite. E a pararem à porta de casa para conversar. Na minha rua todos nos conhecemos e brincamos à bola e ao pião. E no adro da igreja da Lapa no beiral da parede ao redor do templo fazemos corridas com as caricas das garrafas de pirolito que bebemos na festa a Assunção no Agosto pleno. À tarde, numa chapa, assamos batatas no fieiro da praia, envoltas na areia grossa salgada. Construímos castelos de areia e de sonhos que o vento destrói. Comemos as batatas quentes misturadas com os grãos de areia que nos estremecem os dentes e rimos como loucos. Dentro em pouco vamos à aventura das espigas de milho doces para os lados do Anjo, algum de nós sabe sempre onde está um milheiral, falta chegar o Setembro para elas estarem boas a comer.
Temos os rituais certos da adolescência pura.
Descansas.

Repousas o rosto no meu ombro cansado. Sinto-te o perfume dos teus cabelos, e lembro um campo verde com erva acabada de cegar com uma foicinha afiada e ágil por mãos experientes sob um sol quente. Escuto os sons dos grilos ao longe. São grilos que chegam cedo no Abril adiantado.
Caminho numa estrada de xisto rodeada de muros de xisto castanho, a cidade ficou para trás por um momento, foi o perfume, a ervas dos teus cabelos que me trouxe até aqui a este lugar que revisito como uma primeira vez outra vez.
Importantes os cheiros. Os cheiros dos lugares com memórias. Dou-te a mão em silêncio. Não falamos nunca. Não nos olhamos nos olhos. Tenho medo do feitiço dos olhos e que partas também tu. Ou me enfeitices.

Levo-te numa visita guiada a ver os moinhos e as azenhas. A sentir o cheiro da farinha acabada de moer que brota da pedra andadeira. Como gostava de te oferecer um pouco de broa de milho da que fazia com a avó sempre na sexta-feira imensa e mágica. Como gostava de sentir o sabor na boca de novo, ou a massa levedada morna nas mãos. Fica-me a mágoa de não ter feito a peregrinação do ciclo do pão outra vez com a avó antes de ela partir também. (Preciso de encontrar uma chave certa que abra de vez esta porta cerrada que tenho ainda).
O teu andar é leve o meu é pesado. O teu andar flutua no espaço sem tempo. O meu estremece as pedras da calçada e magoa-me a coluna ferida por dentro. Carrego o peso do mundo em mim. Fazemos uma espécie de peregrinação dos lugares sagrados e profanos. Uma espécie de peregrinos fora do caminho de Santiago. Ensino-te os meus caminhos de menino para que descubras os sonhos e fiques com as memórias. As minhas memórias que se perdem como a água que escorre na levada.

Continuo a ter dificuldade em encontrar a resposta.

- O que são pessoas ainda?
Ainda é cedo para saber as respostas. Se não partires tu também. Se não partires tu também. Se não partires.
Só quem sabe de onde vem sabe para onde vai. Se não partires…


Aos poucos construo as velas dos sonhos que vão dar a vida de novo ao moinho de vento. Em cada volta do fio que segura a tralha exterior à interior, deixo que o amor do gesto fique perpetuado.


E quando findas as velas, seguras nas varas, o moinho gire com a nortada ou o barcelão forte e matreiro.


Os ventos que o fazem gemer. Girar a entrosga com os seus dentes de oliveira e o carreto. O moinho gira e gira e gira dando as voltas possíveis e únicas e breves da memória.
Unto a rela para que gire sem gemer o choro estridente do metal, folgo o urreiro para que o imenso moinho gire mais leve. Comovo-me ao ter de novo a visão esquecida das velas girando. Sou menino outra vez neste momento. Que me importa que o relógio tenha os ponteiros retorcidos e que o tempo avance sem ele.
Sentes o cheiro da farinha acabada de moer fresca e doce. Os grãos de milho transformados que vão ser o milagre do pão.
O casal de mós de mãos dadas. O pé da mó grande, espesso, pesado, redondo. É ele o homem simbolizado no moinho. E olha a mó andadeira que gira por cima, leve vertiginosa. A mulher graciosa. Parece que grita, parece que tem vida.
Escutas? - Afinal sempre existem pedras que falam.
Dou-te a mão de novo. Seguro a tua mão fria já. Não falamos, não nos olhamos. Partimos outra vez de encontro aos sentires da memória. Tenho uma memória antiga feita de pequenos nadas. Sinto sempre o medo de ver assumir em ti o enfado das minhas memórias. Tu não sabes que a história das terras se conta nos lugares públicos. Nos caminhos, no lavadouro, na fonte, na azenha, no moinho, nas alminhas na berma do carreiro, no cruzeiro onde se namorava, na praça onde todas as ruas vão dar, ao redor do adro da igreja velha, ao redor da escola abandonada agora por ser antiga e estar ultrapassada, porque separava por sexo os meninos e as meninas. Eu fui sempre separado nessas escolas abandonadas. Hoje não se separam os meninos e as meninas. Mas as escolas continuam abandonadas por não terem já meninos. Fazem falta as crianças de novo nos lugares da infância outra vez. Tu não sabes mas estás a tempo de saberes desses lugares. Porque senão, um dia, dás-te conta que as crianças não sabem de onde vieram enquanto cidadãos desta ou daquela terra. Não sabem o que os identifica e os distingue. Tornam-se globais, apressados, em competição. Cruéis. Deixam de saber brincar, e saber sorrir, e saber falar, e abandonam os mais fracos nas esquinas da noite e não sentem remorsos e não se preocupam e não são felizes. Mas, ainda não sabem disso. ~
Volto à cidade. Cansaste-te de mim. Foste breve e partes também tu. Desabraçaste-me o pescoço, levantaste-te sem que eu me tenha apercebido, deixei de sentir o perfume do campo nos teus cabelos. Interrompi a viagem pela aldeia de menino. Parou o moinho, só, abandonado outra vez. O moleiro já partiu também. O forno ficou frio no tempo, a broa de milho já não se saboreia com leite na manhã dos sábados.
Arrependo-me de não te ter olhado por dentro dos teus olhos. Agora não lhes sei a cor.


- O que são as pessoas ainda?

Já não sinto o teu respirar quente junto do meu ouvido que me estremecia o desejo. Já não sinto. E tento a custo esquecer-te como me esqueço dos lugares mágicos escondidos para lá das fechaduras cicatrizadas no tempo. Só o relógio me dei conta, não existe já. O relógio que agora não marca o tempo.

Continuo a caminhar, espécie de peregrino andarilho por um trilho marcado no chão onde as pessoas não me vêem, espécie de fantasma das fábulas.


Só a memória perdura como testemunho de lendas e rituais. Já ninguém é de ninguém. E qualquer estranha mulher que se sente na minha perna enquanto descanso é uma espécie de redentora por quem esperava desesperado, a quem possa dar a mão num gesto pequeno e espontâneo para tentar disfarçar uma dor que existe desconhecida por dentro ao sermos estranhos a quem nos ama.
O facto é que sinto saudade, mesmo que no sonho durmas ao meu lado, ou viajes comigo no velho comboio a vapor. Saudade de te ver. Saudade de me recordar de ti.

João marinheiro 2007
Fotografias; Barcoantigo, Google

terça-feira, abril 10, 2007

Qual foi a manhã....



Qual foi a manhã que deixaste de falar comigo
Qual foi?
Continuo a estar cada vez mais só. Demasiado só.
As pessoas são momentos breves que desiludem.
Resta-me o sabor do fel
E o calor do aço
O ar viciado para me encher o peito
Adormeço todos os dias numa espécie de narcose
Já não tento substituir-te.
Sei que todas as mulheres que amo são sempre mulheres que partem
Só tu ficas alojada por dentro como uma farpa de madeira rubra.

Continuo a escrever-te. A dedicar-te as palavras
Às vezes escrevo a outras mulheres as palavras
Mas não é a mesma coisa
Não me entendem. Acabam por partir
Só tu permaneces.
Escrevo eu. Um sobrevivente das palavras
Eu sei que já não és
Que já partiste
Que habitas algures a meio da travessia nas profundezas atlânticas
Eu sei
Mas é como se estivesses aqui comigo
Não me importa que a tua ausência seja uma ferida. Quero-te à minha beira
Desejo-te à minha beira
Preciso de ti entendes. Para me sentir lúcido ainda.

Como é que faço a peregrinação dos lugares sem ti
Como é que faço?
Morro de saudade tua.
Lembras
Aquele restaurante junto ao mar na Afurada onde íamos comer um peixe assado
Já fechou.
Agora como faço a peregrinação dos lugares onde fomos felizes os dois?

Sabes.
O que me assusta é não conseguir ver já o teu rosto
Mesmo de olhos fechados a rebuscar a memória
Já não vejo o teu rosto
A linha dos teus lábios
A cor dos teus olhos
A forma da cicatriz que tinhas no sobrolho do tempo que usaste um percing
E isso assusta-me
Envelheci.
Perco a memória
E eu prometi que nunca te esqueceria
Perdoa por não o conseguir cumprir. Eu tento
Tento.
Mas às vezes surges como que rodeada de névoas, nem sei se és tu
Eu é que teimo e imagino que sejas.
Mas podes ser uma qualquer que passa por mim na rua
Já te falei que às vezes olho as mulheres na rua a ver se me lembro de ti
Mas nunca és no rosto delas nunca és.

Morro aos poucos como aquela árvore que dava sombra no jardim Constantino
Lembras?
O banco onde nos sentávamos. Onde gravei o teu nome na tábua.
Morro aos poucos sequioso de saudade. Sequioso da fonte dos teus lábios.

Às vezes penso que já não vou escrever-te mais. Porque me violento ao escrever
Porque estremeço por dentro
Porque te amo ainda.
Mas as saudades dão à costa
E eu como o náufrago reúno de novo as palavras dispersas à deriva
E volto a ti.


João marinheiro 2007
Fotografia Google

sábado, abril 07, 2007

Incompleto...

Nada me resta já que não um humilde amor perdido.
Nada de ambições
Nada flúi nos meus sentidos.
Nada sou agora, neste momento...
Nada me resta nesta hora final
De todos me despeço indiferente.
De todos levo lembranças, saudade nesta partida tardia...
As tuas cartas de amor. Os meus discos. Os poemas que escrevi...
Nada são. Tudo isso hoje, ao partir se dissolveu.
Tudo isso, amanhã será passado,
Que hoje é o presente. – Embora me sinta dele ausente...
Nada me resta que não a pureza d`um amor passado
Nada me resta que não eu próprio,
E este sentimento imenso de incompleto...

João marinheiro, Novembro 1983