sábado, novembro 08, 2008

a última carta...

( livro de contos)


Beatriz.


Perdoa-me.
Não pude esperar por ti.
Hoje é o último dia, vou embora, morre-me o corpo. A alma, essa fica à tua espera. Mas o corpo está demasiado carcomido, demasiado curvado, demasiado usado. Dou-me conta que te esperei toda a vida. Foi a espera de ti que permitiu não ter sucumbido aos naufrágios. Não ter desistido de viver, como tantas vezes pensei. Desiludido com tudo, desiludido comigo. Foste tu, sempre, que ao meu lado permaneceste a dar-me a mão. A amparares-me. A acariciar-me no sono. A dar-me alento todas as noites. A ensinar-me o caminho de regresso. Ao navio que substituiu a casa anos a fio. Perdoa-me não ter sabido amar-te com todas as letras. Não saber olhar-te de olhos verdadeiramente abertos e ver por dentro dos teus. Por ter sido egoísta. Só pensar em mim, na minha vontade, deixar o nosso sentir para trás e partir sempre à aventura, partir para o fascínio, o feitiço do mar. O gosto do desconhecido. Partir como os antigos descobridores. Nada disso era importante dou-me agora no fim conta. Agora que ajusto as minhas contas com Deus. Sim o tal Deus que parece que existe em cada um de nós, cada qual à sua maneira, uma fé sempre diferente. Nestes últimos 3 anos tenho tido tempo para reflectir. Estou recolhido do mundo. Recolhido á espera da morte. É hoje o último dia, já me foi revelado, não te sei explicar. É hoje que me liberto deste corpo velho e irei visitar-te. A alma libertada. A minha tão maltratada pelo arrependimento. Não fazes ideia da dor que eu tenho sentido por te ter magoado estes anos todos. Por me ter magoado também estes anos a fio. Nunca consegui amar uma mulher além de ti. Foste única, és única e omnipresente em mim e tudo isso foi um suplício, um castigo. Amar-te foi um castigo. Ainda o sinto no corpo. Ainda te amo, mas é tarde para voltar atrás. Para parar o tempo. Só me resta morrer e renascer um dia outra vez. Então sim, retomar o caminho ao teu lado. Ou com outra que sejas tu renascida também. Estás a ver como sou doido em escrever-te estas palavras, logo eu que não acreditava em nada para alem da morte, logo eu, mas é a ultima restea que tenho de esperança, de te poder encontrar, te poder rever. Deixas que continue a amar-te? Mesmo para além da morte? É que não sei fazer outra coisa. E nenhuma mulher é suficientemente mulher como tu, ou se assemelhe a ti para que eu lhe possa dedicar o amor que te dedico. Sou um velho doido. Transformei-me num velho doido e inútil, por isso parto esta noite. Só tu sabes que parto. Não tive coragem de dizer a ninguém. A ti digo-te porque te falo com o pensamento. Sempre te falei com o pensamento, mas estás longe, muito longe. Mas agora sei onde estás. A tua carta fez-me renascer a alma, só o corpo eu não consigo que renasça. Só pela purificação da morte física. É essa a porta de entrada, a porta de saída. A salvação onde posso expiar todas as falta, os pecados cometidos. Não fiques triste. Não deves ficar. Depois de receber a tua carta pensei muito. No princípio quando a recebi, fiquei estranho, até pensei que o coração me atraiçoasse. Portou-se bem. Mas depois da tua carta, a ânsia que carregava por dentro de mim, o vazio da tua presença, a angustia de te amar, de amar uma recordação difusa, tudo isso se dicipou, e acalmei. Eu acho que foi o destino que nos pregou uma partida. No fim, cada um de nós, fomos felizes à nossa maneira. Dentro das nossas possibilidades. Eu cumpri o sonho de ser capitão na marinha. De ter o mar por companhia, de ir, como os navegadores mar adentro sempre. Tu não cabias no meu sonho. E quando partiste foste atrás do teu sonho. Eu não cabia dentro do teu sonho. Tivemos de nos afastar para se cumprirem os sonhos de cada um. Juntos não poderíamos voar como as gaivotas. Não poderíamos ter sido felizes. O amor de um ia prender o amor do outro. Um dia, com toda a certeza iríamos jogar à cara, um ao outro, essa prisão. Iríamos desbaratar. Iríamos maltratar. Iríamos aniquilar o amor grandioso no coração um do outro. Iríamos desmoronar, vencidos. E tu não querias que isso acontecesse um dia pois não? Eu sei que não. Penso que ainda me amas um bocadinho, um amor suave, tranquilo, um amor levezinho. Eu sei, sinto que sim. Já não vou dizer mais que te amo porque sempre foi assim. Quando adormecer o sono último e profundo, és tu que me vais dar a mão e me embalar até partir. Sei que irei em paz comigo, contigo e com o mundo. Que mais posso querer agora que sei de ti. Que estás bem. Que temos um filho. Gostava de dar um abraço aos dois, não vou a tempo. Perdoa-me por não poder esperar mais.
Esta carta não lhe posso chamar carta, é mais um desabafo, não gosto de despedidas, é um até logo, um até sempre. Não sei se vais ler estas palavras são as minhas ultimas palavras para ti. Depois é o silêncio profundo sem retorno sem eco, um vazio completamente asséptico. Já tenho tudo tratado para a última viagem, poupo-te os pormenores, não são importantes. Importante foi saber de ti.
Vou com um sorriso nos lábios, que mais posso querer se já tive tudo, quase tudo. A nossa historia de amor. Não posso parar o tempo nem a história, não a posso reescrever, nem voltar para trás. É o tempo das partidas. Cada um de nós foi feliz e cumpriu o destino. O destino é um livro em branco como o amor que eu falava. As folhas vão sendo preenchidas e ganham cor, ganham vida. Mas algumas permanecem fechadas demasiado tempo e amarelecem com a humidade dos dias. Outras transformam-se em histórias que atravessam o tempo, contadas, recontadas, escritas, reescritas. O meu livro não sei dele. Nunca soube, não me dei conta da importância de ter um livro em branco, branco da cor do amor. Não me dei conta do amor quando o tinha ao meu lado. Precisei de uma vida toda para acordar do erro e remediar o destino, só o livro não consigo já abrir. A humidade nas folhas estragou tudo. O coração, o corpo, a vista, as pernas. O tempo em mim no esplendor máximo. A punição da metamorfose das células.
Desculpa o que estou para aqui a falar, doideira é isso. Não te interessam os meus pensamentos últimos, e não eram estes que te queria deixar. Gostava de ter mais tempo para conversar aqui contigo, por isso invento conversas sem nexo a fintar o tempo. Não vou ter tempo de te enviar esta carta que não é carta, fica junto de todas as outras cartas que não são cartas que nunca te enviei, à espera das tuas mãos se um dia as receberes. Quem sabe todas juntas se transformam no tal livro do destino branco como o amor que eu julgava.


Guarda-as, são as minhas memórias.

Deixo-te um beijo e um sorriso nos lábios.

João Júlio

São Martinho Novembro de 2007
Fotografia de Barcoantigo em 2004

terça-feira, novembro 04, 2008

Do desencontro... IV parte

(Livro de contos)

Tudo começava a ser confuso para mim. Um mistério que se adensava a cada passada. Até a enorme mansão, os corredores compridos com o seu silêncio impecavelmente limpos e arrumados me intimidavam. O Dr. Ernesto ao meu lado em passos rápidos, sem uma palavra conduzia-me pelo labirinto. É isso estou num labirinto. Quem foi o capitão Júlio. Que espécie de homem? Porque tenho a sensação que planeou tudo, a morte, a minha chegada, o meu assombro, o meu medo. É isso! O meu medo neste momento. Que estaria na carta escrita. Que estaria guardado no quarto, que mais parece um camarote de navio. Agora enquanto caminho e os meus passos ressoam no chão limpo e se perde o eco nos corredores dou-me conta que o quarto cheirava a mar. Estranho. Como o conseguiu. Como é possível sentir o cheiro da brisa, o cheiro do sargaço ali, um quarto fechado na penumbra. Não sei. São já demasiadas perguntas que faço a mim próprio e para as quais não vou com toda a certeza obter resposta nunca. Chegamos, parece que acordo de uma espécie de êxtase. O Dr. Ernesto abre a porta. – Faça favor de entrar, e sente-se enquanto vou buscar os documentos que Sr. capitão Júlio me confiou.
Sento-me, obediente, sem acção, sem raciocinar, num gesto automático a responder a uma ordem. Que se passa comigo? Olho em volta. É uma sala ampla duas enormes janelas com sacada. Mentalmente faço um exercício de localização onde me encontro. Onde o Norte? Os homens do mar são assim, temos por dentro uma espécie de agulha magnética que nos orienta, como as aves marinhas, pode ser isso, mentalmente na minha cabeça surge a imagem da mansão, é isso! As duas janelas com as sacadas viradas à alameda. é aqui o escritório virado a nascente, é aqui que os antigos fidalgos apreciavam o nascer do sol. Pormenores da arquitectura do tempo. Importantes, nem eu sei. É um escritório esta sala agora, mas com toda a certeza seria a biblioteca, a sala de estudo. As enormes estantes em carvalho velho até ao teto repletas de livros antigos. O enorme quadro do visconde a observar-me desde a parede. Os meus olhos como um radar preciso e rápido a dar-me a informação possível. Uma enorme lareira impecavelmente limpa e arrumada com as ferragens de bronze reluzentes. Demoro o olhar ali, preso na cor amarelada do bronze e fico a pensar nos velhos veleiros. Os barcos que o capitão Júlio tanto defendia. E fico a lembrar o nosso navio Sagres, com os bronzes impecavelmente polidos, motivo de orgulho e de vaidade das tripulações. O meu tempo a bordo como Cadete. O inicio das minhas viagens no mar. Volto à sala. Um grande sofá em couro escuro, dois mais pequenos, também uma mesita com um livro poisado, a pequena mesa toda trabalhada em talha, uma obra de arte, aqui tudo é de estremo bom gosto. Um piano de cauda, Alemão penso. Percebo pouco de instrumentos musicais, mas o nome, C. Bechestein incrustado, não me deixa grandes dúvidas. O Visconde na parede ainda sentado a olhar. A cadeira parece a mesma que está junto ao piano. Com certeza era nela que se sentava para escutar o piano. Tocado por quem? Nunca o vou saber. Respira-se aqui um misto de passado e de modernidade, o computador na enorme secretária é a prova da modernidade instalada. Mas o cheiro é uma mescla a madeiras e ceras difícil de encontrar já.
– Ora aqui está toda a documentação, escutei. Por uns momentos esqueci-me do motivo que ali me tinha levado. Esqueci completamente o Dr. Ernesto. Era eu a vaguear no tempo. Regresso de repente. – Desculpe estava aqui a admirar a sala, retorqui.
– É uma bela sala, tentamos na recuperação manter a traça o mais fiel possível, mesmo o mobiliário aqui ainda é o original, só as acomodações para os residentes foram alteradas. Mais modernas. Com as comodidades que a lei exige e mais algumas que achamos estas casas devem ter para proporcionar aos nossos idosos, a melhor qualidade de vida e a tranquilidade possível nesta ultima etapa que enfrentam.

Como lhe disse há pouco, isto é uma missão, chamemos-lhe assim, é uma missão estar aqui ao lado deles, acarinha-los, escuta-los suprir todas as suas necessidades transpor as limitações que o tempo lhes impõe. Por exemplo o capitão Júlio, estava muito limitado já das pernas, nunca quis deslocar-se em cadeira de rodas, nem com o auxílio das canadianas. Os últimos meses quase não saia do quarto. Passava o tempo a escrever e a ler, muitas vezes a olhar a baia da janela, às vezes nos dias bons levantava-se de madrugada e vinha lentamente até ao refeitório pela manha cedo ainda antes do pessoal da cozinha chegar, e depois ia até ao jardim, caminhava muito lentamente. Dizia-me que tinha tempo. Que toda a vida andou demasiado depressa, que assim conseguia absorver os aromas da terra, as cores do dia, os sons. Que ao caminhar lentamente tinha tempo para dar valor a tudo, às pequenas coisas, ao caminhar da formiga, ao saltitar dos pássaros, às gotas de orvalho na relva, às flores nos canteiros.

Gostava muito de conversar com ele já lhe disse. Mas vamos ao que interessa. Aqui estão as cartas que lhe falei dentro deste envelope, as cartas e as instruções para o caso de alguém vir à sua procura e chegar tarde como é o caso. O Sr. João Pedro desculpe-me a crueza das palavras mas é a realidade, aqui temos de ser prático acima de tudo. (continua)
Fotografia de Mariah