terça-feira, julho 14, 2009

chuva de julho...


Chove torrencialmente e é Julho de um verão que teima em meter férias e não estar presente. Da janela onde olho o mar ao longe as gotas de chuva caem grossas batidas pelo vento norte fresco, obliquas em traços descendentes e ao pensar na forma oblíqua da chuva lembro-me instintivamente das palavras oblíquas de Pessoa.


Tenho uma janela e uma porta que dá para uma varanda de cinco por um metro, mas dessa varanda já um dia escrevi, acho que um dia de Agosto chuvoso, estava sentado da mesma maneira a aproveitar o pouco de luz natural que me chega. Não estava constipado como hoje me sinto, nem a música era a que escuto no momento.


Os momentos são partes do tempo breves. Temos um tempo demasiado breve em nós e não nos damos conta.


Da janela vejo um barco. Mesmo que não visse sei como são os barcos e podia imaginar um com todos os pormenores. Conheço os barcos como me conheço a mim. Já fui um bom barco, novo, esbelto, possante. Agora sou um barco velho, um barco antigo. Um homem é como um barco. Quando nasce é a direito, escorreito e aprumado, um barco é assim, de proa altiva, de quilha direita esbelta. Depois o tempo, os pedaços de tempo, os tais momentos breves pesam em nós e o corpo verga submergido no peso e descai para a frente a tentar o equilíbrio possível, no barco passa-se o mesmo, alquebra-se e a proa descai a popa descai e o porte esbelto desequilibra-se e o barco torna-se vagaroso a arrastar-se no mar como eu me arrasto na areia da praia do fim do mundo para onde o meu pensamento vai quando te imagino.


Da janela onde olho o mar já não vejo o barco que passou por breves momentos, era um veleiro breve de duas velas pardas e distante, rumava a norte numa bolina acertada e rápida. Sete, oito nós, não mais que o vento não é muito, mas o suficiente para encapelar o mar aqui na linha de costa e transformar a água em espuma miraculosamente branca como algodão ou a neve da serra.


Gostava de passear pela serra e comer medronhos no tempo deles.


Algumas vezes fui contigo passear pela serra. Agora invento os caminhos de memória, são caminhos breves que não passam de invenções que ficaram registadas na memória e eu julgava perdidos para sempre. Não gosto verdadeiramente da frase, para sempre é demasiado tempo, e o tempo já me dei conta é demasiado breve para ficar em nós. Deixa-nos marcas, o que é verdadeiramente mais doloroso e duradoiro, ou o contrário. Por vezes o contrário e passa demasiado rápido, sem marcas e sem memórias, só um vazio e um silêncio perene a substituir o tempo.


A varanda tem uma mesa redonda branca, plástica, com duas cadeiras plásticas à volta também brancas e molhadas. Da mesa corre um fio de água em direcção ao chão, o chão é em mosaico castanho de uma fábrica que já não deve existir, feitos por mãos que fizeram milhares e sabe-se lá quantas histórias teriam para contar. O tampo da mesa está transformado numa espécie de pequenos lagos de água reunidos. Entretanto a chuva parou. A maré prenha de mar está no máximo de amplitude, quase maré viva. E hoje estranhamente ainda não vi uma gaivota, só o veleiro que passou rumo a norte. Nem de propósito uma gaivota cinzenta paira por breves momentos emoldurada na janela e prende a minha atenção, os meus olhos cansados e fico por uns momentos a registar o seu voo na memória, quem sabe um dia me fará falta, quando já não conseguir avistar gaivotas e a ver só de memória. Alquebro-me como o velho veleiro.


Estamos no verão. É Julho, princípios de Julho, o solstício de verão já foi, já se fizeram os rituais e as oferendas ao rei astro, e eu socorrendo-me da memória construo de novo os amanheceres e os nascer do sol nas milhentas vezes que o vi e me fez companhia, o esplendor da luz a leste de mim. Algumas vezes, poucas, fizeste-me companhia, um dia até esperamos que ele nascesse para darmos um beijo e jurar o amor, tínhamos combinado que o sol seria a testemunha para sempre. Compreendes porque a frase me parece um exagero agora.


Passam mais duas gaivotas cinzentas rápidas. Afinal ainda não se tinham ido embora, estavam atrasadas, só isso. E ao fundo na linha do horizonte calmamente surgem a silhueta de umas velas, primeiro uma, um pequeno veleiro ruma a sul depois outra mais próximo, ambos só levam içada a genoa a vela que amura na proa, navegam calmamente a uma popa livre e despreocupada. Eu aqui ainda a deixar a memória livre ser levada.

João marinheiro praia de Fornelos, Julho 2009
Fotografia de Barcoantigo em 2009

domingo, julho 12, 2009

Abandono…



Queria dizer-te que já abandonei os barcos. Queria que soubesses. Queria dizer-te que agora já não existem motivos para que partas, já não te troco pelo mar e os barcos são só memória. Mas é a tua que se sobrepõe a todas as outras memórias mesmo sendo a água a primeira memória da humanidade.

Só queria que soubesses isso. Que abandonei os barcos

Agora para matar o tempo, para que saibas também, passeio pela beira-mar na praia que foi a nossa no cabo do mundo. E se um dia resolveres regressar nem a vais reconhecer…

João marinheiro 2009
Fotografia de Barcoantigo em 2008