terça-feira, agosto 28, 2007

De súbito desaba a trovoada…



De súbito


Desaba a trovoada neste dia abafado de um verão qualquer à beira mar. Junto do mar. E o vento em redemoinhos de pó chega, e encrista a superfície das águas salgadas. E eu aqui, deste pedaço de sítio, vejo o tamanho do mundo, para lá da janela onde me escondo do tempo que chega frio. O vento que é sempre um norte residente aqui, fugiu, e entra um sul abafado e quente que tinge as nuvens de cinza escuro, e os trovões chegam com ele, como que todos à uma a atropelarem as nuvens. A estourarem os tímpanos. Na casa ao lado uma criança grita, um choro aflitivo de medo. Escuto a mãe, deve ser a mãe, – Madalena! – Madalena! É a mãe. Deve ser, a criança deixou de gritar. Só a voz da mãe tem o poder de afastar os medos e curar os choros, assim era, assim será. De súbito as nuvens choram também. Abatem-se num choro imenso e quente e húmido. Estamos em pleno verão, e a chuva torna-se uma espécie de névoa no asfalto quente da estrada que bordeja o mar. Vejo daqui, da minha janela onde avisto um pedaço do mundo.


E ao fundo, um pequeno veleiro arreou as velas e navega rumo a sul. Aqui, todos navegam rumo a sul a afastarem-se da memória de ti. Parece que me lêem os pensamentos, ou que navegam por dentro da minha memória. E o vento agora roda. Observo o seu rodar como marinheiro velho habituado a sentir o medo, a partilhar o vento. A noite passada fizeste o mesmo, rodaste mais de 180º. Agora vens de terra. De terra dentro, e deverias trazer o calor do interior do fogo. E vens frio. Arrefeces a chuva, e eu aqui, de tronco nu, a sentir na pele e na face esta água fria a arrefecer os sentidos. Observo-te. És um vento manhoso, nada parecido com a nortada, ou o vento suão quente. Não és um vento deste tempo. O horizonte está demasiado carregado, espécie de electricidade pronta a explodir em raios de luz e trovões. Observo os pardais aflitos, a procurarem refugio nas palmeiras aqui próximas. As gaivotas pousadas na borda de água, recolhidas do vento. Olho a norte. O céu rasgado pelos gritos das andorinhas que voam alto, demasiado alto. Aflitas. Em círculos de acrobacias onde se vê o peito branco a luzir no dia cinza, e o negro a confundir as nuvens. Olho as andorinhas durante um bocado, aqui, neste pequeno palco onde vejo um pedaço do mundo e penso em ti. Um dia disseste-me que eras como uma andorinha, que ias e que voltavas na primavera. Já não sei. Porque o verão já vai a mais de meio, a primavera já foi. As andorinhas já construíram os ninhos e agora voam alto, e em nenhuma te reconheço. A verdade é que não sei de ti. E estas andorinhas, parece que voam assustadas com este fim de tarde que não é deste tempo. E o mar começa a crescer agora. As vagas a chegarem cadenciadas e fortes à praia, as gaivotas correm um pouco para cima, de asas abertas, a delimitar o seu espaço. Recolho-me. A tua lembrança em mim provocou um arrepio que não queria sentir. Visto uma roupa qualquer, assim protejo-me do frio, disfarço o pensamento. O olhar vai em busca das andorinhas de novo. Queria-te na distância do meu olhar hoje. E as andorinhas continuam a voar cada vez mais alto aos gritos assustadas.
Tu não és assim, não és uma mulher assustada. – Ou és?
O vento!

Em casa sinto o uivar do vento na chaminé. Pesado. Grave. Contínuo. Este vento não é deste tempo. Demasiado aflito, demasiado breve. A querer romper os sentidos. A estremecer a pele. A encrespar o mar. A rasgar as velas dos veleiros distraídos. Lembro-me de nós. Do tempo em que fui um marinheiro demasiado ausente. Ausente de ti. Ausente de mim. (Acho que verdadeiramente nunca te compreendi. Nunca soube ler por dentro do teu olhar a linguagem silenciosa que me dizias, sempre, com o teu sorriso suave nos lábios e a luz a incidir no teu rosto). As andorinhas nesses tempos eram andorinhas do mar, quando as avistava sabia que estava próximo de terra e logo te iria abraçar. Agora tudo é diferente. Mas o mar é o mesmo. Salgado, dócil e impiedoso. Misterioso e imenso. Só eu não. E as andorinhas hoje voam alto e demasiado assustadas e são andorinhas migratórias. Dentro em pouco reúnem-se em bandos nos fios dos telefones e partem rumo às terras quentes. E este vento que chega agora estranho a arrepiar os sentidos e a fazer-me lembrar de ti. Hoje demasiadas andorinhas se reuniram à minha volta.
– Voas!

E de súbito – agora!

A chuva é desalmada e fria e escorre na vidraça e o ar abafado. O dia um misto de calor amarelecido, um por do sol que teima em afastar o vento, e as nuvens negras, pesadas de água, e os redemoinhos, e o ruído que assusta na chaminé desta casa frente ao mar, juntinha ao mar, onde me recolho a imaginar-te, sempre na eternidade do tempo, enquanto tento por todos os meios enganar as horas e os dias. Outro dia e eu aqui, os olhos fechados a tentarem disfarçar o tempo das horas.
Deito-me. abandono-me nesta cama que já foi tua. Onde fizemos amor a primeira vez. Amortalho o pensamento, esqueço-me de mim próprio. Quando me deito fico numa espécie de êxtase, narcotizado. Uma espécie de torpor bamboleante, como se estivesse a bordo a dormir no meu pequeno beliche e o som da água de encontro ao casco a adormecer-me como uma canção de embalar. Finjo que o vento que uiva na chaminé é essa canção. A criança está de novo a chorar. A mãe grita – Margarida! – Margarida! Calou-se. A voz da mãe. Tem que ser a voz da mãe assim curativa. Balsâmica nos ouvidos. Até eu me sinto mais aconchegado, menos ausente. Abraçado. Um abraço precioso e desejado. (fazia-me falta o teu abraço, Mãe). Fecho os olhos, ardem salgados por dentro das orbitas agora. Quero adormecer e afastar-me de ti. Vou na boleia do veleiro que arreou as velas há pouco, e rumo a um sul sempre demasiado a sul de ti, e de mim.
Amanhã.

O dia será outra vez com vinte e quatro horas, e no alvor, os barcos lançam as redes em busca da sardinha cor de prata. E o sol vai nascer a leste de mim, por detrás das montanhas, e das hélices enormes na serra que aproveitam o vento a gerarem a energia limpa. O campo de milho vai estar lá, ali junto ao sopé da serra, separado pela estrada negra, e os carros vão passar para um lado e outro, rápidos. E por vezes, as ambulâncias com toda a aflição dos tempos correm contra o tempo escasso. Os minutos que marcam a salvação ou a morte.
Amanhece.

Queria perguntar-te pelo sol.


Queria saber se o sol está junto de ti hoje. Sinto que sim. O dia amanheceu a chorar aqui junto a mim. Os telhados a pingarem a água que os céus reuniram na noite onde me abandonei nesta cama que já foi tua. Aqui tudo já foi teu. E eu sou uma espécie de guardião da memória tua nesta casa. E a casa é demasiado grande e fria e vazia. Quase um museu dos sentires. Um museu dos afectos. Os museus não tem sentimentos, pois não? Nem seres vivos, pois não? Nem sentires, pois não? Nem alma, pois não? Espécies de depósitos de trastes e coisas velhas inúteis…
As palavras a ti.

Queria perguntar-te pelo sol nos teus olhos e já nem sei as palavras a ti. A falarem ao teu coração. A saberem de ti. Já não faz mal. Sou mesmo uma espécie de marinheiro tolo e doido, alucinado do sal no corpo. É o tempo que me faz assim, estranho também. Incompreendido. Incompreensível, sem tempo deste tempo. Coisa estranha esta. A tempestade no pleno Agosto a chuva forte. O vento que geme na chaminé, o grito da criança na noite e a voz. A voz da mãe. Tem que ser a voz da mãe.
Fico sem saber se o sol está junto de ti hoje. Mas também não sabia ontem, ou antes de ontem, ou no futuro. O futuro é sempre a minha angústia por não saber de ti, adiada. E quando adormeço nunca sei se acordo á tua beira ou se te invento para me sentir lúcido e vivo. Porque o que queria era sentir-me amado por ti. E já não és nada. Por fora de mim. Existes por dentro só, num lugar secreto onde existe o sol sempre, e o teu sorriso nos lábios, e os olhos brilhantes, e a tua pele, as tuas mãos, o teu perfume. Porque me dizes que não usas perfume? Não és a mesma pessoa que amei um dia? Mas o teu cheiro perdura em mim e no tempo. O teu olhar na noite quando me fitavas a quereres entrar por dentro de mim.
Que nos aconteceu?

De súbito desaba a trovoada e o céu chora neste Agosto ausente de ti.
Eu fico aqui, junto ao mar, como faço sempre. A envelhecer. Abandonado como uma carcaça de um velho barco. Na praia. A envelhecer de saudade. A envelhecer de amor. Nem eu sabia que o amor nos torna velhos e abandonados como os barcos que amo. Espécie de alma que os barcos já não tem…

João, praia de Fornelos 2007 Fotografias de Barcoantigo 2007



...Ao largo demasiado longínquo
A silhueta do navio carregado
Contentores de sonhos…
João 2007
Fotografia de Barcoantigo

terça-feira, agosto 21, 2007

Resta-me a ilusão da tua existência


Resta-me a ilusão da tua existência.
Tenho de forçosamente que apagar-te da minha memória. Lentamente. Aos poucos. Cada dia. Cada gesto teu. Cada palavra tua. Cada beijo teu.
Apago-te.

Off!
Delete!
Como se isso fosse possível.
Fui à nossa cidade em tua busca. Os lugares, as ruas, os sons, os cheiros. A luminosidade do teu olhar em cada janela. Tão difícil de te decifrar já. Passa mais um ano na minha memória que queria esquecida de ti. É o mês das ferias e voltaste estranha. Demasiado estranha, a ires embora da tua breve ausência. Por onde andaste para ficares assim. Que te aconteceu? Deixei de saber de ti. Senti, sabes, aquela sensação amarga e fria por dentro, que te ias embora no teu regresso.
Resta-me a ilusão da tua existência.
Fomos um amor imperfeito, – não! Eu é que me convenci.
Não fomos amor nenhum! Eu é que me convenci que podíamos ser uma espécie amor-perfeito e colorido e redondo e grande. Eu, só! Acho que me iludi. Me perdi às voltas numa qualquer rotunda a imaginar-te e agora achei a nossa cidade invicta sem encanto. Faltas tu! Não sei porque me encantas ainda. Vejo-te a sorrir, o teu sorriso grande em cada montra, em cada grande vidro da cidade. O que me encanta em ti ainda? Porque me encantas tu? Verdadeiramente nunca soube quem eras. Se existes com alguma verdade por fora da minha memória, se as minhas mãos tocaram as tuas, se o meu corpo tocou o teu, se o olhar se encontrou agora que fico aqui nesta cidade demasiado grande sem ti. As ruas perdem a graça. As pessoas passam e não dão por mim. Não te reconheço em nenhuma delas.
– Imagino-te! – Imagino-te sempre!
Foste embora. Não deixaste nada. Uma palavra. Um gesto.
Não restou nada teu em mim.

Só este silêncio que me assusta.
João Praia de Fornelos 2007
Fotografia de Alina Andrei

domingo, agosto 19, 2007

Tens a idade da beleza irrepetível…

quarta-feira, agosto 15, 2007

Do teu dia de anos …


Quantos anos fazes hoje?

já não sei, perdi-lhe a conta.
Tens os anos do sentir, os anos da memória.
Habitas em mim e fazes anos sempre que queres e sempre que contigo partilho a Luz.
Estás ai e aqui ao meu lado.
Uma espécie de amor secreto que só as mães sabem partilhar.
Mas o facto é que tenho saudades tuas.
Da tua presença física.
Hoje dei-me conta que partiste cedo demais.
Eu sei.
Porque me disseste depois, num dos raros regressos do espírito a mim, que a tua hora era aquela, que estavas sofrendo agarrada a um corpo inútil já, e que a tua alma/espírito livre tinha de ir.
Haja o que houver espero sempre que voltes e que estejas aqui ao meu lado enquanto escrevo de novo para ti.

Ontem andei no mar da Póvoa.
Estes dois dias são de memórias e de recolhimento interior.
Ontem enquanto a lancha entrava a barra de todos os medos e todos os naufrágios, olhei a nossa antiga casa, a janela do meu quarto.
Quase que juro, que eras tu e eu que estávamos de novo à janela como fizemos tantas vezes nos dias de temporal e regresso dos barcos.
Lembras ainda o naufrágio dos meus companheiros naquele Inverno tão rude.
Ontem na quietude do vento lembrei-me deles e de ti e de mim.
As memórias tão por dentro sentidas. Espécie de fantasmas na memória


Sabes Mãe…
Faz demasiado tempo que não te escuto.
Mas sei o som da tua voz em mim.
Por isso aprendi a não sonhar quando durmo.
Porque sei que velas por mim e que sofres se te chamo.
E porque tudo parece confuso mas não é...
Porque a luz é branca a tua luz.
E hoje, nas minhas memórias ao ver esta foto amarelecida pelos anos recordei as palavras que te escrevi três anos depois de teres partido, e como hoje serias menina de novo, e porque escrevo porque me apetece sem ter de dar satisfações a ninguém dedico-te estas palavras outra vez

Ainda não consegui dedicar-te outras...


Teu filho, 15 de Agosto de 2007

terça-feira, agosto 14, 2007

À Memória de Manuel Lopes



…Hoje fui andar na lancha. A Lancha FÉ EM DEUS. O mesmo nome em memória da ultima Lancha do Alto Poveira. O sonho tornado realidade do Manuel, fomos frente à barra da Póvoa cambar a vela e gritar ALA ARRIBA! ALA ARRIBA! ALA ARRIBA! Ali no imenso azul onde as suas cinzas se confundem com a imensidão do mar e as lágrimas dos pescadores Poveiros.
Escutei poesia declamada com fervor enquanto a lancha altiva vogava com a sua enorme vela acariciada pelo vento sul. O dia parecia um Outono cheio de saudade. Regressei comovido e saciado do mar da Póvoa.
... O Manuel só morre se deixarmos morrer a memória….

A este meu insignificante canto das memórias, achei por bem trazer as palavras da homenagem feita aquando da realização do VIII Encontro de Embarcações Tradicionais da Galiza, realizados na Cidade de Ferrol no dia 7 de Julho passado. Encontros em que a Lancha sempre participou, de uma forma singela magnífica e imponente, a perpetuar a nossa memória de marinheiros.

*****

"Povoa, espera dos Barcos", óleo sobre tela, Sousa Pinto, 1881

O Homem

Manuel Ferreira Lopes nasceu na Póvoa de Varzim em 1943.

Iniciou a carreira como bibliotecário na Biblioteca Pública da Póvoa de Varzim, instalada no centro histórico da cidade, no rés-do-chão do edifício dos Paços do Concelho.

Revolucionário antifascista, já antes do 25 de Abril de 1974, nunca perdeu esse espírito incansável de paladino dos mais desfavorecidos.

Director da Casa da Cultura, projecto que incluiu uma nova Biblioteca instalada num edifício construído de raiz (a Biblioteca Municipal Rocha Peixoto) e a requalificação do Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim, que em 1980 recebeu o Prémio Europeu para a melhor exposição especial com a exposição Siglas Poveiras, de que foi autor.


Lancha Poveira ao largo de Montedor (Carreço) Viana do Castelo. 2004
Apaixonado pela cultura poveira, intimamente ligada à pesca, com as suas siglas e com os seus inconfundíveis barcos à vela, os barcos poveiros, foi responsável pelo mais bem sucedido projecto nacional, de construção de uma réplica navegante à escala real, em 1991: a “Lancha Poveira do Alto”, baptizada Fé em Deus tal como a última Lancha.

Morreu em 14 de Agosto de 2006 com 63 anos de idade.


Andor da Senhora das Dores,
Póvoa de Varzim, 1990


A Póvoa de Manuel Lopes

A verdadeira “Fé em Deus” foi a última grande lancha da pesca do alto da comunidade piscatória poveira, símbolo de uma época única na história local, feita de fartura e de fome, de tragédias e de heroísmo.

Pela iniciativa de Manuel Lopes a Autarquia Poveira criou a colecção “Na linha do Horizonte”, edição de estudos e investigações sobre a cultura marítima da Póvoa de Varzim, a quem pessoalmente Manuel Lopes dedicou numerosos estudos, conferências, encontros, Exposições e projectos.

A Póvoa de Manuel Lopes era a enseada guardada pela Igreja da Lapa e os lavradores dos arredores em dias de Feira e de mercado, os turistas a banhos no Verão e os pescadores da sardinha e da pescada do alto, todo o ano.

A Póvoa piscatória fervilhava de homens e barcos na praia e mulheres a vender peixe a pé, de canastra à cabeça pelas ruas, acompanhadas pelos filhos pequenos, e só parava nos dias da Festa a S. Pedro (29 de Julho) e para ver passar a Procissão da Senhora das Dores, no 15 de Agosto.

A esta Póvoa dedicou um profundo amor e respeito.


Mulheres à espera das Lanchas do Alto.
Póvoa de Varzim, cerca de 1940

A obra

Homem de ideais, pensador e historiador, a sua obra é uma referência na cultura contemporânea poveira.

A sua obra escrita reúne-se em publicações monográficas, crónicas de jornais, artigos em revistas de cultura marítima, actas de encontros, jornadas de formação profissional, conferências, seminários e catálogos de exposição tendo como interesse a cultura marítima do norte de Portugal e da Galiza.

Dos projectos de referência contam-se no imediato os que desenvolveu na Póvoa de Varzim, com destaque para a “Lancha” , o “Museu” e a “Biblioteca” mas muitos são os projectos que a sua modéstia tornou desconhecidos do grande público, como a musealização do santuário de Nossa Senhora da Abadia, em Braga, e o apoio que deu na constituição de numerosos núcleos museológicos e museus municipais do norte de Portugal.
Ao longo dos últimos anos tornou-se uma referência nacional nos estudos da especialidade marítima e piscatória, construção naval e tecnologias de pesca tradicionais.


Alar uma catraia para o alto da duna.
Póvoa de Varzim, cerca 1940


Referência na cultura Marítima


A sua personalidade marcou gerações antes e depois do 25 de Abril de 1974 e continua a marcar mesmo após a sua morte.

Historiadores, investigadores, escritores e alunos sempre o tiveram como referência no estudo da etnografia e da antropologia das comunidades piscatórias do norte de Portugal e Galiza.

Com um interesse pessoal pela cultura no geral e em particular a poveira, sempre abraçou projectos ousados. Desde 1993 que levou a Lancha Poveira aos Encontros da Federação Galega pela Cultura Marítima e Fluvial. Em 1997 a Lancha entrou no estuário do Rio Cávado e homenageou os pescadores de Esposende que a receberam de lágrimas nos olhos num momento inesquecível. Em 1998 levou a Lancha para a EXPO Universal de Lisboa onde teve a honra de estar em permanência. Em 1999 foi a vez do Festival dos Oceanos em Lisboa (onde ele próprio teve um grave acidente que lhe retirou autonomia e o debilitou definitivamente). Em 2003 entrou no estuário do Rio Ave e comoveu a vizinha comunidade de Vila do Conde, ancestral inimiga, que assim se rendeu à majestosa embarcação. Em 2004 levou mais uma vez a Lancha à Galiza.

Manuel Lopes tornou-se por direito próprio uma figura nacional e uma referência incontornável na cultura marítima do norte de Portugal e Galiza.

Tributo

Conhecemos o Manuel Lopes desde crianças.
O nosso pai era Faroleiro, um guardião dos perigosos nevoeiros e da noite…

Fomos por essa circunstância criados junto ao mar, ou melhor, aos mares. Mares diferentes, na fartura do peixe e na morte nos naufrágios de Inverno.

Mares de Caminha, de Vila Praia de Âncora, de Montedor, de Viana do Castelo, do Castelo do Neiva, de Esposende, da Póvoa de Varzim e de Matosinhos, aqui no norte. Mares da Ilha da Berlenga e do Cabo Carvoeiro, em Peniche, no centro. Mares da Ilha de Santa Maria, de Olhão, da Fuzeta e de Vila Real de Santo António, no sul. A costa toda… Mares onde o barco e as pessoas são entidades, com vida depois da vida.

Essa influência da cultura marítima, fez com que nunca acreditássemos que a Vida se esgotava no vazio da nossa morte. Tal como os velhos pescadores da Póvoa, comunidade onde vivemos durante mais tempo, sempre tivemos aquela Fé, sem ciência, que nos faz acreditar ingenuamente que os nossos mortos só morrem, verdadeiramente, quando os esquecemos.

Manuel Lopes. Entrevista à Radio Póvoa. Encontro de Embarcações.
Poio. Galiza, 2004

À Memória

“Só a memória enriquece e alimenta.
Não há pedra que mais sangre nem asa que mais nos liberte.
Talvez por isso os Saberes da memória respirem um tempo e um espaço muito próprios.

A morte, que tudo transfigura, pratica as artes supremas da imprevisibilidade. E, nesta imprevidência se compraz, irremediavelmente, a nossa humana condição.

Manuel Lopes
“O Barco Poveiro”, Prefácio, 1995


João e Ivone
Ferrol 7 de Julho de 2007

*****


Declamado hoje na Biblioteca Municipal Rocha Peixoto , Póvoa de Varzim pelo autor


Para a vida, Manuel Lopes


“Perturba-me a ideia de faleceres”
- Disse-lhe um dia. Respondeu-me:

é como queiras; a morte é igual à vida
silenciosamente “a gente”há-de amar noutra quietude, noutro
espaço…
não te importes, a chuva cairá e
tu escreverás versos até morreres, também.
da janela do meu quarto avisto tudo
como se quisesse abraçar num novelinho
os dias brancos de todos os meus anos
espanta-me o segredo da morte, sabes?,
e levedar lânguido de vénias terrestres
não é bem para o meu jeito
custa-me a andar, é o mistério do voo
que anda agora a apaixonar-me. livre
como aquela gaivota que sobrevoa o mastro,
o que eu quero, de facto, é o azul e o mar,
lá me encontrareis sempre, depois de enviar
as cartas aos amigos que as merecem.
quanto ao mais, continuai a lutar, a guerra…
porque é de cinza a leveza do meu corpo
e não quero restos a pesar a ninguém,
só quero o vento e o mar…,

- “peito em quilha!, ó Homem de leme!”
Respondi-lhe eu, para não chorar…

Poema de Aurelino Costa, 14 de Agosto de 2006

João marinheiro 2007

sábado, agosto 11, 2007

Não estás aqui comigo hoje...



Os dois na esplanada a jantar. O mar brilha. Um brilho de ouro que te emoldura o rosto. Beijo-te as mãos. Fechas os olhos. Não estás aqui, comigo, hoje…
João 2007
Fotofrafia de Barcoantigo 2007

domingo, agosto 05, 2007

Abro os olhos demasiado na escuridão…


Os barcos passam ao largo avisto-os daqui na quadratura da janela onde passo o tempo.
O mar hoje é um mar de prata plano e os barcos vogam rumo a todos os portos que não sei. Hoje estou só outra vez. De repente rumando a norte um pequeno avião rasga o céu e interrompe o meu silêncio contemplativo.
Recolho-me às palavras de novo. Às palavras que te queria dizer. Porque temos sempre palavras a dizer. E ficam sôfregas, estranguladas na garganta. E os olhos rasos de água salgada. E o mar aqui tão perto. Tão perto de nós. Se aqui estivesses pedia-te –Encosta-te a mim e deixa-te ficar. E eu adormecia nos teus olhos e dava-te as mãos. O momento das mãos fabuloso. Das minhas mãos nas tuas pequeninas.
Perdoa o meu divagar já, mas encontro-me perdido hoje. As horas são eternas, o sol demasiado quente e eu, aqui, preso a olhar os barcos que passam indiferentes no oceano mágico que observo da janela. Invento-te sempre. Invento o tempo que já não tenho junto de ti. Invento os minutos, as horas, os dias. Invento todo o tempo que quero viver contigo. Só tu te manténs em silêncio, um silêncio que me sufoca até quase sucumbir. Socorro-me dos anos de mergulho intenso e da experiência. O suster a respiração até ao limite. Vou sobrevivendo. Só a tua indiferença me tira as forças lentamente já.
Olho o céu em busca do pequeno avião que passou, é um ponto distante que brilha de encontro ao sol. Se aqui estivesses pedia-te, – não partas sem mim. É que eu já não sei. É que eu já não sei se és tu que vens pela madrugada quando durmo exausto de te buscar na memória. De te chamar com o pensamento, a voz embargada e rouca, as mãos vazias e frias de ti. Não sei se és tu que me atormentas o desejo pela madrugada quente enquanto nu, me deixo embalar abandonado no sono e procuro os caminhos que esqueci do sonho. Porque já não sonho? Porque deixei de sonhar desde que tu fechaste a porta e voaste sobre as águas do mar de prata de hoje. Queria ser o pequeno avião para ir ao teu encontro. Porque não vou? Porque já não vale a pena? Porque nunca atendes quando te ligo. E tenho um telefone com uma memória fantástica, mais de quinhentos números para onde posso ligar e só o teu me interessa sempre, e só o teu se mantêm em silêncio, sempre. E agora que faço no resto do dia que vai a meio. Se aqui estivesses pedia-te para me cantares a canção que me cantavas ao ouvido enquanto os teus braços me abraçavam o pescoço e eu com o coração aos saltos perdia as minhas mãos nos teus cabelos de olhos fechados a viajar no som da tua voz e a voltear nas palavras ditas. As saudades que tenho da tua voz. Do teu cantar terno. De ti inteira e por inteiro. As saudades.

Eu já não sei. Porque não sonho, mas o cheiro no quarto era o teu e o gosto na boca era da tua boca. Que me fizeste a noite passada? Hoje não durmo, vou fingir que durmo a ver se és tu que vens pela madrugada dentro no silêncio da alvorada fazer amor comigo. Hoje vou ficar desperto. Porque se foste sonho então aprendi de novo a sonhar contigo.
Vieste pela madrugada quente, eu abandonado no sono profundo, exausto. Deitaste-te sobre mim intensa, fresca, os teus seios nas minhas costas a acariciarem-me em arrepios de desejo. Abraçaste-me. Sim. Só tu me abraças desta forma sensual e intensa, só tu exalas o perfume do amor intenso que vivemos um dia.
Vieste pela madrugada a confessares ao meu ouvido num sussurro – Quero fazer amor contigo hoje! E eu aqui surpreso a sentir o peso do teu corpo em mim na penumbra do quarto rodo o corpo e és tu desnuda que me abraças, me ofereces os seios para beijar enquanto as tuas mãos se perdem no meu cabelo em carícias suaves de ternura. E a tua voz de novo – Quero fazer amor contigo hoje.
Abro os olhos demasiado na escuridão…

Anoiteceu. O escuro da noite embrulhado numa neblina espessa e húmida. Anunciada. Sei sempre quando o tempo muda de humor. Sinto no corpo uma espécie de dor incomodativa quando a humidade chega. Coisa de marinheiro velho cheio de manhas e de tempos de espera contemplativa. Perco-me a olhar o mar infinito demasiado. E a imaginar-te e a pensar as palavras – gosto de ti! Gosto de ti pela madrugada quando te imagino. No brilho das estrelas no céu. És uma espécie de estrela Polar. Uma lua brilhante. Uma constelação de pérolas suspensas. Madrepérola em reflexos metálicos. Gosto de ti pala manhã. No alvor do dia que se espreguiça. Gosto de ti quando desfraldo as velas, solto as amarras rodo num golpe a roda de leme a barlavento e passo a linha divisória da bolina cerrada e volto de roda num bordo largo no mar nubloso hoje. Sinto o mar que estrondeia na costa em cristas de espuma branca.
Tudo mudou de repente pela calada da noite, chegou a força imensa deste mar profundo, mar de fora, mar de fundo que me faz ficar vigilante. Navego a duas milhas de terra, a costear. Uma navegação de cabotagem encoberta pela névoa deste Agosto que principia agora. Deste verão que anda louco. Eu sei que sou louco. Que agora navego só. Que te invento em cada manobra. Que te imagino em cada refrega do vento. Em cada vaga cavada. Em cada retesar dos cabos. Em cada ranger do casco. E não me importo de te imaginar desta forma pessoal e louca. De te amar assim de uma maneira húmida e salgada e fria e enevoada e…

Eu sei que sou louco. Que posso fechar os olhos e pensar só em mim. Mas não consigo. O meu pensamento és tu. Porque eu já não penso. Já não vivo. Já não sei. Sobrevivo no mar de prata enevoado agora. Espero.
Espero.
Espero que o sol vença e acorde e abra os braços, e então eu, em tronco nu, ao leme como o capitão destemido navego por dentro de ti. Navego na memória tua inventada agora. Inventada ontem, inventada amanhã e nos dias todos que se seguirão na viagem rumo a sul do desespero.

Este é um tempo sem tempo. Sem marinheiros. Sem palavras. Só barcos desnudos de velas rasgadas como feridas abertas nas mãos que seguram a roda do leme em espasmos de graus, de rumos incertos, desconhecidos. Rotas. Derrotas. Estimas. Latitudes. Longitudes. Um imenso roteiro submerso de singraduras no tempo e na névoa que hoje teima em ficar abraçada ao mar. E eu atento, vigilante, canso o olhar tão gasto já, atento aos sons deste mar, ao restolhar das vagas de espuma na costa, lentas precisas, cadenciadas. Navego. Uma navegação abandonada. A agulha a cento oitenta graus libertos. Sul pleno. Tu ficas sempre a norte de mim. Demasiado a norte de mim. Não consigo a manobra perfeita para aportar em ti. As coordenadas na carta. O rumo certo. Um tempo estimado de chegada. Porque foges sempre que navego ao teu encontro e te perco na imensidão atlântica? Porque és assim?
– Porquê?
Porque voltas quando queres pela madrugada plena, nos dias em que estou demasiado exausto para te receber de olhos abertos. De braços abertos, de coração aberto. Já não fecho as portas da casa onde habito, mantenho as janelas abertas na noite e entra a chuva e entra o frio e entra o vento, só tu não. Espero-te sempre.

As gaivotas em bandos rumam a norte vencendo o vento, gritam umas com as outras, neste anoitecer. Tu não sabes mas anunciam o temporal no mar que ai vem depois deste dia tão calmo, de um mar estanhado sem vento, de aventura. Um mar que apetece como o rio tranquilo a desaguar para a foz. Tu não sabes dos sinais da natureza que nos informa, numa linguagem própria, feita de códigos secretos e de olhares e de percepções, de sentires. Tu só sentes o coração. Eu não. Os meus sentires são internos e externos, uma aprendizagem a pulso, uma espécie de código de sobrevivência na vida. A vida no mar é demasiado dura e bela e intensa para te explicar por palavras como se aprende. Sente-se só. Ama-se só, sem explicação possível porque não encontro as palavras pare te dizer. Posso dar-te a mão e vires de novo comigo a navegar pela memória. Desta vez não deixo que te percas. Que caias ao mar e sucumbas no profundo atlântico.

Já não sei. Sinto fome. Vou preparar um almoço solitário, um almoço feito de nadas. Liofilizado. De juntar só água. Plástico, sem sentimento, sem carinho, sem amor. Almoço moderno, destes tempos modernos. Uma sopa em meio litro de água. Um pacote dissolvido e dez minutos de lume. Um lume bamboleante, um púcaro bamboleante. O meu andar é bamboleante a bordo, espécie de bêbado no mar. Sou assim. Quando regresso a terra demoro a reencontrar o equilíbrio precário. Dizias-me nas poucas vezes que passeei contigo na beira Douro que o meu andar era estranho, que pisava a medo as pedras centenárias da Ribeira. Não sei, falta-me o balanço do barco. Andar descalço na rua como no convés. Sentir a tremura do casco em mim como sentia a tua quando te beijava. Já não sei.

Navego frente à barra do Douro e não olho para terra. Sigo rumo a sul. Engulo de um trago esta espécie de refeição que é sopa moderna, quente, a queimar por dentro e fico aflito. Quase de lágrimas nos olhos. Estava distraído a imaginar-te no pequeno restaurante onde costumávamos almoçar os robalos grelhados acompanhados de cerveja preta gelada. Ali perto de Lavadores. Nunca te disse mas agora o restaurante está fechado. Perdi a tua memória por lá. Fui em tua busca. A fazer a peregrinação dos lugares como costumo fazer às vezes quando fico aflito. As portas estavam fechadas. E agora como faço?
Volto para trás vencido pela evidência. Onde vou buscar a tua memória agora? Volto ao mar. Ao barco onde navego. Aqui recolhido no espaço confinado encontro-te sempre. Imagino-te sempre.
Amo-te ainda.

Quero confessar-te uma coisa. Sou-te fiel. Sou-te fiel como fiel é a bóia que amarra o longo aparelho do trol. Das redes imensas a pescarem no profundo. Da retenida que fecha a rede do cerco da sardinha. Espécie de cabo o meu amor fiel. Espécie de linha de vida que me liga a ti. Onde amarraste a ponta de mim? – Onde? – Onde? Farto-me de recolher cabo até ficar com as mãos em sangue e a ponta que chega é uma ponta interrompida, cortada de um golpe. Suspensa no vazio profundo do azul imenso que me aflige. O meu coração está velho já. Sou um velho lobo-do-mar louco de saudade. Louco de amor. O amor que confessei um dia. Já não sei. Não sei se o dia existiu ou tu exististe ou eu existo para além do poeta que te inventa. O navegador solitário e temerário das palavras por dizer ainda. Por inventar ainda. Por declamar ainda. O importante que era escutar a tua voz no meu ouvido durante o dia diferente da madrugada onde eu exausto me abandono num sono de sobressaltos e esperas e…

Reconheço-te por algumas marcas no corpo, és assim como as marcas que faço a terra, as marcas aos sítios do peixe os pesqueiros que são sítios secretos marcados pelos enfiamentos. A torra da igreja, o morro a norte, o bico do telhado que me indica o Parcel, o sítio onde pesco as fanecas á linha. Só, ali numa fraga do mar. Reconheço-te na penedia. Na linha de costa. No recortado de terra avistado do mar. E de noite. Reconheço-te no piscar das luzes. Na claridade da cidade grande, amarela na noite. As torres da refinaria a piscarem vermelhas. A chama na chaminé como tocha acesa.
Os braços de luz da Boa Nova, o relâmpago de Esposende, o abraço de Montedor. Brancos. As luzes aqui são brancas da cor do amor que sinto. As outras cores confundem-me, espécies de farolins de enfiamento nos molhes verdes e vermelhas a piscarem como luzes de néon na noite.
Reconheço-te pela constelação de sinais no braço esquerdo, espécie de Ursa menor, de estrela polar que exibes. Reconheço-te pelo sinal na tua nádega desnuda na madrugada quando a penumbra impera e a imaginação anda solta. No redondo dos teus seios, na aureola dos bicos duros do desejo que sinto em ti quando eroticamente te roças em mim num bailado de carícias. Os seios como dedos a percorrerem as minhas costas e eu arrepiado do frio húmido da névoa no mar do desejo que tenho de ti, de te amar. De fazermos amor agora neste momento. Hoje. Aqui no poço do barco que navega indiferente ao meu dilema, ao meu desejo, ao meu querer. Porque me atormentas o corpo?

Estou de novo só. Não sei se finalmente só. Definitivamente só. Demasiado só.
Porque me atormentas o corpo?
Porque me atormentas o desejo?
Porque me atormentas a memória?
E porque não falas mais comigo?
Que fiz de tão grave e errado?

Não deveria ter olhado para ti. Não deveria ter-te imaginado. Não deveria.
Os marinheiros são loucos e saudosos e amam. Não te dás conta do amor que tenho ao mar repartido contigo. Aos poucos dou-me conta que não me podes amar, porque não podes partilhar-me com o mar. Queres-me todo por inteiro para ti, – Como faço? Se o mar me está nas veias como o sangue. Que sem ele não sou nada e não vivo. Queres um amor morto no viver? Quero-te quando vens ter comigo, só. Nos outros dias não és minha, és como a gaivota, a andorinha-do-mar livre de voar. És minha quando pousas a bordo, porque queres. Recebo-te de braços demasiado abertos e se os fecho tens medo de ficar presa e bates asas e voas de novo e partes. Como queria ser o pequeno avião e seguir-te no voar.
Porque me apaixonei por ti. Porque não acreditas nas minhas palavras, nos meus gestos de adolescente, de miúdo a descobrir o amor como uma primeira vez, sempre. Porque te amo. E as palavras não chegam para te dizer o que me vai por dentro porque não consigo dizer nas palavras. Eu preciso sentir, entendes. Imagino-te. Imagino-te enquanto a tarde avança.
Vou para sul, passo ao largo da Murtosa, não sei se arribe à Figueira para passar a noite ou te espere no alto mar pela madrugada para vires fazer amor comigo. Vou esperar-te pela madrugada. Preciso de ti entendes. Para me sentir lúcido ainda. Sem ti como ocupo o tempo?

O mar cresce, a maré sobe. Em terra o sol espreita por entre as nuvens carregadas de cinza. Amanhã chove de certeza. Amanhã deixo as lágrimas caírem no rosto misturadas com a água da chuva e diluírem-se do sal que tenho entranhado no rosto e no corpo. Preciso da chuva em mim como dádiva de vida. A minha vida já não faz sentido. Tu não sabes que trouxe para bordo um cd do Jorge Palma que vou escutando até as baterias a bordo ficarem vazias ou o aero-gerador parar de cansado, e a musica que me acompanha, porque gosto de musica a acompanhar-me pela vida para não me sentir só em demasia, é uma musica repetida sempre uma e outra e outra e ainda outra vez. Uma espécie de sonho na “casa do capitão”que me acalma, porque o som do piano dedilhado e do acordeão me abrem as portas da euforia, alegria do viver e sonhar. Se estivesses comigo agora beijava-te e saberias que te amo.

João, praia de Fornelos 2007

Fotografia de Barcoantigo

quinta-feira, agosto 02, 2007

Quando chegas….


Quando chegas não dou por ti – Vês!
Contra o vento, não sinto o teu cheiro. Chegas mansamente, quase um sussurro transportado na brisa aqui no jardim público onde agora mato o tempo. Todo o tempo que tenho ainda. Vens e abraças-me pelas costas. Os teus braços de roda de mim. Um circulo perfeito de ternura. Uma espécie de laço que perdura ainda no tempo. E eu fico assim alquebrado, amarrado em ti, – Pára ai! Fica quieta para que eu me extasie de ti. E depois de me sussurrares ao ouvido, – Cheguei! Depois de brincares com a minha orelha em beijos leves e libidinosos, sentaste ao meu lado a olhar para mim e eu como da primeira vez fico inquieto. O banco torna-se demasiado grande. A distancia a ti enorme. Olho-te e tu és a luz que me cega, a luz que me acaricia o olhar velho e cansado já dos anos de espera.
Tardaste tanto amor. O banco do jardim é testemunha do tempo que te espero. Tu não sabes das cores que o pintaram ao longo dos anos, mas hoje é de novo branco como da primeira vez.
A primeira vez. Ainda lembras? O branco da tua saia. O branco do banco do jardim. O branco das tuas mãos. E o sabor dos teus lábios. Ainda lembras?

Posso percorrer os traços do teu rosto. Acariciar as rugas pequenas no contorno dos teus olhos na ponta dos dedos, – Pára! Fica ai nesse instante. Quero olhar-te outra vez e outra e outra, – Fica quieta! E os meus dedos tocam-te ao de leve no rosto a percorrerem a tua face, – Pára! Quero-te próxima na distância do meu olhar. Sentir a tua respiração em mim. O calor do teu corpo para me aquecer. E os dedos vão a percorrer a tua pele a deslizarem nos teus sobrolhos. Fechas os olhos instintivamente e as pestanas fazem cócegas nos meus dedos espécie de corrupio eléctrico.
– Pára! Chego-te a mim e beijo-te os olhos fechados. E agora sou eu que te abraço para que nunca mais partas. E sinto o sabor da tua pele e imagino o teu olhar por dentro de mim. Estremeces. Estremeces sempre que te abraço. Como uma primeira vez. És a minha miúda da cidade que invento e que ainda guardo em segredo. Que tenho eu de ti senão uma imensa saudade.
– Fica quieta agora! Olha para mim de novo e brinda-me com o teu sorriso. Tanta ternura em ti hoje. Tanto amor no teu olhar hoje…


…Tu, só acabas. Só morres na minha memória quando eu partir também. Lembras o amor eterno que te prometi um dia. Não me faças quebrar a promessa e deixa-te estar ai na lembrança onde te aconchego todos os dias para que não me sinta só sem ti…





João 2007
Foto de Stéphane Kindler