quarta-feira, outubro 29, 2008

hoje...

nos amaríamos

apenas isso

incondicionalmente

sem reservas

assim seria a entrega

verdadeira

sem medos sem pressas

hoje mais do que nunca seria

pq já existimos um para o outro.

o mistério esta lá fora

acreditas?

acho q sim

e não dentro de nós mesmos .

dás-te conta da beleza destas palavras hoje


tudo entre nós é belo... um cheiro de inocência

sexta-feira, outubro 24, 2008

ainda não sei responder-te

Perguntaste-me se era feliz. Não te respondi. Fiquei a olhar-te a sorrir e tu entretanto mudaste de assunto. Eu a pensar. Sim era feliz mesmo cansado, sentado no sofá recostado para trás olhos fechados numa espécie de sono, te sentia, uma pena, a sentares nas minhas pernas a abraçar-me o pescoço, a beijares-me as orelhas, a face, a boca, a tua, doce a aninhar-se em mim. Era feliz quando abria os olhos devagarinho a imaginar-te e os teus olhos ali junto dos meus a brilharem doces a afagarem-me o sentir. Era feliz quando tu num repente despias a blusa, libertavas os seios tão formosos e te encostavas ao meu peito e baixinho ao ouvido, quase um sussurro, pedias – massaja-me as costas.

Aqui estou sem te saber responder ainda. O peito vazio do teu, o olhar fechado, o corpo cansado


João marinheiro, 2008

sábado, outubro 18, 2008

A tua carta II...



( Livro de Contos)

Custa-me escrever. Tenho os dedos cansados, fazia muito tempo que não escrevia assim desta forma, em papel, tenho de parar a descansar as mãos, acho que exerço demasiada força a agarrar a caneta, estou nervosa, é isso, tenho tantas coisas para te dizer que tenho medo de não o conseguir, de me esquecer das importantes. Se me cansar faço uma pausa na escrita e depois recomeço com nova força, as ideias mais claras a falar-te desta forma escrita.
Meu querido de sempre. Também eu tenho de novamente pedir-te desculpa. Pelo meu silêncio estes anos todos. Pela saudade. Pela ausência que tantas vezes falas. Como te disse atrás, faz muito tempo comecei a ler as tuas cartas. Alimento a secreta certeza que és tu que as escreves. Só podes ser tu, porque senão é alguém que soube de nós. As coincidências são tantas meu querido. Resisti sempre à tentação de te responder, de te comentar. Tocam-me sempre tanto as tuas palavras. Quando te leio o tempo é só nosso, tens razão. Quando for a Portugal irei à nossa praia do Cabo do Mundo, e depois visitar-te. Não sei. Preciso de ir para me reencontrar, para te reencontrar, para nos reencontrar-mos os dois primeiro em pensamento, e depois frente a frente. Tenho medo desse momento.Também eu envelheci, não sou mais aquela menina como tu me chamavas, de olhos negros sem fim, e cabelos compridos da cor da noite estrelada, ainda me lembro das tuas palavras. Como podia esquecer as tuas palavras. Eu sei que me escreves. Desculpa insistir, ou alimentar a esperança que me escreves. Às vezes quando leio os poemas que publicas, sei que são para mim as palavras. Porque descreves pormenores nossos de tempos passados. Eu sei, e fico a sorrir com uma enorme ternura no coração por ti. Sempre nos quisemos muito. Acho que, de nos querermos tanto, partimos os dois para crescer, só livre o amor floresce e amadurece no coração das pessoas. Júlio, desesperava quando partias de viagem mar a dentro a correr perigos, tantos meses sem saber de ti, Júlio. Acho que nunca estive preparada para sofrer assim da forma que sofria. Sempre a angústia de poderes morrer no mar. O teu naufrágio na Terra Nova foi o despoletar da minha dor, tive que partir, de me libertar, por isso fui sem me despedir, sabia que não gostavas de despedidas, que as pessoas vinham e iam na vida. Ainda escreves isso, que não gostas de despedidas. Não me despedi de ti, levei-te comigo, dentro de mim, nunca te contei. Perdi o teu contacto escrevi-te algumas vezes mas as cartas foram devolvidas, depois habituei-me também à tua ausência. Sabes, eu acho que esta vida é feita de hábitos, de gestos, de rituais diários, que nos moldam, nos acomodam, e depois o tempo burla-nos, porque nos faz perder a vontade, nos faz ganhar medo de mudar, e vamos ficando, ficando, ficando. As silvas avançam na memória e tomam de assalto o tempo. Adormecemos por dentro. Morremos no coração…Tu não morreste no meu coração, ficaste adormecido, embrulhado na memória, guardado como tesouro. Descuidei-me Júlio e abandonei a memória tua durante anos confesso. Perdoa-me meu querido. Tens um coração tão doce, sinto que me perdoas, e sei tão pouco de ti, e tenho tanto ainda para te contar.
Tive de parar de escrever, e recomecei outra vez esta carta, quis que ela fosse em papel, escrita pela minha mão, uma forma de me sentires quando me leres de saberes que sou eu que te escrevo com o coração em sobressalto, apertadinho, a tremer, emocionada.
Tenho de te pedir também desculpa, penitenciar-me mil vezes. Nunca te contei, quero dizer numa das cartas que veio devolvida falava-te dele do nosso filho. É Júlio temos um filho, perdoa-me outra vez, nem eu sabia quando parti mas levava-te comigo no ventre. Temos um filho que é exactamente como tu. Todo tu. Teimoso, determinado amoroso terno. Morris ficou espantado quando ele, o João Pedro nos disse que ia seguir a carreira na Marinha, eu apanhei um susto no momento, depois pensei, vai atrás do pai. Sim, tem o teu nome, Júlio. João, escrevi-lhe a contar tudo, a contar quem eras, quem és, onde nós moramos no Porto e em Lisboa, e onde estás agora, sim eu sei, a Sílvia contou-me onde tu estás a viver, o Zé antes de ter o enfarte soube de ti, um anuncio no Jornal Noticias acerca de um Simpósio sobre recursos marinhos e navegação na Sociedade de Geografia, viu o teu nome, Capitão João Júlio entre os conferencistas convidados. Não conseguiu ir ter contigo, mas obteve a tua direcção, por isso te escrevo finalmente com a esperança, quase certeza que vais ler a minha tão longa carta.
O João Pedro vive na Austrália em Sidnei, tas a ver, também ele está longe meu Deus, e tenho tantas saudades. Costumo falar com ele por telefone e escrevo-lhe por e-mail. Só vem a Londres uma ou duas vezes por ano, anda pelo Pacífico entre a Nova Zelândia e Austrália. Também ele é Capitão da marinha mercante.
Sempre o mar meu querido, tanto mar entre nós a separar, a afogar o amor. Ainda sentes amor por mim? - Perdoa, que parva sou em fazer esta pergunta. Somos amigos, bons amigos, é melhor, sermos assim, amigos eternos, amigos de sempre, amigos para sempre, amigos até ao fim, como escreveu Vergílio Ferreira. Não sei se alguma vez leste o livro? -Deixa, que tonta sou em estar a falar-te estas coisas se temos tanto mais importante para conversar. Contei ao João Pedro e depois falei com ele por telefone, vem ter comigo a Londres, e com certeza vai a Portugal ter contigo, vais gostar de o conhecer. Tal pai tal filho. Se eu me sentir preparada também vou. Ainda não estou. Ainda não estou preparada para te olhar de olhos nos olhos. Tenho medo que o coração me falhe, ou me rejeites, ou não te encontre. Não te sei explicar Júlio. Mas quero ir e quero visitar a Sílvia também, recuperar o tempo perdido, recuperar as memórias. Dás-te conta que são elas, as memórias, que nos alimentam na saudade, na dor, na ausência, são elas que nos prendem à vida, nos seguram de pé quando não conseguimos levantar a cabeça, quando estamos aniquilados. O poder das memórias Júlio. Nestes últimos três anos tenho andado a treinar a memória a reavivar o passado, e de cada vez me lembro de mais um pormenor, e outro e outro. Fantástico o poder da mente o poder do coração. Tanto que quero saber de ti. Já não me chega o que escreves na net. És tu que escreves não és? Eu sei que sim.

Meu querido Júlio agora já sabes o importante, que temos um filho, nosso, que sabe de ti e de mim, o nosso segredo, e agora sabes de mim, deixo-te também o meu número de telefone, se me quiseres telefonar. Telefonas-me? Espero o teu telefonema. Escreves-me? Espero uma carta tua a dar-me coragem para ir ai a Portugal ter contigo. Damos um abraço Júlio, abraças-me? Deixas-me sentir o teu coração junto do meu outra vez? Perdoa, estou piegas, tenho os olhos inundados. Emoção Júlio. Emoção. Havemos de nos encontrar e cumprimentar como fazem os amigos de verdade.
Fico à espera de uma carta tua, agora sabes onde me encontrar. Agora é o tempo dos reencontros o tempo da serenidade. Diria o tempo dos amantes. O tempo sempre o tempo meu querido.
Espero por ti.

Beatriz

Londres Agosto de 2006

Fotografia, Oleo sobre tela de João renato

quinta-feira, outubro 16, 2008

Do desencontro... III parte




( Livro de contos)

Obrigado. Respondi enquanto apertava a mão estendida. Agradeço, em meu nome e de minha mãe tudo o que fizeram para proporcionar o melhor conforto ao meu pai durante o tempo que aqui esteve. Obrigado mais uma vez.

-Não tem que agradecer. A nossa missão é mesmo esta, somos uma espécie de retaguarda avançada das famílias, parece irónico não é, retaguarda avançada das famílias, mas é verdade. Sabe, no mundo actual tão rápido de tempo, tão voraz, os velhos vão ficando para trás, é como se estivéssemos para apanhar um comboio na estação que começa a andar de repente, só os mais afoitos e ágeis conseguem correr e saltar para bordo, os mais fracos ficam, aqui os mais fracos são os velhos, não quero dizer que o capitão Júlio fosse um fraco, longe disso, estava era velho e principalmente só, e os velhos quando estão sós tendem a desmoronar as defesas da vida que construíram, tendem a ficar parados à espera. O senhor perdoe a minha franqueza, o meu modo de pensar, são já vinte anos dedicados à Terceira idade, encaro a profissão já como uma espécie de missão, entende.
Mas o capitão Júlio era um grande senhor, muito lúcido, muito observador, muito cavalheiro, só as pernas não ajudavam, tinha dificuldade em andar, e o coração ás vezes pregava-lhe umas partidas. Foi pena o senhor não ter vindo mais cedo, ele estava, não sei, se à sua espera, mas estava à espera de alguém. Ás vezes conversávamos. Ajudou-me bastante com os seus conselhos, em algumas decisões difíceis que tive de tomar nestes últimos anos em que aqui esteve a partilhar o lar na nossa companhia. Nunca lhe agradeci a ajuda que dava de espontânea vontade a conversar comigo.

Por vezes acontecia que nos sentávamos os dois ali na alameda ao inicio da tarde e ele puxava a conversa, sabia sempre quando alguma coisa me preocupava, era muito bom observador, olhe, era tanto que eu sabia sempre como iria estar o tempo no dia seguinte, era só perguntar-lhe que logo me dizia -amanhã, pois amanhã! Ora deixa cá ver o céu. Amanhã pois, amanhã vai estar sol, e um ventinho de norte miudinho, uma nortada fresca. Ou então dizia-me; - chuva! Amanhã vai estar um dia cinzento com chuva, mas temperado o dia, ou fria a noite. Bastava-lhe olhar o céu. Eu nunca consegui entender a percepção que tinha para ver o tempo. Quando o questionava ria-se, dizia que aprendeu a saber do tempo a atravessar os oceanos.

Mas desculpe-me outra vez. É que eu gosto bastante de conversar. Mas vamos ao que interessa, estou aqui para cumprir as ultima vontades de seu pai. Como lhe foi dito pela Hermínia, a senhora que o atendeu, ela avisou-me que o senhor aqui estava. O seu pai deixou algumas instruções escritas, e eu como fiel depositário dessas instruções procuro que se cumpram da forma que ele as delineou. A parte em que o lar estava directamente envolvida foi integralmente cumprida, agora a outra parte que não sei o que seja está aqui nesta carta que o seu pai me entregou, penso eu com as suas vontades. Como sabe todos os seus pertences iriam ficar aqui durante os próximos 5 anos até alguém aparecer para os reclamar, se isso não acontecesse, findo esse prazo, reverteriam a favor do Lar e logo lhes daríamos o fim mais conveniente. O seu pai deixou uma conta bancária também, a ser administrada pelo Lar durante esse tempo, findo o qual a conta reverteria para o Lar anualmente até se esgotar, mas tem toda a documentação detalhada no meu escritório se tiver a amabilidade de me acompanhar.
- Com certeza que o acompanho, é minha intenção recolher os pertences do meu pai e levá-los para Londres para junto de minha mãe, irei pensar nisso depois de ler então o conteúdo da carta que deixou.

Sentia-me sofucar. Precisava urgentemente de sair dali, de me descalçar e sentir a areia da praia para me acalmar, perder o olhar na lonjura do horizonte salgado do mar que amo. Precisava do cheiro da maresia, do fresco da manhã para me avivar a lassidão que me entrava pelo corpo como uma maré viva de força desconhecida. Precisava de reagir, sair dali. Lembrei-me de ti da falta tua neste momento. O nosso amor tão vazio já tão distante no tempo.
-Vamos! Disse baixinho enquanto me dirigi para a porta. (continua)
Fotografia, Rio Minho em 1913

domingo, outubro 12, 2008

Do desencontro...II parte



(Livro de contos)


Sou só um homem de mar só isso. Um homem do mar habituado a guardar as emoções, a ser frio de sentimentos, a ser máquina nas emoções, a não falhar, a saber comandar. Mas agora sinto as pernas a cederem, uma tristeza a invadir-me o corpo, uma angústia, um vazio inexplicável. Sinto-me a falhar. Estou aqui á porta do quarto que foi dele e sinto que falhei em alguma coisa. É este o quarto do meu pai, semelhante a um camarote de navio, decorado assim, simples, arrumado, deu para ver que sim numa mirada rápida, uma janela, uma cama estreita, uma secretária com um candeeiro e uma cadeira, um pequeno computador portátil fechado, um caderno de capa prata, um estojo de lápis e canetas, uma caixa castanha em couro aberta com um sextante reluzente no lado direito, um livro fechado com um marcador das paginas em couro preto e livros arrumados numa estante, um guarda fatos com espelho e dois gavetões, um tapete com uma rosa dos ventos a cobrir o chão todo e a indicar o norte. Demoro-me a olhar o tapete, parece-me Arraiolos, quase de certeza, mas o motivo náutico não é característico das tapeçarias de Arraiolos, e o Norte desta forma? Certo. O norte a coincidir, confirmo pela agulha que tenho no relógio de pulso. Fantástico. Teve de ser feito propositadamente para aqui só pode ter sido. Homem estranho este a quem não posso chamar de pai, já não sei. De repente ganhei dois pais ausentes, dois pais mortos, um cheio de memórias outro cheio de nadas, e são esses pequenos nadas que me afligem, que me querem dizer tanto, que me podem explicar quem sou, porque lhe sigo as mesmas pisadas de vida sem o saber, porque sou exactamente igual diz a mãe. Como pode isso ser possível.
Agora entendo porque ela me dizia que era igual ao pai. Morris nem nadar sabia. Morris não gostava de mar. Se éramos contrários no gosto pela aventura. Agora percebo as palavras da mãe.
Passo os olhos na estante dos livros. Olho os títulos. Alguns de relance, fujo à tentação de os tocar de os folhear. Sempre me fascinaram os livros, e manusear estes será profanar a vida dele, os seus segredos os seus gostos, quem sabe reler as frases sublinhadas, as páginas marcadas. Sensações estranhas me percorrem o corpo. Olho de novo, Guerra e paz, O dom silencioso, O homem e o mar, Cem anos de solidão, Os jardins da memoria, Arte de marinharia, Navegação astronómica, Ser capitão na marinha mercante, Tábuas náuticas, Manual de sobrevivência no mar. Tantos livros, técnicos e literatura universal, separados uns a um lado outros a outro lado arrumados por tamanhos e temas. Neste pequeno quarto tudo está no lugar certo. Na parede várias cartas náuticas, um mapa-mundo com rotas traçadas, coordenadas, pontos de referencias anotações escritas a tinta permanente numa letra vincada perfeita. Nisso não somos parecidos, a minha letra é uma desgraça de gatafunhos, penso comigo próprio.
Estou aqui à meia hora, só, no seu quarto, sinto-me estranho e ao mesmo tempo num ambiente familiar. Volto a aproximar-me da secretária, abro o livro, reparo que tem umas capas colocadas, talvez para o proteger, todos os livros estão impecáveis de conservação, como novos, como se não tivessem sido manuseados. Abro e folheio. Nunca li este livro; “Todo o tempo do Mundo”, seria este que estava a ler? Estranho o título. Fiquei apreensivo. Curioso, sem respostas, sem perguntas para fazer. Olho de novo em volta a ver os detalhes, a tentar descobri este homem nos pequenos pormenores. Aqui permanece o silêncio, só interrompido pelo vento nos ciprestes da alameda ou o barulho do mar que escuto por vezes misturado com o som da rua vindo da janela entreaberta. Sinto um calafrio, é estranho este lugar, uma penumbra, uma meia-luz a espalhar-se nas paredes, reparo agora, de um azul água discreto, suave, espécie de mar calmo. Estou parado ainda quase na porta sem coragem para entrar no seu mundo, sinto-me um salteador de tesouros, salteador de memórias, sei lá, todo eu estou confuso, todo eu tremo todo eu não me reconheço. Quem foi este homem que se agiganta em sentimentos dentro de mim. Não sei. Já não sei se devo querer saber e profanar a memória, os segredos, ou virar costas. Mas estou curioso, porque me informou a auxiliar do Lar que ele estava á espera de alguém? E porque planeou a guarda das suas coisas por tanto tempo, 5 anos de espera? Sabia de mim? Da minha existência? E a tal carta que ela me falou? Que noticias lá estão?


Batem à porta, dou um salto interior, acordo por momentos, não sei se breves não estava aqui, vagueava a tentar descobrir, a tentar ver no rosto da mãe sinais deste homem, deste pai que nunca o foi, deste pai que não sei se renegue se abrace, se ame, se odeie. Estou parado a olhar a pequena foto junto da cama na pequena mesa-de-cabeceira, é a mãe a descer umas escadas a sorrir, é a mãe ali estática a olhar-me, a mãe sempre esteve ali ao seu lado. Tocam de novo á porta duas pancadas suaves. Acordo outra vez desta espécie de sonho, desta espécie de pesadelo, não consigo reagir com a lucidez, os reflexos anestesiados

- Bom dia. Informaram-me que o senhor estava aqui. Sou Ernesto Vieira o director do Lar, sei que é filho do senhor Capitão Júlio, antes de tudo os meus sentidos pêsames pela sua morte. ( continua)

Foto, Estaleiros Mónica Gafanha da Nazaré

terça-feira, outubro 07, 2008

no dia de anos...


( livro de contos)


Beatriz. Beatriz.


Logo hoje recebo a tua carta. Logo hoje. O dia dos meus anos. Nem imaginas como estou por dentro. O meu coração fraco ainda a bater devagarinho, cada vez mais devagarinho, quase a despedir-se. Lembras de te falar dos cachalotes nos Açores, que via quando atravessava o mar, lembras? E te dizia que por vezes fracos, iam morrer à praia. É quase assim que estou Beatriz, a morrer na praia do cabo do mundo. A nossa. Já não sei. Sou um velho tolo.
Agora a tua carta nas minhas mãos a falar-me de ti. As minhas mãos cansadas e tremulas Beatriz. As mãos que tu gostavas. As mãos que te afagavam, as mãos que te seguravam minha, as tuas nas minhas entrelaçadas.

Beatriz. Beatriz.

Saboreio cada palavra tua devagarinho para lhe sentir o sentido, a profundidade da fala. Em cada frase fecho os olhos a imaginar-te, a tentar sentir-te, a tentar escutar o som da tua voz. O brilho dos teus olhos. Perdoa-me. Já não sou capaz. Já não consigo. Já não te sei desenhar de memória. És um esboço em mim cada vez mais esbatido, e agora a tua carta Beatriz. Meu amor. Não sei se te ame ainda ou te odeie. Não, não posso manchar de negro o meu coração, tu és amor ainda, sempre em mim. Foste sempre amor em mim. Perdoei-te quando foste embora, compreendi porque foste. Não foste feita para amar um homem do mar a cheirar a maresia, a saber a sal, de olhar perdido no horizonte, eu era assim não era? Perdoa-me. Não soube amar-te com o lado certo do meu coração. Agora já não me serve o coração. Está fraco. Inútil. Velho como eu, arrumado aqui neste corpo que se alquebra como os velhos navios do bacalhau se alquebraram todos abandonados. Perdoa falar ainda de barcos e de mar. Sei que não devo, mas corre-me por dentro no sangue. Nem sei se ainda tenho sangue por dentro, ou uma mistura de saudade e água salgada a queimar-me o coração. Deve ser isso. Só pode ser isso que faz anos me substituiu o sangue lentamente, e o corpo aguado vai corroído naufragando lentamente. Foi isso que me aconteceu. É isso que me acontece. Já não tenho conserto possível. É a quilha, sabes. A quilha e o cavername.
E agora Beatriz a tua carta nas minhas mãos. A tua carta a dar-me noticias tuas a falar-me de ti da tua vida. Eu sabia. Eu sabia que um dia ias voltar, por isso deixei a casa no Porto, não me desfiz dela. Perdoa porque a abandonei, perdoa-me porque também te abandonei na memória, não consegui evitar, e a dado momento da vida quando ia ao Porto à nossa casa não conseguia ver-te nítida na lembrança, não conseguia escutar a tua voz em lugar nenhum, não conseguia sentir o teu cheiro nas roupas da cama. Desapareceste da casa Beatriz. Deixei-te fugir de lá, depois era uma violência em mim tentar reaver-te de memória, deve ter sido por isso que deixei de sonhar a dormir faz tantos anos. Existes em mim por dentro como uma capa que reveste o coração por dentro, sem acesso exterior mas que existe por dentro. Estás em mim incrustada.
Desculpa. Não devia escrever estas palavras, porque são palavras vãs já a esta distância do tempo e o meu coração já não vale nada. Foi por isso Beatriz que abandonei a casa no Porto. Acho que faz mais de 25 anos que não vou lá. A Câmara quer ficar com ela porque está entalada por prédios altos, e dizem que se não faço obras reverte a favor do Município. Já não me interessa. Que dizer não interessava Beatriz, até saber do nosso filho. Porque nunca disseste-te. A dor que tenho dentro, um naufrágio imenso, um temporal imenso. Sofro uma dor que queima, ao pensar que toda esta minha vida foi uma vida sem sentido. Dou-me conta que fui pelo mar errado. Uma inundação da alma Beatriz saber que temos um filho e eu ter sido sempre um pai ausente, desconhecido, indigno da palavra. Mas eu sabia que um dia tu virias ao meu encontro, eu sabia. Esperava-te para me despedir.
Agora a casa no porto é para o teu filho. O nosso filho que não conheço, não sei o nome. Se ele a aceitar. A casa de Lisboa vendi-a quando vim morar para a vila. Não me fazia falta, também vendi o veleiro que tinha, ficou nos Açores anos atrás. Lembras São Martinho, é aqui que estou, na pequena enseada, é uma boa praia para morrer, um sítio sossegado onde ainda sinto o aroma do mar, a ternura da nortada, os gritos das gaivotas. Tenho uma janela de onde observo o mundo. Um mundo pequenito agora, já me chega.

A tua carta Beatriz queima-me os dedos de saudade. Sinto-me impotente aqui, preso fechado, queria tanto ver-te uma última vez. Eu sei que não é possível. Eu sei
Fico com essa mágoa dentro a denegrir-me a memoria. Maldito orgulho o meu em nunca te ter procurado. Havia de te encontrar. Mas para quê. Tinhas uma vida nova, longe do mar. Casada, feliz, realizada profissionalmente. Gostei de saber minha querida. Nem tudo se perdeu nesta nossa vida desencontrada. Nem tudo foi mau. Encontraste o amor e a felicidade. Ainda bem. Eu nunca te pude dar isso que ansiavas. E tu, tão nova, tinhas a ânsia de voar, crescer por dentro, de conhecer o mundo. O amor tem de ser livre para crescermos não é verdade. Tantas vezes falamos isso um ao outro. Escolheste o teu caminho o teu mundo. Não o meu mundo de água salgada, de longas noites de medos. Não. Este é um mundo fraco onde habitei nos últimos 50 anos. Corri oceanos e não sou de lugar nenhum. Atravessei continentes. Pisei terras distantes, conheci cidades imponentes. Dormi em camas de todos os portos. Esvaziei a paixão no corpo de mulheres viajantes do tempo. Não pertenço a lugar nenhum. Não tenho amigos. Não tenho raízes. Amava os barcos, é isso, foram os meus amores a vida toda. Um amor inútil. Sofrido. Cheio de vazios e de trabalheiras. De angustias tantas vezes. Agora aqui a pensar em tudo, acho que não valeu a pena. Que me enganei. Que estava errado na profissão, que o amor era um amor falso. Aos poucos estou a renegar os barcos, no entanto só a bordo fui feliz, só os barcos me deram a tranquilidade e o equilíbrio para vencer a saudade tua. É verdade. Tornei-me num viciado na saudade tua, e agora não sei como me curar, ou sei e espero. É isso espero a cura de ti. Esta carta é isso, sinto que sim, sinto como os cachalotes a minha hora, e já estou na praia Beatriz. Perdoa-me porque desisto, mas já não tenho força suficiente para teimar. O corpo não ajuda estou velho. E estou a renegar os barcos que amo e o mar que foi a minha vida.
Beatriz. Beatriz meu amor agigantado. Meu amor Adamastor. Meu amor cabo dos medos.
Fico à espera aqui. Tenho todo o tempo do mundo ainda para que voltes um dia.


Estarei cá.
Eu ou as memórias minhas.

Amo-te ainda. Não. não te amo ainda. Amei-te sempre toda a vida é isso, e sou um velho louco e tolo em estar a escrever-te isto aqui. Nunca vais ler esta carta. Escrevi-te algumas, que nunca enviei. Não sabia para onde. Escrevia-te quando atravessava os oceanos, em dias que a lua espelhava na água profunda, em dias de tempestade. Todos os dias eram pretexto para te escrever. Quase sempre arrancava a folha do caderno e a lançava ao mar. Era o orgulho em não dar parte de fraco, afinal foste tu que foste embora sem te despedires de mim. Deixei de saber de ti quando deixei o Bacalhau e me separei do Zé o meu antigo imediato. Rumei à América e ao Pacífico perdi-me pelo oriente durante anos. Quando voltava a Portugal sentia-me um estranho por cá só demasiado só. Portugal mudava lentamente. Por sorte não apanhei a guerra em Africa, valeu-me andar na campanha ao bacalhau. Deixa. Não leias esta parte. Que tolo estar aqui a lamuriar-me.
Tenho a tua carta aqui na frente dos meus olhos, para ler outra vez devagarinho. Saboreio cada palavra tua devagarinho para lhe sentir o sentido, a profundidade da fala.
Fico à espera.

Estarei cá.
Eu ou as memórias minhas

Teu ainda sempre (continua)

João Júlio
Cap. M. Mercante

domingo, outubro 05, 2008

Do desencontro…




( livro de contos )


Resolvi ir em tua busca, o pai tardio que com surpresa descubro agora. Olhar-te de olhos nos olhos para tentar perceber tudo o que se passou. A carta da Mãe foi uma surpresa, um estardalhaço em mim, a revelação do seu segredo tão bem guardado.
Como se guarda um amor desta forma durante tantos anos sem que se perceba?
Morris sempre foi o meu pai, não conheci outro, nunca duvidei do seu amor, foi ele que me criou, mas agora depois da conversa com a mãe quero saber a verdade, quero ir ao fim da história. Quero saber quem foste. Que espécie de marinheiro foste tu na vida dela. E quero perceber porque o mar também me chamou a mim, esta ligação aflitiva que temos. Agora algumas coisas começam a fazer sentido. Esta procura do mar, a ânsia de navegar, sentir o vento e o sal no rosto e no corpo, o barulho abafado dos motores, o contacto com o aço frio e húmido dos cascos, de atravessar os oceanos sem parar. Não pensar em nada, só em levar o navio a bom porto e depois de atracar fechar os olhos e descansar enquanto se descarrega e carrega de novo e partir, reduzir o contacto com terra firme ao mínimo indispensável. E o nome. A mãe perpetuou a tua memoria dando-me o mesmo nome sem nunca fazer uma referencia a isso, só agora na carta que me escreveu, e que me fez deixar o emprego que tinha longe de tudo.
Sidnei é do outro lado do mundo. Imaginas onde fica a Austrália. Pedi uma licença sem vencimento por seis meses e vim para a Europa directo a Londres conversar com a mãe. Não sei pode ser impressão minha pode ser, mas acho-a diferente, mais aberta um, olhar mais vago, uma ruga nova na fronte uma voz mais saudosa. Não sei o que se passou com ela nestes últimos tempos, faz mais de um ano que não vinha à Europa, nem sei bem porquê, mas acho que eu também ando a fugir de mim próprio a desviar-me do coração a esquecer-me propositadamente.
Agora estou aqui na vila à beira mar onde a mãe me disse que o capitão Júlio vive, uma residência de idosos, o antigo palacete da vila estilo colonial. O facto é que já o conheço por fora, de todos os cantos. O facto é que já aqui ando a tentar ganhar coragem para transpor o portão vai fazer três semanas, o facto é que já fui a Lisboa e ao Porto às ruas onde eles moraram. O facto é que a casa do capitão está abandonada, a cair, envolta por silvas que ocuparam o pequeno jardim. O facto é que a mãe a descreveu com pormenor, bastou-me olhar para saber que era aquela a casa. Baixa, duas janelas, pintada de branco e azul, o azul ainda se notava e o branco era um amarelo esbatido e sujo agora. A mãe disse-me que abandonou a casa tinha vinte e um anos, cinquenta anos portanto. Meio século meu Deus, meio século de vida apagada, meio século de emoções amordaçadas. Que espécie de amor foi o deles, que espécie de homem é o capitão? Estou cheio de perguntas, cheio de interrogações.
Preciso de o olhar, de o ver para tentar perceber, tentar obter respostas a milhares de perguntas que me enchem a cabeça estes últimos dias. Caminho em direcção à entrada principal. Toco à campainha. É o tempo de resolver finalmente todas as perguntas. Todas as interrogações.

- Bom dia! Por favor, queria visitar o Sr. capitão Júlio, penso que ele vive cá, foi essa a indicação que me deram.

- O Ti Júlio? Ele não gosta que lhe chamassem capitão. Dizia que esse tempo do mar já tinha passado. Que já não era marinheiro.
- Que já não era?
– Sim. O Ti Júlio, era assim que o tratávamos aqui, faleceu fez agora três semanas. Uma manhã não desceu para o pequeno-almoço logo pelas sete da manhã. Ele era um madrugador, e muito bom conversador. Logo pela manhã nos riamos com as suas graças, sabe. Estranhamos, pensamos que estivesse doente. Fui eu que fui ao quarto dele para o acordar. Dormia. Parecia que dormia, olhos fechados, rosto sereno, um sorriso nos lábios. Não pensei que estivesse morto, mas estava, agarrei-lhe a mão para o acordar, estava gelada, fria. Apanhei um susto enorme, gostava tanto dele, era uma pessoa tão terna, tão serena. Aqui não nos devemos afeiçoar às pessoas, mas que lhe posso dizer, tem algumas que nos entram pela alma adentro.

Não sei o que me deu, o que senti neste momento enquanto olhava a senhora ali na minha frente a falar da morte como se estivesse a falar das compras no supermercado, algo se desmoronou por dentro ao receber assim a noticia fria, impessoal, de uma forma banal, como se a estivesse a ler num jornal qualquer, a folha da necrologia. Olhei a senhora de novo, imperturbável, conversadora, parecia que queria contar uma história.

- Sabe, deixou duas cartas. Uma com as ultimas vontades dirigida ao director aqui do Lar ao doutor Ernesto, outra para entregar a quem o viesse visitar. Acho que ele esperava uma visita.
Também deixou umas coisas, umas caixas com livros e mais o que escrevia. Está tudo guardado. Nós aqui no lar, cumprimos todas as suas ultimas vontades. O corpo do Ti Júlio foi cremado no cemitério do Alto de São João em Lisboa e depois as cinzas foram espalhadas no mar ao largo da foz do Tejo. Foi muito emotivo, muito triste, mas ao mesmo tempo, sabe, ele não tinha ninguém e fomos nós aqui do lar, não devíamos mas que quer, afeiçoamo-nos a ele, às suas histórias que nos contava, sentimos já tanto a sua falta. Só nós! - Sabe! Ninguém soube que ele morreu. Em três anos que aqui esteve nunca recebeu uma visita, um telefonema, só pouco tempo antes de morrer recebeu umas cartas que vieram da sua antiga morada.
- Sabe, eu também fui ao enterro do Ti Júlio, ao mar a levar as cinzas, levei também uma flor para lhe oferecer, um ultimo gesto de carinho, uma orquídea, eram as flores preferias dele, as que mais gostava, sabia muito de flores, às vezes estávamos a tarde toda a falar de flores, gostava de flores selvagens, dizia que eram como ele, com alma e indomáveis. Aprendi tanto com o Ti Júlio.
Depois, quando espalhamos as cinzas. Foi o senhor da funerária que fez isso, apareceram golfinhos e umas aves grandes a voar á roda do barco a gritarem, parecia que se estavam a despedir dele. Senti um arrepio no coração. Ficamos todos assim, apreensivos. Parecia uma coisa sobrenatural, mas acho que foi cisma minha, da emoção sabe, da tristeza. Ele era acima de tudo um senhor, um bom homem, daqueles que já não se encontram.

-E o senhor quem é? Algum familiar?

-Sim! - Também sou marinheiro. Chamo-me João Pedro. O capitão Júlio era meu Pai. Que nunca conheci, soube da sua existência faz seis meses, estava no Pacifico. A minha mãe resolveu escrever-me a contar a verdade. Quando acabei a viagem meti-me no avião, tirei ferias, fui a Londres conversar com ela, foi quando soube onde ele estava. Não tinha a certeza, também não consegui vir logo aqui, acho que me faltou a coragem, faz um mes que estou cá na vila na Estalagem do Cabo. Andei a colocar as ideias em ordem. Para mim o meu pai era o marido da minha mãe. Um professor inglês que faleceu fez três anos, foi difícil tudo isto, lidar com esta realidade e agora. E agora sinto um aperto tão grande, um arrependimento tão grande, porque não vim logo até aqui. Acho que cheguei tarde. Demasiado tarde para poder abraçar o meu pai.

À tempos estive aqui na praia à noite, na vinda estive a olhar o palacete do lado de fora, reparei num senhor à janela na ala Oeste, a virada para o mar, para a praia, não sei, senti qualquer coisa estranha, aquele homem ali, parecia que o conhecia, não sei, fui embora e não pensei mais nisso. Era a voz do sangue a chamar-me. Devia ser.



- Pode ser sim. O seu pai, o Ti Júlio habitava a ala oeste, sim o quarto dele era o único que tinha janela para a praia, foi a única exigência que fez para se instalar cá. Ainda esteve ano e meio à espera que as obras ficassem prontas. O quarto está fechado com tudo o que é dele lá. Foi uma das exigências também, ficar assim até alguém vir em sua procura, depois podia ser habitado por outra pessoa. Não sei, ele tem cinco anos adiantados pagos, portanto a habitação é dele. Não sei o que pensava, nos últimos tempos estava estranho depois de receber uma carta. Sabe, acho que desistiu de viver. Tinha problemas de artrite e o coração também não andava lá muito bem, acho que foi a falta de uma mulher ao seu lado. Demasiada solidão. Não sei que mais lhe dizer. (continua)