quarta-feira, abril 30, 2008

De partida...


Preparo o saco, saímos barra fora pelas duas e trinta da tarde. A aproveitar a maré-cheia. A barra está assoreada, é um perigo. O mar rompe ali
O vento esperado a entrar de sudoeste, a vaga de três metros, quatro metros no Cabo Silheiro sessenta milhas a norte. Vai ser uma noite de trabalho a bordo
Arrumo no fundo do saco impermeável as roupas quentes, as meias de lá, o velho casaco, o capelim preto para a cabeça. Finalmente parto rumo a Norte. Finalmente parto para mais próximo de ti, porque estes anos todos naveguei sempre a sul, cento e oitenta graus a afastar-me de ti. Já não me importo. Já nada me importa. As roupas são pretas, espécie de vestes com que faço o nosso luto. Se morrer não vertas lágrimas, basta-me o sal do mar para ficar em paz, junto dos meus.
Agora vou.
Acabei de fechar o saco. Encerrar um sonho e a memória da última viagem que fizemos os dois. Parece uma primeira vez. É uma primeira vez depois de me teres abandonado a meio da travessia, esta viagem que faço. Ontem ouvia-se o mar e o vento a chamar por mim nos brandais frios dos veleiros em terra, à espera abandonados. Fiquei aflito, fazia já muito tempo que aqui não vinha ao porto ver os veleiros. Não te queria ver de memória. Já não sei ver-te quanto mais amar-te. Amo o mar e isso me tranquiliza nas noites frias como as que se avizinham.
O resto é o tempo.
Espero as horas da partida

quinta-feira, abril 24, 2008

Navegar é preciso...



Encontramo-nos no mar. O mar dos teus olhos

segunda-feira, abril 21, 2008

VIII Carta...

Ontem foi 1 de Abril dia das mentiras.
Acho que esta carta é uma mentira. Uma partida que alguém me pregou, quem sabe o Zé das Areias meu amigo dos anos de mar que sabe os meus segredos me fez esta partida. Não sei. A letra é tua, perfeita. Fui procurar as tuas cartas guardadas. Tu não sabes que as guardo. Ainda as guardo. Espécie de tesouro que são para mim, palavras de verdade, palavras de amor. Palavras de sentir que eram as nossas cartas escritas, faz tantos anos.

Esta carta queima-me os dedos. Disse que ia dormir mas não consegui, só o corpo vencido pelo cansaço acalmou, os olhos se cerraram vencidos pelo escuro do quarto, foi como se estivesses aqui. Sentada no velho sofá a olhar-me na noite.
A letra é tua e a tinta da caneta é a mesma, se calhar ainda usas a mesma caneta Parker que te ofereci um dia ainda namorávamos, numa caixinha azul, acho que é a mesma porque a forma da tinta é igual às cartas que guardo tuas.

Vou tomar o pequeno-almoço lá abaixo à sala grande de jantar, um refeitório com janelas grandes a darem para o jardim. Chove, hoje chove uma chuva forte, fria, espessa, e faz vento, um vento de redemoinhos que entra pela alameda e faz as arvores tremerem, as folhas partirem voando a cobrirem o chão de saibro. Depois vou ler as tuas palavras com calma. O coração hoje acho que aguenta. Vai aguentar. Tem que aguentar. Porque te desejo ainda e esperei todo este imenso tempo por notícias tuas. Tenho de ler depressa, afinal podes estar a dar-me noticias importantes a quereres uma resposta a elas e a carta demorou tantos meses a chegar às minhas mãos. Não quero pensar que pensas que não te quero dar noticias minhas, se quiseres saber de mim. Se é isso que a tua carta diz, se são essas as tuas palavras escritas. Saber de mim da forma que eu sempre quis saber de ti.

Vou ler, se estivesse sol e se as minhas pernas aguentassem o caminho ia até à praia ler. Para te sentir mais próxima, mais mar a entrar em mim, o cheiro a maresia liberta. Ler-te a sentir o mar na areia, as gaivotas batendo asas, a linha do horizonte de nós na distância onde a terra se abraça ao mar.

Queria abraçar-te, queria tanto. Não sei se quererias já um abraço meu. De um velho marinheiro cheio de saudade, esquecido aqui, sem ninguém a quem falar. Escrevo-te. É a forma de te falar. Escrevo-te em voz alta para sentir as palavras. O eco das palavras em mim e imaginar que estás ai de olhar reluzente e sorriso nos lábios a escutar as minhas palavras. Acho que tenho uma doença incurável. Terminal. Tu és o remédio para a doença de amor que padeço. O amor. O meu amor por ti é uma doença, mas é uma doença bonita, grande, que me faz brilhar a alma, acelerar o coração, embargar a voz quando murmuro baixinho o teu nome todos os dias antes de adormecer a dar-te as boas noites.

quinta-feira, abril 17, 2008

VII Carta...


A carta tem quase um ano. Atrasada. Para mim. Foi para a antiga morada, a minha casa esvaziada. Acho que foi um milagre ter vindo ter comigo. Tenho de agradecer ao Zé da Areia. É ele que me trás a correspondência.A carta.É uma carta tua.A tua letra a dizer o meu nome a dizer que é para mim, no remetente só o teu nome a dizer que é tua, a dar-me noticias finalmente. Uma carta a romper as palavras mudas em nós. Todos estes anos de silêncio passados. Releio outra vez a tua letra bonita. Vou abrir. Tremem-me as mãos cansadas, os dedos não obedecem vencidos que estão pela artrite. Dói-me o coração no peito de tanto bater. Andei o dia todo com ela na mão, às voltas, a ver se tinha uma abertura por onde pudesse espreitar sem ser notado, sem a conseguir abrir. Parece que me queima os dedos. Ainda a levei ao nariz, mas era só papel manuseado. Perdeu-se o cheiro das tuas mãos na folha escrita. Porque penso é uma carta escrita. Não sei se abra. Que me queres dizer? Que noticias me trazes três décadas já passadas.– Não! Não vou abrir hoje a tua carta. Vou esperar pelo dia de amanhã, e vou ler-te pela manhãzinha enquanto o sol se levanta e me entra pela janela. Que são 12 horas mais a juntar a oito meses, a juntar a trinta e muitos anos de silêncio nosso.-Nada! Doze horas não são nada, e eu estou demasiado velho para me emocionar pela noite. O coração não aguenta.
Amanhã leio-te.

segunda-feira, abril 07, 2008

Desejo...


Queria continuar a amar-te. Mas não consigo já. O tempo cobre de ferrugem o sentir. Fico frágil. Diria velho. Demasiado velho.
Queria continuar a amar-te. Mesmo que este amor que sinto tenha morrido à sede. Verdadeiro deserto de nós. Queria porque a querer vivo ainda. Mesmo que desdenhes do meu sentir e me chames louco. Loucos são os que não amam. Queria olhar-te uma outra vez. Porque o olhar é importante e nos diz tanto. Sei que já não é possível. Não me olhas. Não te olho. Os meus olhos fecharam-se à luz, e todo eu sou só trevas negras como o breu com que quereno o casco velho, também, do navio onde embarco sempre a demandar o mar teu, todo, no olhar salgado das lágrimas de saudade que és ainda hoje.


Um dia destes imaginei-te próxima de mim. Escutávamos palavras e música. Imaginei-te demasiado próxima. Quase a sentir-te. O calor teu, o perfume teu, o brilho teu, a voz tua a entrar em mim. Fechei os olhos para o breve momento se tornar eternidade. Quase me atrevia a dar-te a mão. As minhas têm tantas saudades das tuas. Não consegui vencer a distância do gesto. As mãos continuam distantes e demasiado frias em nós.
Todos os gestos se tornam penosos. Demasiado sofridos, demasiado contidos. Modero-me sempre para que não saibas. Escondo as mãos nos bolsos, desvio o meu olhar de ti, finjo-me distante. A ir sempre embora. Uma partida que eu não quero. Nunca. Mas não sei de outra forma.


Queria continuar a amar-te. Não sou capaz e não me perdoo a falta, a desistência de ti. Todo este tempo passado. Todas as palavras. As cartas escritas na tentativa vã, de ter as noticias tuas que nunca chegaram. Eu sei que não existes. Que te invento para sobreviver ainda. Que sou demasiado louco e velho, cansado. Foi o tempo. Foi o tempo que me envelheceu o corpo. Foi a tua ausência que me endoideceu o espírito. Só o coração bate ainda da mesma forma rítmica, balançada, a dizer que te ama. Mas só eu sei disso. O sangue a passar nas válvulas musculadas com a mesma cor vermelho viva, a mesma força a dizer-me que só assim o amor se alimenta. Um querer para sempre. Para lá do tempo que não temos. Para lá de nós.

Queria saber amar-te da forma que tu querias que eu te amasse, no tempo dos amantes, na primavera do amor. O tempo da luz e das flores.
O tempo cobre de óxidos o sentimento e eu resignado viro costas, largo as amarras a terra e saio barra fora a sentir o mar no corpo. O olhar perdido na linha do horizonte imaginário, enquanto as velas alvas se afeiçoam ao vento que vem de leste, hoje, incerto a rodar em saltos que fazem cambar as velas e o barco avançar aos soluços sobre as águas do mar da Póvoa rumo a sul. Não tenho coragem ainda de rumar a norte ou a oeste de ti.


Somos três hoje nesta manhã esplendorosa de primavera. Eu, o barco e o mar. Faltas tu para me completar, e enquanto navego, o barco com a borda metida na água, a roda do leme a fazer força, as minhas mãos cerradas a agarrarem o rumo certo a cento oitenta graus, o vento aparente endurece os brandais e a genoa se retesa, a vela grande se espelha perfeita, o barco obediente vencido pela vontade do capitão voga numa arribada a sotavento. Eu ali, parado no meio do mundo aquático, salgado. Parece que te vejo ainda a subir as escadas do poço com a minha camisa de xadrez a cobrir-te os seios perfeitos, redondos, perfumados, as tuas mãos abertas à luz, os cabelos a brilharem e os teus olhos sobre mim aniquilam-me todas as vontades de fugir.

Isto que sinto já não é amor. Nem desejo nem audácia em revelar o que penso. É exaustão. Fadiga do corpo, espécie de osmose que tenho a corroer a pele crestada do sal. Morte. Falamos de morte, seca ao sol deste Abril que se queria revolucionário, perfumado, rubro dos cravos, de primavera, onde tardam as andorinhas e tu também tardas em corpo físico. Invento-te outra vez, e socorro-me de certos olhares, de certos encontros rápidos para te aperfeiçoar. Tens que ser como o barco, perfeita, pronta a zarpar, obediente ao sinal do leme, só eu sou completamente imperfeito, cheio de erros, de desejos que não passam disso mesmo desejos inconfessáveis, de vontades prenhas que abortam sempre sem gestação. Só eu.

Queria amar-te sempre. Para sempre. A palavra parece-me a esta hora da madrugada demasiado expressiva. Demasiado oblonga. Demasiado eterna. Só a luz é eterna e o vento. Acredito que o amor seja o parente da luz e do vento e se torne eterno em nós, e eu me aperfeiçoe com o tempo e atinja o patamar supremo da perfeição luminosa, e te ame, de verdade, como tu sempre quiseste e imaginaste, e então, depois de navegar rumo a sul e a norte de nós, te encontre e abra os olhos e te enlace pela cintura, o teu corpo aconchegado ao meu, e me aqueças, o teu olhar me olhe verdadeiramente, e os teus lábios calem a minha boca, num beijo sôfrego de náufragos presos ao fio final de vida num sopro de vento a rondar, um salto de trinta graus, que me obriga a afinar outra vez as velas a cassar as escotas a olhar a agulha, a fixar um ponto imaginário no horizonte de água espelhada onde teu rosto me sorri. Não sei ser-te de outra forma que não água. Fria. Tonificante. Não sei sentir-te de outra forma que não mar. O verdadeiro amor que tenho. Sem invenções, sem imaginações, só verdade. Só verdade.

Queria amar-te sempre. Não consigo. Amo-te quando sinto saudades. Quando deixo que elas entrem em mim, quando me esqueço de estar vigilante, de guarda aos sinais do coração que abranda as batidas obediente a uma parte escondida do cérebro onde te guardo, e que de tempos a tempos se manifesta em explosões vulcânicas adormecidas que gritam o teu nome. Rapidamente corrijo a falta, o erro e te apago da memória vigilante, não posso fechar os olhos para não te imaginar por dentro de mim, e fico dias e dias acordado com medo de me magoar. A tua ausência magoa-me de verdade.
Fico frágil. Diria velho. Demasiado velho.

Não queria amar-te já.


João marinheiro, Praia de Fornelos Abril 2008

Fotografia de Floris Andreia

sexta-feira, abril 04, 2008

Incompleto...



Sonhei-te demasiadas vezes
E desejei-te outras tantas

Queria-te com a força do náufrago
Em busca do salvamento a terra

E fomos trevas

Sonho

Desejo apenas



João marinheiro, Abril 2008
Fotografia de Barcoantigo 2007