domingo, janeiro 28, 2007

Não tenhas pena de mim...


Não tenhas pena de mim…
Tenho um foque redondo onde guardo os sonhos. Claro que tu não sabes o que é um foque nem a forma dos meus sonhos. E eu, velho, estou aqui preso a estas paredes neste lar, espécie de casa onde o sol só entra pela manhã e se despede pelo meio dia…
Conto-te as minhas histórias a ti porque não existes por fora de mim, coabitas comigo nas minhas emoções, porque nós nunca fomos diferentes. Não sentimos de maneiras diferentes. Sentimos é com intensidades diferentes. É isso que nos torna unos.
É isso que nos torna unos ou sós. Demasiado sós em nós. Quis-te sempre, tu é que só me quiseste por um breve momento. Foste uma espécie de travessia no atlântico norte.

És gelo branco. Na altura parecias-me o paraíso. O amor. Por isso o amor é branco em mim. Tu eras o amor. Possuías era a cor do gelo. Desfiz o mistério desta vez. Não me querias. Achaste piada ás palavras do velho que tenta não ser velho nas palavras e nos sentires.
Estou aqui arrumado nesta espécie de sótão de memórias.
Se puderes vem visitar-me antes que eu morra de saudades. Se puderes.
Descobri que também se morre de saudades nesta casa.
- Esta casa é enorme!
Esta casa é um depósito de emoções. Espécie de livros diversos que falam baixinho. Uma biblioteca que se arrasta pelos corredores receosa. Precisa do auxílio das cadeiras de rodas, das canadianas, das bengalas. De um braço amigo onde descansar as mãos. Esta biblioteca tem mãos, dei-me conta que tem mãos. Sempre gostei de olhar as mãos. As mãos não mentem. Os olhos sim. Raramente olho nos olhos para também eu não mentir, mas o meu olhar já é turvo e nublado. Já não faz mal. Não me importo. A vista foge aos poucos. Acho mesmo que se vieres um dia, não te vou ver. Só se me falares. Me disseres que és mesmo tu. E eu possa seguir o som da tua voz e então num esforço procurar-te com o olhar. Se vieres vem pela manhã por favor. Na hora do sol. É importante que me tragas o sol. Lá nas latitudes extremas gostava de contemplar o sol a nascer desde a ponte do navio. Gostava de lhe dar as boas vindas enquanto tirava a posição do navio com o sextante. Um brilho sem explicação por palavras. Uma espécie de clamor à vida. Lembrava-me de ti sempre pela manhã. Todas as manhãs. Procurava-te com o olhar…
Se vieres e me perguntares se algum dia te amei, respondo-te que não. Não me deste tempo para te amar. Desejei-te só. Acho que te deste conta do meu desejo. Acho também que foi por isso que partiste de mim e me deixaste a tua marca na memória e as palavras nas minhas cartas a ti. Mas tu tiveste a culpa. Quem te mandou perguntar se eu te desejava. Quem? Porque o fizeste? Nunca te enviei as cartas.
Não me deste tempo para te amar mas o desejo meu por ti foi bom principio, há quem por menos, ou pelo menos, o diga assim, ou ache que ama. Eu fui verdadeiro contigo. Sou é tímido, coisa de marinheiro mesmo, mais habituado a acariciar as ondas e o medo, e a brisa. A sentir a névoa no rosto e as estrelas no olhar. Mundos diferentes minha querida. Mundos diferentes.
Confesso-te uma coisa. Tenho saudades. Tenho saudades acredita. Acho que vou morrer de saudades sem ver o mar. Sentir o cheiro da brisa, a névoa no alvor da manhã, o sussurro das velas, o gingar do navio. Tenho saudades. Queria morrer lá. No mar. Não aqui, dentro destas quatro paredes de cor desmaiada onde o sol só entra pela manhã. Onde o silêncio impera ao longo do dia entrecortado de longe a longe pelos sussurros das memórias. As tais bibliotecas que andam e tem as tais mãos que um dia agarraram o mundo. Acariciaram rostos. Imploraram a Deus. As tuas eram pequeninas. Já não sei bem como eram as tuas mãos. Perdoa-me também a memória. É a memória de um velho sem validade arrumado nesta espécie de sótão dos sentires.
Não tenhas pena de mim. Eu não tenho…

joão marinheiro 2007
Fotos arquivo de Barcoantigo

sábado, janeiro 27, 2007

Em Bouzas vila marinheira na ria de Vigo...


Porque os projectos megalómanos geralmente não coabitam com a natureza mas com alguns só...
Resolvi trazer até vós este grito de revolta do povo de Bouzas, porque afinal a cultura marítima é de todos, o mar não tem fronteiras. As fronteiras são coisas dos homens. O mar quer-se livre como o sol. Sempre que se altera um lugar ribeirinho, um lugar piscatório em nome do progresso, da modernidade, (duvidosa na maioria), perde-se um pouco da nossa memória colectiva, da nossa identidade de povo atlântico, ficamos mais pobres e geralmente não damos por isso, só mais tarde sentimos a falta. Mais tarde quando é demasiado tarde...

Abraço aos mareantes daqui onde o rio abraça o oceano...



En Bouzas...
Roubáronnos a praia, co seu recheo
Roubáronnos o mar, cos seus peiraos
Roubáronnos o marisqueo, coa sua contaminación
Roubáronnos o solpor coa sua ponte
Roubáronnos a paisaxe co seu monstro horrendo
Roubáronnos as estrelas cos seus potentes focos
Roubáronnos o silencio co tráfico e as suas industrias.

Agora...
Quérennos roubar o recendo mariño cos seus aterramentos
Quérennos apestar coa chafallada da sua depuradora
Quérennos atravessar co seu trem chu-chu
Quérennos enganar cos seus contos infantis
Quérennos afogar cos seus escombros e lixo
Quérennos deixar sen ria co seu falso progreso

E fano...
Porque a sua cobiza non ten límite
Porque a beleza lles espanta
Porque son amigos do chapapote e o formigón
Porque ven o meio ambiente como unha mercadoria
Porque confunden os intereses das multinacionais cos do povo
Porque exproprian á xente para agasallar ás empresas
Porque enchen os petos destrozando a ria
Porque violan impunemente as suas próprias leis
Porque mercan as vontades dos infelices en venta
Porque estan enfermos de indignidade
Porque quen sofre somos sempre nós: os peixes e moluscos,as gaivotas, as veciñas e veciños a xente que vive do mar e a mai natureza.


E nos berramos...

Basta de roubos
Basta de cacicadas
Basta de recheos
Basta de contaminación

Veciñas e veciños de Bouzas

Texto e foto em:http://www.bouzasmovete.org/

sexta-feira, janeiro 26, 2007

Ontem à noite…



Ontem andei pela Póvoa. A cidade da minha juventude. Fazia anos que não andava nas ruas da Póvoa. Fartei-me de deambular. Entrei na minha escola secundária. Será sempre a minha escola. Cada degrau, cada corredor, cada corrimão de escada, onde um dia toquei, são um pouco meus, uma extensão sempre. Para sempre.
A Póvoa cresceu, está diferente. Mais moderna. Embora eu gostasse da Póvoa antiga. A Póvoa como guardo na memória. Fartei-me de andar durante horas, até me sentir gelado na cara. Fazia frio. Um frio seco. Gosto do tempo assim frio e seco. Gosto de descobrir as ruas desertas à noite. Gosto de olhar as sombras projectadas pela luz amarela. Gosto de ver a penumbra e o silêncio longo nas ruas.
Liguei-te sabes. Claro que sabes. Mas claro que sabes. Queria dizer-te que encontrei o tal livro. O livro da andorinha e do gato. A história que me contaste. Lembras?
Não sei se lembras. Afinal não te disse do tal livro. Acho que me enganei no número marcado. Desculpa. Não é importante este detalhe. É que me lembrei de ti. O resto são memórias da Póvoa numa noite fria como eu gosto para passear.
A Póvoa cresceu, está moderna.
Muito brilho, muita luz.
Às vezes ao virar uma esquina fui surpreendido pela luz. Parece a cidade luz e não é. Demasiada luz. Demasiado brilho. Demasiado inox. Tu sabes que eu sou antigo, mas não sabes que gosto das cidades em pedra e ferro forjado. Das cidades com sombras. Do chilrear dos pássaros nas árvores. Gosto de ver as estrelas enquanto caminho e não as vejo. Muita luz. Muita luz e um marinheiro assim desnorteia. Tu sabes. Um marinheiro sem rumo é como um homem bêbado, cambaleando.
As estrelas são importantes. As estrelas no céu.
Tu sabes não sabes?
joão marinheiro 2007
Fotografia de Barcoantigo

quinta-feira, janeiro 25, 2007

O inicio do fim do principio...


...Um fim é sempre o início de algo. Não concebo a palavra como um terminar, embora seja na realidade um terminar. Deixamos de estar presentes no espaço físico, deixamos de ocupar um volume, deixamos de respirar o mesmo ar. Remetemo-nos a um silêncio que por vezes dói. É a evolução, que é conseguida por perdas e danos.
Já pensaste que para evoluirmos temos sempre um lado que fica a perder. Á medida que avançamos as coisas importantes deixam de o ser, passam a memórias cada vez mais curtas, cada vez mais distantes, cada vez menos memórias, até nos darmos conta que as perdemos na voracidade do dia a dia. Somos homens e mulheres. Raça humana, que compete a cada segundo na busca nem sei bem de que objectivo. Somos inteligentes, o esplendor da evolução, mas em contraste somos do pior da evolução das espécies.
- Somos falsos!
- Somos vingativos!
- Somos ambiciosos!
- Somos opressores!
- Somos conquistadores!
- Somos aniquiladores!
- Somos belicosos!
- Somos esbanjadores!
- Não respeitamos!
- Não temos paciência!
- Não somos pacíficos!
- Não amamos!
- Não somos ternurentos.
Deixamos os valores. A moral. A bondade. Não nos escutamos uns aos outros. Não sabemos perdoar, não sabemos amar. Sabemos odiar em demasia. Perdemos a identidade, passamos a globais. Frios. Binómios de números como no processador. Perdemos os sentimentos. As emoções. As lágrimas resumem-se a actos fisiológicos, de água e cloreto de sódio. Tentamos passar o sentir para o chip no computador pessoal, e, quando isso acontecer vamos acabar irremediavelmente sós. Como um algarismo 0 ou algarismo1, os números da revolução. Frios!
O progresso da medicina vai avançar e reduzir a temperatura dos corpos. O sangue vai arrefecer. As emoções vão ser um passado distante.
Robotizamo-nos. Vamos procriar em actos mecânicos assistidos remotamente.
Castas. Classes. Como prateleiras. Gavetas de um mundo que ainda é redondo, mas se torna plano e estéril aos poucos. E vamos voltar ao mundo dos animais instituído e certo, repetitivo há milhares de anos. A teoria da evolução das espécies vai ter de ser reformulada. As espécies vão deixar de ser diferenciadas, vamos existir por patamares. Os semi condutores vão substituir as emoções. São frios. O silício vai continuar a imperar e ele fez a revolução dos híbridos. Destronou as válvulas enormes, o calor, as altas tensões. E hoje no tamanho de um ponto minúsculo no processador de texto encerra-se a nossa história de séculos, condensada, resumida a um conjunto de actos de números sequenciais.
O fim é sempre o início de algo. A morte é sempre a passagem do físico para o além desconhecido. O desconhecido ainda nos atrai com a curiosidade mórbida ou talvez não, da incompreensão. O que não é mensurável ainda nos assusta, e isso é importante porque nos permite recordar o sentir, as emoções, as lágrimas na face, um gesto de ternura, um último olhar, uma palavra de conforto. São tão importantes as palavras entre nós. E isso é tão importante. Os gestos simples e verdadeiros. Dar as mãos, pousar o olhar como uma carícia que se quer. Saber escutar. Principalmente saber perdoar. Faz falta o amor em nós. Faz falta sermos de novo puros. Retornarmos à vida. Deixarmos as máquinas que nos conquistam, vivermos o tempo com tempo. Todo o tempo do mundo. O mundo avança sem nós. E nós somos ínfimos no tempo.
O fim não tem que ser o terminar, o cair do pano na representação final e última…
Não tem!
- Compreendes o que te digo?

João marinheiro 14/01/07

Fotografia Paulo Teixeira/www.olhares.com

domingo, janeiro 21, 2007

Porque temos tão pouco tempo no tempo que temos...




Que faz falta ter tempo para viver o tempo. O nosso tempo hoje!
Ficam as palavras do Pedro Bial, hoje. Simples como uma simples passagem...

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Existem mistérios que para o serem não podem ser revelados...


...Calculo te tenhas dado conta que existem mistérios que por serem mistérios não devem ser desvendados. Lembraste o que me disseste! Lembras? Merecia isso, eu?
Acho que não. Acho que verdadeiramente nunca te apercebeste da dimensão do estrago que fizeste em mim. Da dimensão do rasgo na pele. A ferida profunda. A cicatriz invisível. Mas não tivemos o tempo para que pudéssemos olhar. Estávamos demasiado frenéticos, éramos demasiado jovens. Demasiado ousados?
Dás-te conta hoje do que poderíamos ter sido e nunca fomos. Merecia-mos os dois?
Não sei. Tudo me parece uma história que chega na noite meio perdida. Nada está certo só eu me sinto inquieto. O chão afunda-se na alma. O tempo não cura ainda. Sinto o sabor a mar salgado na boca. A sede abrasa. Nunca vou sentir de novo a tua pele. Trocamos todas as palavras. Só a noite me acalma. Só o escuro me trás o medo. Só na noite fecho os olhos e tu vens de mansinho. És uma espécie de sopro que sinto junto ao ouvido. Se eu fosse a tua pele sabia como eras porque era eu na tua pele. Assim nunca sei, e o medo instala-se devagar lá fora e cá dentro.
Mereço isto?
O silêncio na rua hoje…
Não escuto o mar faz tempo. Sinto-me meio zonzo de ti. Sinto-me meio zonzo sem ti. Sinto-me cheio de ti. Mas estou esvaziado de ti.
Merecia tudo o que me fizeste. Sim porque o fizeste. É porque o merecia de ti. Vindo de ti. Planeado por ti. Executado por ti
Ainda me disseste, como que a justificares o acto, que tinhas pena dele, que tinha partido o braço, que precisava de companhia que não podia ficar só.
Lembraste do que eu dizia nas cartas que te escrevia semanalmente. Lembras?
Não lembras. Não lembraste. Porque te irias lembrar quase trinta anos depois. E com toda a certeza esta carta que te escrevo é uma espécie de mistério, nunca a vais ler portanto não vai ser desvendado.
Lembraste do que eu te escrevia?
Então e eu?
E os meus trinta meses de hospital! Lembras de eu escrever a dizer que já não aguentava mais. Que me sentia perdido. Que estava no limite da resistência.
Lembras?
Claro que não lembras. Nunca me escreveste a dar noticias das minhas cartas a ti. Acho ainda hoje que me enganei no endereço. Que as cartas nunca chegaram a ti. Só pode ter acontecido isso. Aguardo ainda hoje uma carta tua. Uma espécie de carta armadilhada. Uma espécie de carta fantasma. Uma espécie de carta sem carta, só envelope vazio de noticias tuas. Um envelope grande, moderno, em correio verde. Verde. - Ouviste! Verde! Porque é a cor da esperança. E eu tenho, em que se desvende o mistério, e ao abrir, tenha pelo menos uma linha tua escrita a dizer: - ESQUECE-ME!
Tu não sabes, e eu também nunca mais tive a oportunidade de te dizer, que é isso que tenho tentado fazer estes anos todos, porque sou um sobrevivente. Sabes. Não morri na tropa. Embora os trinta meses de hospital me incomodem no dia a dia. Embora as armas me incomodem no dia a dia. E as guerras me incomodem também no dia a dia. Não morri na tropa. Morri só em ti o que é verdadeiramente mais doloroso e perpétuo.
E nós! Que foi feito de nós? Porque planeaste tudo? Porque executaste tudo? Porque fizeste quase tudo para nos ferir aos dois? Não sei das tuas feridas. Sei das minhas cicatrizes que escondo como um arrependimento. - Amava-te, sabias disso? Acho que nunca te deste conta do meu amor por ti, porque me demorava nas vindas, porque me demorava nas partidas, porque ainda hoje me custam as partidas mas as aceito como uma consequência dos dias e do tempo. Não tenho já tempo, eu sei.
Porque teve tudo de ser assim. O nosso projecto comum espalhado como as tuas roupas no quarto dele. Podia ser aqui, ou ali, ou noutro lado qualquer que eu tenha visto as tuas roupas espalhadas, mas não daquela maneira, não estava preparado para a tua traição planeada. Porque me disseste que ias ficar no Porto a trabalho. Participar num congresso de professores? Afinal não foste e eu para crer tive de te ir buscar. Achas bem? Teria de ter um braço partido também eu? Tu não sabes o que a tropa faz a um homem. Tu não sabes o que é ser um número mecanográfico, só. Tu não sabes que ao passar a porta da portaria, a fronteira, passamos a potenciais assassinos com arma e tudo. Tu não sabes das coisas da guerra. Da minha guerra dentro da guerra. Abandonaste-me. Dás-te conta!
Deixa. Já não é importante que saibas que me abandonaste. Que eu tenha ficado meio moribundo. Perdido na cidade grande e estranha para mim. Sou um sobrevivente ainda. Fui para o mar...
Tu não sabes que embarquei num dos velhos navios à vela e que parti para onde o vento e a vontade do mar me levaram. Tu não sabes que em cada porto, sempre que pisava terra procurava esquecer-te no corpo de uma qualquer que engatava num bar. Que às vezes de tão bêbadas nem lhes sabia a cor dos olhos. Que só lhes queria sentir a pele, que só lhes queria sentir os cabelos nas minhas mãos vazias. Que só lhes buscava um consolo para a minha e a tua ausência. Tu não sabes. Nunca substituíram a tua ausência. Porque tu és como és, única e imperfeita, mas eu amava-te naquela altura. Dava a vida por ti. Entregaste a tua a outro porque tinha o braço partido, e indefeso tinhas de dormir com ele para o proteger. Cheio de sorte o tipo. Aconteceu o tal milagre misterioso. A revelação do amor para os dois? E eu porque só te amava a ti demorei a reconstruir-me por dentro. Os estragos foram violentos, uma espécie de granada de fragmentação com demasiados estragos invisíveis a olho nu.
(Gostava de te ver nua. Mas isso é outra parta da história…)
Lembras de telefonares a dizer que não vinhas no fim-de-semana ter comigo ao hospital? Claro que lembras. Eu lembro que não chegaste. Que o fim-de-semana era demasiado longo, que estava calor, que via o Tejo da varanda da enfermaria no quinto andar. Que andava louco. Perdido. Que me sentia sem rumo, desnorteado. Que estava reduzido a um numero, a uma cama de hospital, nº28 de má memória. Tantas vezes me lembrei de voar, de me libertar, de saltar para a liberdade cinco andares abaixo. Mas tinha-te a ti, e a tua presença por dentro de mim faziam ressurgir as forças nem eu sei de onde. O corpo humano é fantástico. Tu eras fantástica na altura. Mais tarde descobri que era um engano. Afinal eras vulgar, uma mulher igual a tantas mulheres na plenitude da juventude, com desejos que nunca me confessaste, com sonhos que nunca me partilhaste. Pensava que te conhecia, mas não. O melhor de ti estava fechado para mim. Já não me importo. Escrevo-te hoje nem sei porquê. Deve ser do tal mistério que falo no início da minha carta. Mas as saudades tuas eram muitas. Já naquela altura sentia saudades. Ainda não sei muito bem lidar com este sentimento saudade em mim, mas aprendo lentamente. Também aprendo a lidar com a falta de respostas às cartas que ainda hoje escrevo às vezes. Mas também esta é já outra história. Tenho tantas histórias dás-te conta? Não dás e eu volto ao fim de semana final. Tu não vinhas mas fui eu ter contigo e afinal não estavas na tua casa mas na dele. Não me perguntes como soube, mas existem mistérios que deixam de o ser se são revelados. Este fica comigo. Como ficaram todas as palavras que não te disse e muitas outras coisas, outros sentires, outras emoções. Guardei tudo para atirar ao mar. Tenho estado a lançar aos poucos e em cada vez que me liberto deles, liberto-me do peso que carrego faz tanto tempo. Esta mágoa interior que me faz fechado em mim. Espécie de ilha como a minha ilha das memórias antigas…
Tu és a memória antiga dos verdes anos da juventude. Contigo aprendi o amor. Contigo aprendi a sedução. Contigo aprendi o prazer. Contigo aprendi o bom da vida e o outro lado. Contigo. Sempre contigo até não ter mais espaço em ti e cair desamparado na cidade grande. Lisboa já naquele tempo era uma cidade mágica, eu é que não o sabia, porque a magia começava e terminava em ti. Tu eras eu, e isso me bastava. Afinal não eras. Eras só tu e um bocado do outro. Um lugar na cama ao seu lado porque tinhas pena e ele tinha o braço partido. Eu já não tenho pena. Nem por mim nem por ti. Nem pelo que poderíamos ter sido e não fomos porque nunca quisemos ser. Porque estávamos demasiado ocupados a viver na altura. Viver intensamente. Esqueceste que eu só vivia contigo ao meu lado, fora de ti sobrevivia. Sabes, mas nem tudo foi mau, aprendi a defender-me. As técnicas da sobrevivência. Os disfarces. As máscaras. Espécie de espião transformista em poeta que não sou. E hoje chego aqui a esta folha onde registo os pensamentos. Dou-me conta que não consigo recordar as linhas do teu rosto, acho só que se te visse na rua te reconheceria, mas provavelmente isso não vai acontecer por não saberes qual é a minha rua e eu já há muito esqueci a tua. Fica tudo como está.
Existem mistérios que para serem mistérios tem de ficar tal como se encontram, tu entendes o que te digo.
Entendes ou não?
E existem palavras também

…” Todas as vozes que eu queria importantes
Partem da minha vida
E fica este silêncio esta saudade
Que renego todos os dias
Sinto-me exilado em mim…”

João marinheiro ausente 2007
Fotografia Hugo/www.olhares .com

terça-feira, janeiro 16, 2007

Da tua ausência…


Hoje faltam-me as palavras
O coração abandonou-me lentamente
Já não estás comigo na varanda onde olhávamos o mar
Não te falo já
Escrevo para amanhã
As palavras adiadas de agora
Espero sempre noticias tuas
E nunca chegam
Continuo a não saber se existes por fora de mim
Porque habitas por dentro

Um incómodo silêncio se abate no dia de hoje
Não consigo apagar o passado
Amo-te só, um lugar do coração escuro
Não sei mais que te dizer. Das palavras finitas
Tardas demasiado em notícias
Nunca chegas.

Espero-te em todos os aeroportos
Em todas as estações ferroviárias
E todas as estações de metro
Em todas as paragens de autocarro
Todos os terminais do barco que chega da outra margem
Em todas as fronteiras
E não chegas…

Não sei se verdadeiramente existes
Existe a distância da tua ausência
Que me faz sentir esta saudade triste
Hoje. Porque o dia é frio e estranho
E eu estou longe. Demasiado longe
Na distância que falta ainda percorrer
O último trilho. A esperança vã do teu encontro
Porque estou perdido eu sei
Na tua ausência.

João marinheiro, Marselha 11/01/07
Fotografia de Artur Franco, www.olhares .com

sábado, janeiro 13, 2007

LÉO FERRÉ





...A poesia contemporânea já não canta…rasteja
Goza porem do privilégio da distinção…não frequenta palavras mal afamadas…ignora-as
Só com luvas se pega nas palavras: «a menstrual» prefere-se «periódico», e não se cansam de repetir que há termos médicos que não devem sair dos laboratórios e do codex

O snobismo escolar que consiste em só empregar, em poesia, certas e determinadas palavras, em priva-las de muitas outras, sejam técnicas, medicas populares ou argoticas, faz-me lembrar o prestígio do lava-dedos e do lava-mão
Não é o lava-dedos que faz as mãos limpas nem o beija-mão que faz a ternura

Não é a palavra que faz a poesia mas a poesia que faz a palavra

Os escritores que recorrem aos dedos para saber se os pés estão á conta, não são poetas, são dactilógrafos
O poeta hoje em dia tem de pertencer a uma casta a um partido ou à «fina-flor» de Paris
O poeta que não se submete é um homem mutilado

A poesia é um clamor. Deve ser ouvida como se ouve a musica.
Toda a poesia que apenas se destina a ser lida e fechada nos seus caracteres é uma poesia incompleta. Só as cordas vocais lhe dão o sexo, como o arco ao violino, tocando-lhe…


O filiamento é um sinal dos tempos. Do nosso tempo
Os homens que pensam em circulo têm ideias curvas. Sociedades literárias não deixam de ser Sociedade. Pensar em comum é pensar comezinho

Mozart morreu só, acompanharam-no à vala comum um cão e os fantasmas
Renoir tinha dedos aduncos de reumatismos.
Ravel tinha um tumor que lhe sugou de vez toda a música
Beethoven era surdo
Houve um peditório para o enterro de
Bela Bertok
Rutebeuf
tinha fome
Villon roubava para comer


Toda a gente se está nas tintas
A arte não é um gabinete de antropometria
Apenas sobre os túmulos se faz luz
Vivemos tempos épicos sem já nada termos de épico
Vende-se musica como sabão para a barba
E para que o próprio desespero também se venda bastará encontrar a fórmula
Está tudo a postos: os capitais
A publicidade
A clientela
O desespero, quem o inventará?
Com os nossos aviões que levam a palma ao sol
Com os nossos gravadores que se recordam das tais «vozes que já se calaram», com a nossa alma ancorada no meio da rua, encontramo-nos à beira do vazio, atados de pés e mãos no nosso embrulho de carne, a ver passar as revoluções
Não esqueçam nunca que a Moral o que tem de mais maçador é o ser sempre a Moral dos Outros
Os mais belos cantos são os de reivindicação
O verso deve fazer amor na cabeça das gentes. Na escola da poesia e da música ninguém aprende. TODOS SE BATEM!




...Porque o que eu te dou
não tem preço...


------------------------------- e,

...No palco há o silencio vestido de negro...







Avec les temps

Avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
on oublie le visage et l'on oublie la voix
le cœur, quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
l'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
l'autre qu'on devinait au détour d'un regard
entre les mots, entre les lignes et sous le fard
d'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
avec le temps tout s'évanouit

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'as un' de ces gueules
à la gal'rie j'farfouille dans les rayons d'la mort
le samedi soir quand la tendresse s'en va tout' seule

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
l'autre à qui l'on croyait pour un rhume, pour un rien
l'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
devant quoi l'on s'traînait comme traînent les chiens
avec le temps, va, tout va bien

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
on oublie les passions et l'on oublie les voix
qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
ne rentre pas trop tard, surtout ne prends pas froid

avec le temps...
avec le temps, va, tout s'en va
et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
et l'on se sent floué par les années perdues- alors vraiment
avec le temps on n'aime plus
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...O tempo…é como uma página que parece branca…o tempo, para mim, é o Amor vermelho e negro…igual a uma página da minha Música…

Nunca uma página está em branco; há sempre nela a imponderável marca dos farrapeiros ou daquele bosque que se cria perdido para sempre…

Para lermos nas entrelinhas, é preciso haver linhaspara lermos entre-olhos, é preciso haver vontade de nos deixarmos ler também…

...O sonho é a música sobre a página branca…ou a que branca parece. Porque no fundo a página é sempre negra, desse negrume dos cisnes, à noite, quando a gente de repente se lembra que não está neste mundo. As pautas, nesta folha de papel, estão cheias de sinfonias «simpáticas» …

A Música maior nunca ninguém a lerá, nunca ninguém a ouvirá.
Geme, algures, numa floresta mal apreendida ...



...Toda a poesia que apenas se destina a ser lida e fechada nos seus caracteres é uma poesia incompleta. Só as cordas vocais lhe dão o sexo, como o arco ao violino, tocando-lhe...
--------------------------------o,


...Criar é um prazer solitário. a verdadeira solidão. A musica é uma longa paciência. Uma espécie de palavras cruzadas...







...Apenas resto eu que não me quero à venda...

excertos e fotos do livro Leo Ferré 84

segunda-feira, janeiro 08, 2007


Sabes a paz do vento nas asas da gaivota
Nas velas do velho barco
Na cara do marinheiro triste
As águas doces tranquilas
Um sorriso no olhar
Fico assim.
Aqui!
Dou-te a mão
Obrigado!


João marinheiro 03/01/07
Fotografia de Helena Paixão

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Pensamento do dia 3. As palavras...


Chegamos e este ponto sem retorno da viagem e ambos dizemos:

- Passei para deixar um abraço!

E as palavras escasseiam.

Muito mais tarde, mas muito.

- Passei para saber como estavas…

E depois, mais tarde, mais adiante no tempo, demasiado mesmo, já não vale a pena passar.

- Já partimos os dois…

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Pensamento do dia 1

E o que existe em nós é um imenso nada!...