terça-feira, julho 22, 2008

A tua carta...


(Livro de Contos)

Querido Júlio

Não estranhes esta minha carta tão tardia. Peço-te desculpa por isso. Por ser tão tarde. Mas aconteceram tantas coisas nestes quase 50 anos que nos separam. Acho que desisti de ti ou desisti do teu amor. Não sabes quanto me custou separar-me, ir-me embora sem uma palavra, sem me despedir, sem dizer que ia. Foi um acto de cobardia de minha parte eu sei. Não sabes os rios de lágrimas que correram nos meus olhos. Acho que chorei tudo por uma vida. Agora secaram-me as lágrimas.
Durante uns tempos soube de ti. Lembras a Sílvia a namorada do Zé Areias, casaram quando vocês regressaram do mar. Acho que te recordas do Zé foi o teu imediato na segunda ou terceira viagem à Terra Nova, já não estou certa. Como andavas embarcado com o Zé eu ia sabendo algumas notícias. Terminaram quando deixaste a pesca do bacalhau e foste para os navios de longo curso. Fui mantendo o contacto com a Sílvia, umas duas cartas por ano. Nos primeiros anos perguntava por ti, ou ela me dava uma notícia a dizer-me que andavas pelo Pacifico, pela Austrália, pelas Américas, nessas alturas tinha a esperança que pudesses vir a Inglaterra a algum porto. Sentia uma vontade enorme de te ir ver. De ir ver o barco onde navegavas, a tua casa no mar. Nunca vieste pois não? Nunca quiseste vir para norte. Eu sei que soubeste que eu estava em Inglaterra. A Sílvia contou-te que eu vivia em Londres mas não te contou tudo. Isso vou fazer agora nesta carta, tentar contar-te tudo nesta carta. Não sei se vou conseguir. Confesso Júlio que me foi muito difícil começar a escrever. Compreendes aquele receio, aquele aperto no coração, aquele sufoco na garganta. Tanto que queremos dizer e não sabemos por onde começar. Eu demorei quase cincoenta anos a começar estas letras. Ainda gostas da minha letra? Desculpa que pergunta tola que te faço. Desculpa!
Fui embora Júlio porque desisti. Desisti de ti e de mim ma altura. Era o mar que se entrepunha, que nos separava. Comecei a odiar o mar que tu amavas. Tu sempre a dizer-me que amavas o mar, que te corria no sangue, que era uma paixão. Comecei a sentir-me uma mulher traída, e as mulheres quando amam, quando se sentem traídas perdem a cabeça. Perdi a minha foi isso! Perdi a cabeça e fui embora. Desculpas-me? Não desculpes!
Quando foste para baixo para Lisboa no navio para te juntares à frota acho que na minha cabeça a decisão já estava tomada. Tínhamos discutido, queria que arranjasses um trabalho em terra, e eu queria continuar os estudos, não ficar em casa à espera na angústia sem saber de ti tantos meses. Não sou uma mulher do mar. Quando cheguei a casa a decisão estava tomada. Fiz as malas e apanhei o comboio para França, depois o barco para Inglaterra. Atravessei o canal com medo. Medo de ver as velas do teu navio branco, um cisne do mar como lhe chamavas, mas sabia que era impossível, ias rumo aos Açores. Eu estava a norte, muito a norte de ti.
Matriculei-me na universidade e diz o doutoramento, no início foi difícil, diria complicado, os pais também se zangaram comigo, valeu-me no início a prima Zara que vivia em Londres e me auxiliou no primeiro ano. Não dominava a língua com facilidade, mas rapidamente me integrei na vida estudantil, também arranjei um emprego aos fins-de-semana numa livraria fantástica. Valeu-me Morris um querido professor de Arquitectura. Apaixonou-se por mim e eu com o tempo afeiçoei-me a ele, foi muito importante a sua presença durante a minha gravidez. Tive sempre o seu apoio. Acabamos por casar. E tu? Também casaste? Morris faleceu, faz hoje precisamente três anos. O tempo que me levou a decidir escrever-te. Três anos. Tenho pensado nisso. Se calhar por me sentir outra vez sozinha aqui. Talvez por sentir saudade de Portugal, da minha cidade, do rio Douro da praia, do mar. Acho que a palavra saudade é uma palavra traiçoeira. Ingrata diria mesmo. Prega-nos partidas. Mina-nos o corpo. Já não sei o que digo. Mas depois de Morris partir, à noite ficava na sala sentada no sofá a ler, ou a trabalhar no computador. Reformei-me, faz anos, mas continuo com as minhas pesquisas, os meus trabalhos de investigação, colaboro com algumas editoras e regularmente publico os meus artigos. E tu? Ainda escreves as tuas histórias de marinheiros que gostavas, eu te lesse em voz alta na sala. Se calhar já não. Há tempos numa pesquisa apanhei um susto. Fiquei a tremer. Comecei a ler, contava histórias que me eram familiares, parecia que eu fazia parte das histórias. Não és tu que escreves pois não? São demasiadas coincidências as palavras. Acho que nunca vou saber se foste tu que escreveste. Mas é a tua maneira sentida de escrever que me lembro, que eu li ali num sítio perdido da Internet. As palavras nestes três anos passaram a fazer-me companhia pela noite. Nunca fiz um comentário, nunca tive a coragem para vencer a barreira do medo, do anonimato, e escrever a perguntar quem era, quem escrevia assim da forma igual a mexer com os sentidos, a entrar em nós, como tu escrevias. Nunca fiz um comentário. Foi medo que me impediu. Medo da rejeição de saber se eras tu. Durante estes três anos alimentei a fantasia que eras tu. Sabia pela forma como escrevias se estavas alegre ou triste, se estava sol ou chuva, se era verão ou Inverno, se a praia estava deserta ou povoada. Se os barcos ainda continuavam a morrer abandonados na areia ou se salvavam. Durante estes últimos três anos viveste comigo outra vez à noite pela madrugada até ao nascer do dia. Eras tu que escrevias não eras? Mas já não interessa. Não faz falta saber. Finalmente ganhei a coragem para te escrever. Escrevo-te com a mesma caneta que me ofereceste um dia. Guardo-a como um tesouro, foi a única coisa que trouxe comigo. Acho que não te devo maçar com estes pensamentos, qualquer caneta serve para escrever. A Sílvia veio ter comigo este verão. O Zé faleceu repentinamente vítima de um enfarte, e ela veio ter comigo a passar um mês, foi um reencontro de duas amigas. Fez-lhe bem e a mim também. Pude treinar o meu português esquecido, faz vinte anos que não vou a Portugal, sei das notícias pela RTPi. Estou a pensar em ir ao Porto, a Sílvia convenceu-me. Este verão possivelmente.
Falamos de ti e de nós. Soube que te reformaste, que continuaste a dar aulas de náutica, que não deixaste os velhos barcos à vela, que manténs a mesma casa, que viajas bastante, e que ainda escreves. Não contei à Sílvia que te leio na net faz três anos. Depois de ela me dizer que ainda escreves, fiquei com a certeza de que és tu que escreves. És tu que escreves não és? Soube também que não te casaste, que optaste pelo mar, que andavas sempre em viagem a levar navios cada vez maiores de um porto para outro. Que naufragaste duas vezes que da segunda vez te encontraram por mero acaso ao fim de quinze dias, moribundos, tu e mais oito dos teus marinheiros, que estiveste uns meses no hospital, que depois disso deixaste as longas viagens e te reformaste. Porque nunca casaste?
Com o reencontro da Sílvia voltou a palavra esquecida ao meu corpo a palavra saudade. Comecei a sentir saudades de ti, do mar, de nós. Aos poucos reuni a coragem suficiente para te escrever. Já não tenho a coragem de antigamente. A idade torna-nos submissos. Já não consigo imaginar-te. Como és, se o marinheiro alto e esbelto, entroncado de cabelo loiro curto vestido de branco e azul-escuro, se um marinheiro alquebrado pelo mar de olhar triste irreconhecível, distante. Por vezes pergunto-me se te encontrasse na rua, se te iria reconhecer, acho que sim, tenho essa secreta esperança. Mas será difícil. É incrível mas a Sílvia de tantas fotografias que trouxe, não tem uma única onde tu estejas, nem do tempo que o marido andava contigo embarcado. Sempre foste pouco fotogénico como dizias, eu sempre achei que não. Deixa parece que já não sei que te escrever e estou para aqui envolta nos pensamentos. Desculpa fazer-te perder tempo a ler estes disparates que escrevo…


Beatriz (Continua...)

Fotografia: Oleo sobre tela de João Renato