quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Hoje um ano depois, um obrigado a quem acompanhou as palavras aqui no memóriasvirtuais.
Encontramo-nos por ai quem sabe, numa singradura da memória...

sábado, fevereiro 24, 2007

Da nossa partida eminente…II


Até aos Açores são 600 milhas. Porque raio me lembrei de partir, de querer ir tomar um último gin ao café do Peter. Acho que nunca vou obter a resposta para este meu acto temerário…Os actos temerários por vezes pagam-se caros, o mar está cheio de temerários e de heróis mortos…

Esta noite tenho medo. Tenho, sinto o medo por dentro.
O mar está a mudar. Um ruído grave e baixo. O horizonte escurece, a brisa aumenta de força. O anoitecer está diferente, pesado, lubregue. O tempo arrefece.
Entretenho-me a fazer uma sopa para o jantar. O fogão oscilante. O púcaro oscilante. O prato oscilante. Tudo se mexe debaixo dos meus pés. O barco ressente-se das milhas navegadas, uma vida a carregar comigo. Fomos felizes os dois quando tu embarcaste. Ganhou alma e um brilho novo no convés. O casco ficou mais esguio, mais ligeiro na água. Acho que tudo são impressões da minha cabeça. Mas tu eras a alma a bordo.
Gostava de te ver ao por do sol de cabelos soltos em contra luz. Nua, como gostavas de andar para me provocar. Só eu, tu, e o velho veleiro que nos abraçava no interior. Só eu, tu, e as brancas velas que nos acariciavam o rosto. Só eu tu e o amor que respirávamos. O meu ar era teu. O teu meu. O mundo nosso. O oceano dos dois.

Mas esta noite tenho medo.
Os instrumentos de bordo estão loucos, o barómetro caiu assustadoramente, a pressão baixou, vem temporal por ai, e a esta altura da viagem a esta distância de terra o VHS está mudo, salva-se o rádio das métricas. Estou mesmo só, sem contacto para terra, sem saber do boletim meteorológico, mas não preciso, a tempestade anuncia-se baixinho. As nuvens carregam toda a chuva e toda a raiva ácida de todos os continentes.
Tenho de me prepara para o que ai vem.

Revisão geral. Fechar os albois de proa, cerrar as portas de mar, prender tudo no convés verificar o motor, verificar as pilhas na lanterna, verificar os moitões das velas, os cabos do estai, os brandais. A retranca da vela grande, as luzes de navegação.

Troveja ao longe a noite chegou escura, pesada, nem uma estrela no céu, sopra mais forte o vento, e faz abater o rumo na agulha. Corrijo, sei que esta noite vai ser de derivas, presinto. Mas tantas vezes já apanhei as tempestades…

É quase meia-noite estou cansado, começou a chover. Parece que todos os amantes se reuniram para chorar hoje. Bátegas de chuva grossa que ferem a cara e os olhos. As vagas já são grandes. Às vezes não as vejo, sinto-as só a virem em cachoeiras de espuma fustigadas pelo vento. O barco tranquilo mete a proa e levanta, mete a borda inclina-se como que a adormecer, então eu orço. O leme obedece e ele vai e cai na cava da vaga cansado. Tenho medo que caia de uma vez. O anemómetro giro como um louco. O vento está forte, tenho de arrear pano, rizar. Estivar a vela. Este ainda é um aparelho à moda antiga, uma carangueja grande e dois estais, já os recolhi, agora é só a vela grande. Aproo ao mar e ao vento. Tenho de meter o motor a trabalhar. O velhinho Perkins de 12 cavalos. Com tantas horas de trabalho, tantas milha. É antigo, pega ainda por manivela. Tudo neste barco é antigo. Até eu. Puxo os descompressores dos dois cilindros, dou-lhe três voltas a ganhar embalo, e enquanto o velho volante gira acciono o primeiro descompressor para comprimir, dá um soluço e gira, ligo o outro, dá outro soluço, e mais outro, e mais outro, e vai, vai só por si como que a cantar. O som abafado e quente do velho motor. Engato à vante e fico por ali às 600 rpm aproado ao vento a singrar devagarinho. Arreio a vela e já não rizo. Ela que estava abandonada a bater como um lençol no fieiro da praia abandonado nos dias ventosos. Caço a vela toda, aperto-a na retranca, bem apertada, bem estivada, não está noite para aventuras nem para navegar à vela.
A noite é de esperas e de incertezas…

Estou só no poço, tenho as escotilhas fechadas, vesti o fato de temporal. O fato especial que comprei. Lembras um para mim, outro para ti. Fatos de sobrevivência. Impermeáveis com malha polar por dentro e estanques. Com faixas luminosas para serem visíveis. Coloquei o arnês e o colete salva-vidas novo, aquele que é accionado por gás comprimido. É mais fácil de usar e esta noite vai ser agitada.

Olho os instrumentos, o anemómetro salta dos vinte e cinco para os trinta nós de força. Calculo força seis, força sete. As vagas crescem, cinco, seis metros…Sinto-as a rugirem, a espumarem na noite, a baterem no casco. São todas as fúrias das entranhas e das profundezas que se juntaram hoje. Agora é aguentar e estar vigilante, não vá ser abalroado. No meio do atlântico, esta é uma rota usada também pelos grandes navios que cruzam de norte para sul ou vice-versa.

Sinto o vento na cara frio a gelar, e um frio entranha-se em mim. Porque será que quando estamos com medo tudo nos mete medo. E porque tenho eu medo. Porque tenho? Porque me vim embora? Porque vim em tua busca?

Eu sei que não estás. Eu sei que já não estás. Que aconteceu naquele dia? Que aconteceu meu amor. Porque não me chamaste. Porque nem um grito escutei. Não me perdoo. Tu sabes, onde quer que estejas. Não me perdoo. Eu é que era o patrão no barco. Tu a minha convidada. Agora espero sempre que regresses um dia. Sinto-me negro por dentro. De luto por mim. Espero sempre que chegues, que te recolham numa ilha qualquer, que um navio te tenha salvo. Que tenhas ido para ao outro lado do mundo e regresses. Assim estou numa espécie de luto por fazer. Um naufrágio sem naufrago. Afogo-me nas saudades. Confundo o sabor das lágrimas com o sabor da água do mar.
Foi o mar que te levou não foi? Não posso ter dois amores pois não? O mar é ciumento não é?
Estou exausto. Sinto-me a tremer por dentro demasiado cansado. Húmido ensalitrado, doem-me os olhos a noite é de um negro demasiado negro, os meus ouvidos desesperam. Parece que te escuto a gritar no meio do nada, não te consigo ver. Só as vagas que varrem o convés. Só o vento que fustiga os brandais e provoca silvos como uma serpente endemoinhada. Não me podes vencer mar. Não me podes levar também. Porque me queres vivo? Para dizer que te amo. Mar desgraçado! Eu perdoo-te. Não sou de guardar rancores. Mesmo que me firam quase de morte. Morro aos poucos devagarinho. Os marinheiros morrem assim. Devagarinho! Fomos nós que inventamos a saudade. As lágrimas com sabor a mar. As ausências sentidas e consentidas. Fomos nós que nos dizemos lobos num mar que nos escorraça.

Que se passou contigo meu amor? Nunca o vou saber dou-me conta. Nunca, e cruzo este oceano imenso em tua busca. Sei que já não voltas. Que habitas um lugar mágico no reino de Neptuno, rodeada de corais rosas e de pérolas. Às vezes na ardência do mar parece que és tu que caminhas.

Passaram já quatro horas, acho que estou no mesmo sítio. O vento amainou estamos os dois cansados, o barco mais eu. Queria dormir. Despir o fato e deixar-me estar no beliche de olhos fechados. Não acordar mais. Ainda me sinto a tremer por dentro. Mas tu dás-me a serenidade e a lucidez suficiente para ter paciência. Penso em ti e deixo de ter medos…És a minha luz do alvor. A estrela da manhã. A estrela Polar que me guia. Vou descansar um pouco e reorganizar-me a bordo. O trabalho é uma rotina mas tem que ser feito. Amanhã ou depois chego ao destino. Amanhã ou depois…


Tenho o Faial pela proa finalmente. Chego inteiro. Acho que desta vez me libertei dos medos. Vou atracar, estou com a tal vontade de beber um gin, e dar um abraço ao Peter. Um abraço de condolências também pelo pai que partiu. Um abraço atrasado, como gostaria de te ter dado. Tanto que gostaria de te ter dado. Tanto que me faltava viver contigo. Tanto ar teu que me fazia falta respirar. Tanto de ti em mim. És imensa e eu sou nada. Sou nada sou nada!

Tive sorte! Tive sorte! Tu dás-me sorte. Vendi o barco regressei de avião. Acabou!
João marinheiro 2007
Fotografias Google



terça-feira, fevereiro 20, 2007

Volto à minha ilha, é tempo de folia, de Carnaval…


Éramos poucos, muito poucos. Oito famílias no Inverno que ia forte. A mãe costumava fazer bolos nesta altura, no tempo das gaivotas fazia bolo com ovos de gaivota. Gostava de ir aos ovos de gaivota frente ao pavilhão, era um burburinho as gaivotas no ar a piarem em voos rasantes para que eu me afaste dos ovos. Sabia dos ninhos, e quando elas põem os ovos se tirar os primeiros elas fazem uma nova postura de três ou quatro já nem lembro.
Esta é a minha ilha, sou o miúdo mais velho, somos 6, temos um baloiço de dois lugares junto ao estábulo do burro. O burro é o Ruço. O Ruço é manhoso. Um dia o tio teve de carregar todas as mercadorias do barco para o farol, até às tantas da tarde, de castigo. O chefe era mau. Regras eram regras…O tio estava de serviço ao burro, e o burro sabia que nos dias de barco tinha trabalhos dobrados, triplicados, quadruplicados…Gostava de estar no fundo do estábulo a olhar para a porta pelas sete da manhã, hora da ração. Nos dias de barco era preciso cuidado com o Ruço, ao abrir a porta, saia como uma bala e não havia quem o apanhasse, voltava à noite depois do barco dar o apito de partida. O velho Berlenga com o mestre Paiva ao leme, um homem grande, com umas mãos grandes, e um olho para cada lado…Acho que era um pouco estrábico ou cego de uma vista, já não sei. Sei que gostava na vinda para a ilha de passar junto ao Cabo Carvoeiro, rentinho, ali onde as correntes se encontram e formam vagas altas e cavadas. O barco dava umas mergulhadas, caia na cava das vagas. As mulheres assustavam-se. Um dia o motor até parou. O pai era especialista em por motores a trabalhar, foi lá abaixo e colocou o motor a funcionar, lembro-me porque cai nesse dia com o salto, ia junto da mãe na cabine dos passageiros dirigia-me para a pequena casa de banho e fiquei espalhado ao comprido, apanhei um susto. O mestre Paiva ria-se, dizia que o mar não era para as mulheres…Nunca gostava de se desviar do rumo, ir um pouco mais pelo sul do Cabo, de modo a atenuar o sobe e desce do barco na ondulação. Era uma cabeça dura e teimosa…

No verão eu gostava de ir à proa a ver os golfinhos a saltarem na nossa frente. Mas isso são outras histórias…A história de hoje é o Carnaval na ilha, o nosso Carnaval, o Ruço era um dos actores. O Ruço e o carro do transporte que às vezes tinha de puxar sempre que havia gasóleo para trazer para cima, bidões grandes com 200 litros.
O Ruço tinha manias…Andava a uma velocidade sempre igual mais lenta para cima, quase parado para baixo…Era preciso convencer o Ruço. Trabalho de psicologia asinina. Para colocar a albarda e as cangalhas era o cabo dos trabalhos. Quando estava de mau humor era coice para tudo o que era sitio, por isso tiveram de mudar o Ruço para os galinheiros junto aos baloiços ali era mais fácil de controlar. O sitio era mais apertado que o estabulo grande junto dos tanques de lavar a roupa e do forno de coser o pão. Mas o Ruço não tinha culpa, estava doente de solidão como todos, foi substituído nos anos setenta. Acho que em 71, já na altura em 67 ele era velho e manhoso, fez mais de vinte anos só, na ilha. Às vezes zangava-se e então comia os lençóis brancos se estivessem a secar, porque nos dias que não havia barco podia estar solto que não fugia dali, mas vingava-se, comia o sabão, a roupa. Vinha devagarinho e roubava os cigarros aos faroleiros ou aos turistas. Vinha de boca aberta e abocanhava o cigarro, acho que descobriu que o cigarro dava para atenuar a solidão… O problema era mesmo os turistas no verão. As turistas melhor dizendo, o burro que não era burro nenhum excitava-se com o perfume das turistas e com as turistas. Corria atrás delas a zurrar e com o “coiso” pendurado… Eu achava aquilo um divertimento, até um dia. Um dia que o Ruço cismou de se por às cavalitas de uma turista, foi o cabo dos trabalhos…Queria ferrar em todos de olhar esgazeado. Ruço diabólico…Outra vez estava ele descansado a dormir ao sol, e uma turista sentou-se em cima, para fazer uma foto, resultado apanhou uma ferradela num braço e um susto. Às vezes, pouco depois do Cabo Avelar chegar e descarregar os magotes de gente ávida por descobrir a ilha e deixar todo o lixo que traziam, eram só gritos dos turistas e turistas a entrarem pelo recinto do farol a dentro, com o Ruço atrás com o diabo no corpo. Achavam piada àquele animal afável, pequeno, por ali a destoar do silêncio da ilha, a destoar na própria ilha, porque a ilha era das gaivotas das galhetas, dos ratos e dos coelhos. Os faroleiros, as crianças e o Ruço estávamos a mais…
Do episódio da ferradela ficou registado no livro-diário o seguinte; A turista ferrou no burro que por sua vez ferrou na turista. Assunto arrumado!

O Ruço passou a andar amarrado por uma corda e ficou ainda mais melancólico. Às vezes punha-se a zurrar tempos infinitos, fazia as reclamações todas de uma assentada…

Volto às manias do Ruço nas descidas e nas subidas…Nunca percebi o ritual…
Cagava e mijava nos sítios certos, o termo é mesmo esse. Literalmente! Na descida parava nas estações todas, umas 5 ou 6, acho que aquilo era manha, chegava, parava, cheirava as castanhas e fazia mais duas ou três, mais abaixo uma mijada, depois mais umas castanhas. Um ritual. Na subida o mesmo. Não havia arte ou manha que o fizessem acelerar o passo cadenciado de anos de treino, e se puxavam por ele lá escorregava uma pata, as ferraduras polidas do desgaste, estacava. Fincava as patas da frente e nem de empurrão ele arrancava. Tinha uma personalidade forte, manhosa, vincada. De desesperar o faroleiro de serviço ao burro. Mas tinha um, um faroleiro, um primo do pai que lhe trocava as voltas, sempre que estava de burro e que queria ir a terra, só podia ir depois de ter levado tudo para o farol, as compras todas, assim usava um desperdício com gasolina no cu do Ruço. O Ruço ficava assim com uma espécie de turbo nas pernas, abalava a correr por ali acima. Um dia a coisa deu para o torto, a albarda partiu a cinta, as cestas, as cangalhas, caíram, espalharam-se as mercearias, a fruta caiu ao mar a rolar pela ilha abaixo, maças, laranjas, limões, batatas, tudo o que ia nos sacos, o Ruço solto levou arda, desapareceu literalmente, o Jorge, acho que era Jorge o nome do faroleiro teve de carregar tudo à mão e ficou de castigo na Ilha a procurar o Ruço. Foi proibido usar aditivos no Ruço, gastava as ferraduras mais depressa e sempre que o ferrador tinha de vir à ilha calçar o Ruço era uma festa, ou não era…Esse dia era dia do Ruço escoicear, de ferrar, de se rebolar pela terra de correr esgazeado pela ilha fora. Até os coelhos e os ratos e os sardões fugiam a sete pés e mais que houvessem…Tinha uma incompatibilidade deprimente com o ferrador. Homem pequenino, matreiro, especialista em espetar os cravos com duas marteladas nos cascos pequenitos do Ruço.

O Ruço que me lembro das vezes que com ele brincava tinha um olhar dócil, uns olhos grandes tristes, gostava de me cheirar e de mostrar os dentes. Éramos bons amigos. Já nem me lembrava que tive um amigo burro…Gostava de comer as favas dele, favas secas grandes e as alfarrobas doces, o Ruço gostava das alfarrobas, eu também.


Mas tenho de voltar ao Carnaval. Fazia-se uma festa, ali. Como éramos tão poucos éramos uma grande família. À noite tínhamos uma televisão na sala do ping pong e as senhoras juntavam-se ali a fazer malha a conversar, os homens a jogar cartas, nós os miúdos a caçar ratos. Eu era especialista em caçar ratos. Às vezes fugia deles mas isso era quando eram muitos e se lembravam de vir atrás de mim… Outra história…
No Carnaval todos nos mascarávamos, das mais variadas formas, sempre sem ofender a Nação…Porque no tempo existia a Pide. Lembro-me que anos mais tarde depois de Abril de setenta e quatro, um companheiro do Pai que esteve connosco na Berlenga foi preso porque diziam era informador da Pide, outra história…

Desse tempo, desse Carnaval existem uma ou outra foto por cá no álbum das minhas memórias…Já nesse Carnaval o Ruço era considerado o elevador atómico da Berlenga. Sem duvida o Ruço foi sempre mais que um elevador…. Prova o cartaz empunhado…divertíamo-nos muito nessas alturas. Não tínhamos banda de música nem gira-discos mas tínhamos boa disposição, ar puro, e um acordeão…
E o Ruço para nos passear de carro, o carro possível…

Muitos anos mais tarde voltei à ilha, apanhei um susto, fiquei triste com o abandono a que o Farol está votado. Desmemoriado. Não me espanto estão todos a cair aos bocados, em muitos ficam as minhas memórias de um quarto de século…Viva o Carnaval, e como se diz ninguém leva a mal…

João marinheiro, Carnaval de 2007
Fotografias do arquivo de Barcoantigo

domingo, fevereiro 18, 2007

Da nossa partida eminente… I


Vou então também embora meu amor. Bastaram-me estes últimos anos de sacrifício. Um amor a uma voz. Estou desmemoriado, acabaram-me as memórias. Ficam só uma espécie de filamentos ténues, um fio de nylon invisível que me prende ainda a ti. Acho que perdi a conta as vezes que te pedi perdão.
Dou-me conta nunca me perdoaste e eu ainda não descobri onde errei, ou talvez não.
Desculpa ter-te amado com o lado errado do coração.

Foste embora e levaste contigo tudo o que trouxeste de teu. O teu corpo, as tuas mãos, o teu riso, o teu olhar, o teu andar gracioso, os teus gestos, o teu cheiro. O cheiro que tenho entranhado nas narinas e nas mãos. O perfume dos teus cabelos. Os cabelos soltos ao vento quando passeávamos de mão dada na praia do cabo do mundo. O jeito de me olhares, como que a quereres entrar por dentro de mim, toda, e possuir-me de uma vez por todas e deixares-te ficar aninhada por dentro das orbitas por dentro do meu olhar. As vezes que eu me perdia a olhar-te enquanto dormias ao sol na nossa praia. As vezes…
Deixaste-me a tua marca por dentro. Uma memória desmemoriada, um desassossego.

Hoje chove torrencialmente nos meus olhos
És Inverno maduro adiantado…

E eu estou aqui de volta das memórias. As poucas memórias de que me alimento, tentando num gesto temerário reunir as pontas destes fios que me prendem ainda a ti.
Perdoa a minha insegurança. O chamar-te de meu amor. Às vezes dizem que sou especial. Que tenho um coração nobre, do tamanho do mundo. Sou é frágil. Sou é demasiado frágil desde que foste embora. O resto sou eu a tentar esconder-me, a tentar que não saibam da minha desilusão, porque quando sabem geralmente vão também embora de mim. Sei que não és. Faz tanto tempo que não és. Só a minha alucinação só o meu sonho que não quero desvanecido no tempo. Perdoa meu amor. Perdoa dizer-te assim de forma tão crua e fria já. Meu amor ausente. Minha insegurança. Meu sofrer. Meu amor vazio que é como te sinto. Vazio. Chamo-te para me sentir vivo entende.
Chamo para exorcizar os medos. Chamo para que me aqueças o coração doente. Chamo porque tenho saudade e frio. Muito frio. Perdoa o andares por dentro de mim nas minhas viagens. Eu deixo só para que tu me acalmes as tempestades como a última à qual sobrevivi milagrosamente porque tu vieste. Vieste como a LUZ, como a calmaria, como a bonança, como um deus diáfano sobre as águas revoltas do oceano que me renegava. Vieste. Eu sei que vieste. Porque penso em ti e deixo de ter medos…

Vou também embora. Embora de mim, estou demasiado desiludido com tudo e sobretudo cansado. Muito cansado. Muito cansado. Já não tenho as tuas mãos para me acariciarem o rosto enquanto dormia e os medos, os sobressaltos, as aflições se iam embora lentamente.

A minha última viagem deu para reflectir, para sentir o medo em mim, a aflição. Já não estava habituado a navegar em solitário, o barco, o nosso velhinho veleiro parece-me imenso sem ti, e um silêncio incomodativo nas noites longas se abate sobre mim. Logo eu que tanto gosto da navegação sob o olhar atento das estrelas e da lua esplendorosa. Logo eu.

Tu não sabes meu amor, tu não sabes das aflições que senti e o importante que és em mim.
Tu não sabes do meu amor intenso, que às vezes me parece um cemitério de restos.

Tive muito medo sabes. A minha vida como um filme em câmara lenta, o meu naufrágio na juventude, as 5 horas a lutar pela vida e terra ali tão perto e a noite que chegava e o companheiro meio desfalecido longe do barco e eu sem saber que fazer, se lhe acudir e abandonar o barco ou tentar dar-lhe ânimo para nadar até mim. Tu não sabes que em segundos tive de decidir tudo sem erros sem falhas, sem medos, os medos vieram depois quando nos recolheram ao sol-pôr e estávamos exaustos a entrar em hipotermia. Tu não sabes dos meus medos de miúdo. Era um miúdo nessa altura. Que sabe da vida um jovem com 16 anos? Que sabe? Que pensa? Que pode voltar o mundo com a força das mãos e os sonhos? Quem sabe? Quem sabe! Aprendi a lição, e a respeitar o mar, a amar o mar. Até hoje, tem sido fiel essa relação, sem traições sem adultérios sem omissões, somos os dois e um só. Mas às vezes o mar zanga-se comigo, talvez para me chamar a atenção da minha temeridade do meu destemor do meu desprezo pela vida, só tu me interessavas não te dás conta, por isso parti mais uma vez numa altura em que não o deveria ter feito. O oceano é misterioso tem os seus segredos as suas manhas os seus encantos.

Porque me deixo enfeitiçar pelo mar?
João marinheiro 2007
Fotografia de Barcoantigo

sábado, fevereiro 17, 2007

das palavras V...



Só tu me fazes voltar ...

…Escuta meu amor o som da levada no rio
Sente meu amor o calor do sol nas tuas mãos
Embriaga-te meu amor do perfume das magnólias na janela do teu quarto
- Ah meu amor! - Meu amor!
Se eu pudesse oferecer-te o mundo!

Só o tempo nos permite amadurecer o amor
Só o tempo lhe dá a idade da maturação
O apurar das formas
O gosto dos aromas
O tempo meu amor…

Escrevo-te pela madrugada
Porque a madrugada é o tempo dos amantes
E eu gosto de te sentir na madrugada
No frio das serras
No gelo branco dos prados
Escrevo-te pela madrugada
Na hora dos amantes.

Regresso lentamente serpenteando a serra meu amor
Esta é uma viagem da saudade
E vou devagarinho na ida
É tempo de partidas
Só tu me fazes voltar…


João marinheiro fevereiro 2007
Fotografia de Barcoantigo

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Das palavras IV...


Apesar de tudo e depois de tudo guardo-te para sempre. Sei que a minha hora chegou. É tempo de partidas hoje…


…Despedimo-nos meu amor com o gosto amargo da derrota na boca
E o peso de mil desânimos nos olhos
Despedimo-nos meu amor sem mais uma palavra
Só o silêncio permanece inalterado e puro em nós

Despedimo-nos com a angústia nos olhos
O desejo nos lábios
O querer nas mãos

Despedimo-nos com a tristeza residente
A alegria ausente
A dor presente. Sempre presente em nós.
Ambos partimos já
Demos as mãos pela última vez
Um fogo que nos queima como brasas rubras…


João marinheiro, 2007
Fotografia Google

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Das palavras III...


Nem tudo foi mau. Nem tudo foi mau em nós. Alguma verdade existia nas tardes que passamos juntos a escutar o murmúrio das águas e o som dos nossos lábios. Nem tudo foi mau.
Ouvir a voz do mar. O oceano pleno.
Nem tudo foi mau. Escutávamos a voz do mar e eu olhava-te e falava-te de viagens e sonhos e descobertas e gostos e quereres e partilhas que queria contigo, tentando distrair-te, para que não percebesses que a voz do mar me dizia baixinho da tua partida eminente. A mim que sou marinheiro e aprendi a escutar as vozes do mar quando fala baixinho ao coração dos homens que são no fundo homens, embora nos dias, em todos os dias, sejam marinheiros disfarçados de lobos-do-mar a esconderem as emoções. Não deste por nada. Não deste por nada e continuaste a olhar para mim e a sorrir. Só eu desviei o olhar. O perdi no longe. Soube demasiado cedo da tua partida eminente.
O mar empalideceu, tornou-se lívido, um cinza esverdeado. Não me deveria ter dito nada. Distraiu-se o mar.
João marinheiro 2007
Fotografia de Barcoantigo

domingo, fevereiro 11, 2007

das palavras II...


Estás surda não estás?
Não me respondes.
As pessoas são assim, deixam de falar, deixam de estar, deixam de ser importantes ou talvez não. São livres de viver e de irem. Um vaivém perene como os comboios numa estação do metro que anda pelas entranhas sem nunca ver a luz do sol.
Só nós ficamos. Os sobreviventes das palavras. Os sobreviventes dos sentidos. Os sobreviventes do amor.
Só nós ficamos sem amor nenhum já. Só nós, para tentar remendar esta palavra. Esta manta de retalhos rota. Esta palavra AMOR. Só nós, os sobreviventes, para tentar dar o carinho que resta ao amor perdido, nas linhas negras, do tal metro que anda por dentro das veias onde o sangue já não tem brilho e é baço como o olhar.
- Só nós!
Estás surda. Calculo que da insistência das rodas nos railes diariamente na estação do metro junto à tua casa. Só eu não sei da tua casa, da tua janela. Só eu não sei nada de ti. Acho que nunca te perguntei de ti.
- E de mim perguntaste? – E de mim!
Já não me escutas.
Estarás surda porventura?
João marinheiro 2007
Fotografia; Rui Vaz/www.olhares.com

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

das palavras I...


Queria dizer-te pela enésima vez que já não é só a tua ausência que me dói. Já não. Já não sei se dói. Já confundo a dor com a tua partida.
Não! Não acredito que te tenha perdido da maneira que dizes. Mas as palavras não são tuas. Não é possível ouviste! Afastaste-te demasiado. Não te queria tão longe. Gostava de andar de roda de ti. Tu não deixas já. Dás-te conta?
Engraçado. Tu estás. Tu estás aqui onde sempre estiveste, no mesmo sítio. Eu é que não. Eu é que parece que estou do outro lado do mundo. Muito, mas muito, mas muitíssimo muito longe mesmo. Onde parece que estou já não dás por mim. Aos poucos vou ganhando essa certeza que cresce lentamente.

E eu acho que devo andar pela Indochina, na Conchixina, ou mais longe ainda na Patagónia, ou ainda mais longe, na Micronésia, com o mar azul e uma pequena ilha. Eu estou ali. Na ilha minúscula onde só cabe um coqueiro e a tua memória.
Eu enlouqueço de solidão e morro de saudade.
Já não escrevo porque me inspiras. Escrevo porque me desesperas.

João marinheiro 2007
Fotografia Google

segunda-feira, fevereiro 05, 2007


Recuso ver-te de outra forma que não a memória de ti
A beleza não morre e tu foste bela.
As tuas mãos, o teu rosto, os teus seios
Recuso-me ver-te de outra forma.
Quero-te no sonho prolongado
Sem que os anos passem. Guardo-te
Há qualquer coisa de injusto porque os olhos já não são da mesma idade
O que te roubou o tempo?
Recuso ver-te sem ser vivendo a tua memória
Mesmo crua e triste.
Há qualquer coisa de injusto em tudo isto
Os meus olhos tem a idade da memória…
João marinheiro 2007
Fotografia Google