quinta-feira, dezembro 25, 2008

Do desencontro... VI parte



(livro de contos)


Vou para o hotel, está decidido. Falei com o Dr. Ernesto e todos os pertences do pai vão ficar aqui guardados, os mais pessoais, os livros vão para Londres para casa da mãe, eu também vou, quero com calma mergulhar dentro deles colher palavra a palavra a tentar conhecer este homem, a tentar conhecer esta parte da vida desconhecida da mãe. Agora vou para o hotel, levo o computador portátil do capitão. Mais logo pela noite no sossego da madrugada vou ver o que encerra, o que me deixou escrito, as pistas, ainda me parece que tudo isto é um jogo, uma espécie de jogo virtual do qual não sei as regras, onde não conheço os adversários. Tenho momento que penso, nada disto está a acontecer, depois dou-me conta que tudo é demasiado real, demasiado forte, demasiado grande para estar a acontecer agora. Mas está, acontece, por vezes demasiado rápido para o entendimento, por vezes demasiado lentamente. Espécie de filme de imagens paradas, fotograma a fotograma, uma nitidez impressionante de arrepiar, que assusta. Tudo aqui foi pensado para a minha vinda, tudo aqui foi pensado para a morte, tudo aqui foi pensado com tempo. Todo o tempo do mundo. Num repente um flash de luz na minha cabeça, foi isso, eu vi o livro pousado na secretária, marcado, um marcador em couro, uma tira com um monograma dourado, é isso o livro, “ Todo o tempo do mundo” instintivamente dirijo o olhar para lá, a secretária. O livro permanece no mesmo lugar, pego-lhe e abro na página marcada, um poema sublinhado, demoro a ler:

Espero-te ainda

Tu não sabes que do outro lado do mundo eu penso em ti
Que te sinto em cada batida do coração a ressoar por dentro dolorido
Que te desejo intensamente. Um vazio estremo
E que o olhar morre lentamente
As palavras dão á costa naufragadas na memória
E que já não tenho memoria do tempo dos amantes de uma noite


Não podes saber que as noites agora são sombrias
Os braços de luz do farol se apagaram
O rio secou assoreado nas lágrimas salobras
O mar recolheu a uma terra estranha
E a linha de costa
É uma beira-mar juncada de sargaço morto
E que eu estou aqui ainda
Sentado na beira-rio esperando por ti
Enquanto o frio me invade os sentidos
O mar se recompõe da noite longa e acorda em maresias de sal
A névoa se instala abraçando o mundo
E eu cego, tacteio o rumo que me afasta de ti
Espécie de suicídio negro na estrada

Tu não sabes
Da minha vontade de escutar a tua voz
De te sentir no olhar
De te amar outra vez
Tu não sabes porque és espécie de andorinha que partes
Porque o Verão é doido e parece Outono e te desnorteias
E assim inicias o regresso sempre
E eu fico aqui no outro lado de mim a olhar o mar na noite e o rio e a foz
E o farol apagado que me guiava até ti na lonjura da memória dos tempos…


Um poema que fala da memória dos tempos. Um poema a sentir-se a imaginar-se, quase um grito de desespero, estranho, a provocar um ardor por dentro. Folheio mais um pouco o livro e cai uma folha seca, esquisito, uma folha dentro de um livro de um homem do mar, agacho-me para a apanhar. Seca. Arroxeada. Parecia uma folha, não é, pego-lhe com cuidado, um amor-perfeito, é isso, a flor é um amor perfeito, pouso o livro e folheio a tentar descobrir onde estava, descubro a forma impressa na folha parda de papel, o lugar violado por mim, entro num espaço do tempo esquecido quase a medo, as palavras a bailarem vertiginosamente na frente dos meus olhos, quase um balanço brusco do navio. As palavras sublinhadas, e escrito a lápis em baixo uma nota de rodapé:

“Foste a flor mais perfeita, o amor-perfeito em mim, és ainda, só secas, só morres quando eu morrer em ti e tu em mim.
Amo-te Beatriz.”

Sinto-me a mais aqui, quase um ladrão a roubar os segredos, o lado mais íntimo do sentir, o pensamento, a emoção, o amor, não sei explicar o que sinto. Fecho o livro, levo-o comigo agora e o portátil, saio porta fora em direcção à porta principal, os corredores em silêncio na penumbra. Aqui o tempo passa demasiado devagar ou sou eu que me sinto a ficar sem forças, sem ar, um nó na garganta sufoca-me. Dou-me conta que este pai me fez sempre falta. Dou-me conta que sou como ele, cópia perfeita. Dou-me conta que foi isso que ele descobriu. Tenho de abrir o pc. Tenho de apanhar um táxi já e refugiar-me no meu quarto no hotel a ler. Vou ligar para a mãe a avisar que vou para Londres que levo os livros e os cadernos do pai, levo também o seu fato de capitão. O resto fica aqui guardado. Vou providenciar para que a casa do Porto seja arranjada de imediato, depois levo tudo para lá, e levo a mãe, quero regressar às origens, espécie de regresso ao ventre materno.

Estou meio doido com tudo. Depois vou fazer uma visita a uma pessoa, vou tentar que me receba. Espero que me receba. Não adianta telefonar-lhe que não atende. Não responde às mensagens, mas tem toda a razão, fui eu que fui embora sem uma palavra, éramos só amigos, eu pensava assim ela não, era amor que sentia, eu não sabia, não queria saber, fingia não querer saber não me queria prender, depois dei-me conta da sua falta em mim.
– Que porra! Fiz exactamente como o pai. Como pode ser possível? Como?
Tenho de mudar de rumo, tenho de traçar uma nova rota a aportar ao coração dela, lá é o meu porto seguro. Se me receber, se me quiser, se me amar. Se não tiver já o coração ocupado. Sinto um calafrio a percorrer a espinha, o meu corpo, uma espécie de choque eléctrico. Sou um homem parvo, nunca me tinha passado pela cabeça que ela pudesse ter o coração ocupado. Que pode ter o coração ocupado. Casada. Uma família e filhos. Sinto o mundo a cair em cima de mim. Os sonhos, espécie de castelos de areia a desfazerem-se nas ondas do mar furioso. O medo apodera-se de mim e o desassossego. Uma tristeza instala-se por dentro a minar-me as forças, um sobressalto. Acho que a perdi no dia que fui para o mar. No dia em que embarquei para a minha primeira travessia. Já passaram cinco anos meu Deus. Tão rápido o tempo. Tão voraz a girar.

O táxi deixa-me na porta do hotel. Não dei pela viagem de quase uma hora, saio a correr e subo as escadas como se uma matilha de lobos esfaimados estivessem quase a ferrar as presas em mim. Subo. E enquanto o elevador sobe ao oitavo piso tento acalmar, respiro devagar, pausadamente a desacelerar o coração descompassado. Como é possível nunca ter pensado. Como?
Abro a porta do quarto retiro o pc da mala de transporte e ligo. Enquanto se inicia, sinto um desconforto interior, o estômago a roncar baixinho com fome. Dou-me conta que hoje não almocei, não jantei, não comi nada. Olho as horas dez e doze minutos, pego no telefone e peço à recepção alguma coisa para comer aqui no quarto. O pc abre e inicia automático, uma imagem do por do sol no mar. Um único ícone no ambiente de trabalho. Clico em cima.
Lentamente abre uma pasta:

Carta do Pai Júlio para ti meu Filho

Estremeço, sinto-me num turbilhão de emoções. O mar assoma aos meus olhos, inunda-me a alma, afoga-me o coração.

Meu filho querido. Não estranhes ao ligar o computador esta mensagem assim. É propositada. No fundo eu sabia que virias. Que um dia virias à descoberta de mim, mas o corpo alquebrado pode não ter tempo para esperar o tal todo o tempo do mundo. Deves saber como é, um corpo velho como um casco de bacalhoeiro na última viagem, está meio carcomido pelo sal, encostado ao cais para morrer alquebrado, a ser engolido pelo lodo do rio, ou arder no inferno do fogo lentamente.
Chega de falar de mim. Esta mensagem que te deixo aqui neste pequeno computador ao qual me fui afeiçoando, e que me permitiu viajar pelo mundo nestes três últimos anos, tem cá dentro toda a história e as respostas que vinhas à procura. Estão aqui para o caso de te atrasares. De não apanhares um bom ventinho favorável. Em pequenas pastas arrumadas. Com tempo faz a viagem se quiseres, a descobrires quem está na origem das palavras.

Que digo eu, nem sei a tua ocupação ao certo. A tua mãe a minha queridíssima Beatriz escreveu-me uma carta que recebi faz pouco, atrasada, a falar-me de ti, a dizer-me que eras marinheiro. Não sabes a alegria que me dás saber-te marinheiro também. Vais entender-me porque os marinheiros têm a alma do mundo, o sangue dos oceanos a correr nas veias, o olhar do sol e da lua e dos vendavais. Vais entender-me.
Aqui encontras todas as respostas às tuas perguntas. Principalmente a explicação do amor que sempre senti pela tua mãe.
Único!
Puro!
Branco!
Como eu costumava dizer. Como se o branco fosse a cor a pintar o amor. Não sei. Acho que confundi a cor com a cor dos cascos dos bacalhoeiros daquele tempo. Pode ser isso.
A Beatriz na carta contou-me que tu fizeste como eu, que largaste a mulher que amavas e que partiste. Disse-me que estava a ver o mesmo erro em ti, uma espécie de alucinação do passado a repetir-se, mas que não te quis contar da minha existência. Que Morris era para todos os efeitos o teu pai de verdade, o único que conhecias. Ela fez bem, acho que sim. Mas agora peço-te que não cometas o mesmo erro que eu. Vai até onde te leva o teu coração. Se amas, segue o que ele diz. A tua mãe contou-me na carta que seguiste como eu o mesmo rumo. O mar, só o mar. Não faças isso! Se amas não troques o amor pelo mar, completa o amor com o mar, mas nunca o substituas. Olha o erro tremendo que eu cometi. Não o faças. Promete! Promete! Nenhum mar merece a troca do amor de uma mulher por ele. Nenhum mar, por mais que nos corra no corpo, por mais que esteja entranhado na pele. Nunca! O amor é insubstituível, e a saudade tão conhecida dos portugueses é um veneno que nos mata lentamente, nos suga a memória, nos embacia o olhar, nos tira o brilho, nos rouba as forças. Ficamos cinzentos, sombrios, assustadores, estranhos. É verdade meu filho, ficamos como lobos, lobos-do-mar solitários, sem alcateia, sem covil. À mercê de um tiro misericordioso que nos acabe o sofrimento. Os lobos são uma espécie protegida, assim o sofrimento será longo e penoso. O meu durou cinquenta anos, meio século de saudade e de ausência e de angústia. Fiquei com o coração avariado, destroçado completamente.
Estou cansado. Foge-me a vista, acho que agora posso dormir nos braços do mar finalmente. Se tu conseguisses imaginar o que me custaram estes cinquenta anos de solidão sem o abraço da Beatriz. Se tu conseguisses imaginar o doloroso que foi tudo. Saber que existias só agora tão tarde. Imaginar que nos podemos ter cruzado no oceano sem saber que éramos a mesma carne – Meu filho! Fico com o coração enorme no peito a dizer a palavra. Os olhos rasos de água ainda. Eu que pensei não ter já lágrimas. Mas estas são de comoção, de amor. São lágrimas verdadeiras de pai.

Promete que vais em busca do teu amor. Sei que irás. Eu sei que sim. Bastei eu para errar e para aprender com o erro.
Um homem do mar não erra duas vezes.
Ficas com as respostas.
A historia de amor sem amor nenhum que eu fui.
Um velho lobo-do-mar com o coração naufragado de saudade.
Dá um beijo à mãe, a minha Beatriz

Teu Pai Júlio

São Martinho, Novembro de 2007

(continua)

Fotografia de Barcoantigo em 2008

quinta-feira, dezembro 18, 2008

incomunicáveis...

Incomunicáveis


Incomunicáveis


Incomunicáveis !!!


Uma memoria cheia de ventos e de maresias que cabem num saco feito de velas rasgadas
Este sou eu
Um marinheiro fracassado, espécie de naufrágio em água revolta, fria, negra sem glória sem lembrança
Uma memória branca por dentro. Quem me mandou enfrentar as tempestades, se o coração vacila, o corpo pende curvado, a imitar a quilha alquebrada do navio que trago no coração.
Depois o sal
Sempre o sal
Espécie de cristal maravilha que faz bater o músculo vermelho
Depois a sede
Depois
Depois
Depois....

A morte
Ronda-me a morte.

Partiram as aves todas
O mar é um imenso vazio aos meus olhos
Onde estão as silhuetas dos barcos e as velas?
Partiram-se os mastaréus e as enoras agora são buracos sem fundo
Um barco sem mastros é como um corpo sem braços
Decepado
É isso que se respira aqui
Um decepar de memórias
Uma angustia

Renego-te. Vou pra sul !


João marinheiro, palavras ditas 2007

sábado, dezembro 06, 2008

Do desencontro...V parte


( livro de contos)

Volto á habitação do capitão Júlio percorrendo de volta os mesmos corredores, trago na mão o envelope. Não o quis abrir ali na frente do Dr. Ernesto, prefiro estar recolhido ali no seu aposento, o seu sítio. A minha cabeça fervilha de pensamentos. Em cada passada, em cada metro que venço a encurtar a distância ao quarto do Comandante Júlio, o meu corpo começa a ficar em alerta. Que trago nas mãos? Que papeis são estes. Que carta. que noticias? Afasto por uns momentos da ideia as perguntas. Traço um plano mental. Hoje vou arrumar todas as coisas e levar as importantes para o hotel, amanhã ou depois irei ao Porto, quero de novo ver a casa, depois vou para Londres ter com a mãe. Sim será o plano mais acertado. Organizar as coisas. Preparar tudo. Quem sabe estou a fazer um temporal para nada. Abro a porta. Olho de novo o pequeno quarto, abro a janela e sinto a aragem fresca a entrar, uma espécie de vento a saber a maresia. Fico a pensar. Que espécie de homem era ele para até nas pequenas coisas insignificantes nos surpreender sempre, como sabia que aqui desta janela o vento trás o sabor do mar, o cheiro do sargaço. Nunca vou saber a resposta. Não é importante já. Agora vou ler a carta, aqui na sua secretária. Isso o importante agora. Quero saber o que nos queria dizer. Tremem-me as mãos ao abrir a carta.
Duas folhas manuscritas a tinta azul.

…” Espero que me perdoes. Eu tenho quase a certeza que vais ser tu que vens cá à minha procura, senti isso quando recebi a carta da Beatriz. Com tempo vais saber as respostas todas. A tua mãe, a Beatriz vai contar-te tudo. Não é uma história bonita. Foi uma história de amor sem amor. Impossível, por erro meu. Fracassei no destino que escolhi. Não fui um bom namorado. Não fui um bom marido. Não fui, soube agora, um bom pai, isso não me perdoo. Peço-te é perdão pelos erros cometidos. Por nunca ter sabido da tua existência, pelo tempo que não tivemos. Pelo colo que não te dei, os mimos, os afectos. Tolda-se-me a vista como uma névoa quando penso em tudo o que poderíamos ter sido como pai e filho, e nunca fomos. Nunca te olhei, nunca escutei a tua voz, não sei rigorosamente nada de ti, e ao pensar nisso, metade de mim afunda-se num sorvedouro, um redemoinho de sentimentos. Fui um doido orgulhoso porque cedi ao orgulho em vez de ceder ao amor que tinha pela tua mãe, virei-lhe costas zangado por ela ter ido embora, iludi-me durante anos, iludi a minha memória, enganei o meu coração, tentei apaga-la, sem nunca o conseguir, eu sempre soube que era única. E quando regressei quase não reconhecia o meu Portugal, e depois era tão tarde, o tempo foi um carrasco que me aprisionou. Tive medo. Tive medo de ir à procura da tua mãe e ela não me reconhecer. Não me querer ver. Tive medo de ser rejeitado, e então fiquei por cá por Lisboa. Deixei a casa do Porto abandonada. Custava-me lá ir. Parece que a via sempre, a olhar-me, uns olhos acusadores. Deixei de olhar as pessoas frontalmente com o tempo, confesso. Deixei de me interessar pelas pessoas. Os barcos eram a minha paixão, foi por eles que troquei o amor, foi por eles que fiquei só, o coração amargurado de arrependimento. Mas já não posso voltar atrás ou reescrever a história. Depois vim para aqui para São Martinho e como já não tinha amigos fazia muitos anos ninguém deu pela minha falta.

Espero que me perdoes.

Não sei se vais ler esta carta no meu quarto, gostava que o fizesses, mas se o estás a fazer como eu penso, como eu pressenti que farias, olha então ao teu redor. Não são muitas coisas. Mas todas têm um lugar e uma história. Um tempo. Na secretária tens um pequeno computador, onde está tudo o que escrevi. Quero que o ligues Foi com ele que durante os últimos anos aqui neste lar substitui o mundo lá fora. As pessoas. Foi o meu confidente e companheiro dos dias felizes e dos dias tristes. As travessias longas e penosas. Os ventos ciclónicos e as calmarias. É teu. Aceita-o como uma forma de perdão, de me redimir da ausência. Dentro descobres que quase só escrevi a ausência, o amor ausente, a saudade. Não sou e não fui um escritor, ou um poeta do mar, como algumas pessoas me disseram. Pessoas com quem conversava por lá pela Internet. Fui um marinheiro de porto em porto como os barcos que comandava. Também tens aqui os meus livros e mais alguns pertences, são teus por direito, faz com eles o que muito bem entendas. Existe também uma conta bancária, tens tudo ai no computador, no banco tem instruções para quando os contactares. A Internet é prodigiosa, tratei de tudo por aqui para poder partir em paz.

Sei que já não posso esperar por ti, nem pela Beatriz, o meu tempo chega ao fim. Não julgues mal a tua mãe, fez o que achou melhor na altura. É uma grande mulher, eu compreendi o seu gesto e perdoei-lhe logo de seguida, mas o orgulho cega o coração e tolda-nos o pensar. A tua mãe na carta que recebi diz-me que tu também partiste para o mar que deixaste tudo e todos. No computador tem um texto pequenito escrito quase uma carta, a pedir-te algumas coisas, são uma espécie de lamentos sei lá, uma remissão dos pecados avalizados pela minha experiência, pelos meus erros. Lê com atenção e faz o que o teu coração te aconselhar.

Pronto agora já tens aqui as orientações todas. Perdoa-me mais uma vez não ter sabido cuidar de ti, de te ensinar a cresceres na minha companhia. O destino assim o quis.
Acabei também de escrever uma longa carta de despedida para a Beatriz, mais uma, confesso que lhe escrevi uma data de cartas que nunca enviei porque não sabia para onde enviar. Não sei porque o fiz, quando me dei conta era para ela que escrevia a fazer renascer a memória, a faze-la renascer na memória. Só a memória alimenta e produz e nos permite saber de onde vimos e para onde vamos, só ela. Comecei a escrever e publicar na Internet as palavras, acalentava a infantil ideia que ela a Beatriz ia ler e me encontrar, como se isso fosse algum dia possível. Todos os dias, religiosamente abria o computador no meu sítio a ver se ela lá estava. Nunca esteve.
Depois as palavras começaram a rarear em mim na mesma proporção que as forças se iam embora, e a vista, e o coração maltratado ia baixando o ritmo, baixinho cada vez mais. Hoje em que te escrevo as derradeiras e ultimas palavras quase não o sinto no peito a bater, amanhã ou depois pára, é como um velho motor sem concerto, fatigado.
Deixo-te mil abraços e beijos, para ti e para a mãe, a valerem todo o tempo do mundo.
Dá-lhe um abraço por mim.
Faz isso.

Teu pai

Capitão João Júlio

São Martinho, Novembro de 2007



Tenho as mãos a tremer e o coração apertado. Por uns momentos fecho os olhos e escuto o murmúrio do mar o som do oceano e compreendo as palavras dele e entendo a sua dor. Que espécie de homem era para me surpreender em cada descoberta, como sabia que eu iria aqui ler a sua carta. Não sei se tenho coragem de ligar agora o computador, ou o leve comigo para o hotel e depois de andar um pouco, de arejar as ideias, então sim o ligue e possa entrar no seu mundo de memórias.


Logo tenho de ligar à mãe a dizer que cheguei tarde, que o capitão faleceu. Que não cheguei a tempo de o abraçar. Agora sinto-me como um saqueador de naufrágios à espreita que os despojos dêem à costa. O coração amarfanhado também…
(continua)
Fotografia de Sofia Trincão 1997

sábado, novembro 08, 2008

a última carta...

( livro de contos)


Beatriz.


Perdoa-me.
Não pude esperar por ti.
Hoje é o último dia, vou embora, morre-me o corpo. A alma, essa fica à tua espera. Mas o corpo está demasiado carcomido, demasiado curvado, demasiado usado. Dou-me conta que te esperei toda a vida. Foi a espera de ti que permitiu não ter sucumbido aos naufrágios. Não ter desistido de viver, como tantas vezes pensei. Desiludido com tudo, desiludido comigo. Foste tu, sempre, que ao meu lado permaneceste a dar-me a mão. A amparares-me. A acariciar-me no sono. A dar-me alento todas as noites. A ensinar-me o caminho de regresso. Ao navio que substituiu a casa anos a fio. Perdoa-me não ter sabido amar-te com todas as letras. Não saber olhar-te de olhos verdadeiramente abertos e ver por dentro dos teus. Por ter sido egoísta. Só pensar em mim, na minha vontade, deixar o nosso sentir para trás e partir sempre à aventura, partir para o fascínio, o feitiço do mar. O gosto do desconhecido. Partir como os antigos descobridores. Nada disso era importante dou-me agora no fim conta. Agora que ajusto as minhas contas com Deus. Sim o tal Deus que parece que existe em cada um de nós, cada qual à sua maneira, uma fé sempre diferente. Nestes últimos 3 anos tenho tido tempo para reflectir. Estou recolhido do mundo. Recolhido á espera da morte. É hoje o último dia, já me foi revelado, não te sei explicar. É hoje que me liberto deste corpo velho e irei visitar-te. A alma libertada. A minha tão maltratada pelo arrependimento. Não fazes ideia da dor que eu tenho sentido por te ter magoado estes anos todos. Por me ter magoado também estes anos a fio. Nunca consegui amar uma mulher além de ti. Foste única, és única e omnipresente em mim e tudo isso foi um suplício, um castigo. Amar-te foi um castigo. Ainda o sinto no corpo. Ainda te amo, mas é tarde para voltar atrás. Para parar o tempo. Só me resta morrer e renascer um dia outra vez. Então sim, retomar o caminho ao teu lado. Ou com outra que sejas tu renascida também. Estás a ver como sou doido em escrever-te estas palavras, logo eu que não acreditava em nada para alem da morte, logo eu, mas é a ultima restea que tenho de esperança, de te poder encontrar, te poder rever. Deixas que continue a amar-te? Mesmo para além da morte? É que não sei fazer outra coisa. E nenhuma mulher é suficientemente mulher como tu, ou se assemelhe a ti para que eu lhe possa dedicar o amor que te dedico. Sou um velho doido. Transformei-me num velho doido e inútil, por isso parto esta noite. Só tu sabes que parto. Não tive coragem de dizer a ninguém. A ti digo-te porque te falo com o pensamento. Sempre te falei com o pensamento, mas estás longe, muito longe. Mas agora sei onde estás. A tua carta fez-me renascer a alma, só o corpo eu não consigo que renasça. Só pela purificação da morte física. É essa a porta de entrada, a porta de saída. A salvação onde posso expiar todas as falta, os pecados cometidos. Não fiques triste. Não deves ficar. Depois de receber a tua carta pensei muito. No princípio quando a recebi, fiquei estranho, até pensei que o coração me atraiçoasse. Portou-se bem. Mas depois da tua carta, a ânsia que carregava por dentro de mim, o vazio da tua presença, a angustia de te amar, de amar uma recordação difusa, tudo isso se dicipou, e acalmei. Eu acho que foi o destino que nos pregou uma partida. No fim, cada um de nós, fomos felizes à nossa maneira. Dentro das nossas possibilidades. Eu cumpri o sonho de ser capitão na marinha. De ter o mar por companhia, de ir, como os navegadores mar adentro sempre. Tu não cabias no meu sonho. E quando partiste foste atrás do teu sonho. Eu não cabia dentro do teu sonho. Tivemos de nos afastar para se cumprirem os sonhos de cada um. Juntos não poderíamos voar como as gaivotas. Não poderíamos ter sido felizes. O amor de um ia prender o amor do outro. Um dia, com toda a certeza iríamos jogar à cara, um ao outro, essa prisão. Iríamos desbaratar. Iríamos maltratar. Iríamos aniquilar o amor grandioso no coração um do outro. Iríamos desmoronar, vencidos. E tu não querias que isso acontecesse um dia pois não? Eu sei que não. Penso que ainda me amas um bocadinho, um amor suave, tranquilo, um amor levezinho. Eu sei, sinto que sim. Já não vou dizer mais que te amo porque sempre foi assim. Quando adormecer o sono último e profundo, és tu que me vais dar a mão e me embalar até partir. Sei que irei em paz comigo, contigo e com o mundo. Que mais posso querer agora que sei de ti. Que estás bem. Que temos um filho. Gostava de dar um abraço aos dois, não vou a tempo. Perdoa-me por não poder esperar mais.
Esta carta não lhe posso chamar carta, é mais um desabafo, não gosto de despedidas, é um até logo, um até sempre. Não sei se vais ler estas palavras são as minhas ultimas palavras para ti. Depois é o silêncio profundo sem retorno sem eco, um vazio completamente asséptico. Já tenho tudo tratado para a última viagem, poupo-te os pormenores, não são importantes. Importante foi saber de ti.
Vou com um sorriso nos lábios, que mais posso querer se já tive tudo, quase tudo. A nossa historia de amor. Não posso parar o tempo nem a história, não a posso reescrever, nem voltar para trás. É o tempo das partidas. Cada um de nós foi feliz e cumpriu o destino. O destino é um livro em branco como o amor que eu falava. As folhas vão sendo preenchidas e ganham cor, ganham vida. Mas algumas permanecem fechadas demasiado tempo e amarelecem com a humidade dos dias. Outras transformam-se em histórias que atravessam o tempo, contadas, recontadas, escritas, reescritas. O meu livro não sei dele. Nunca soube, não me dei conta da importância de ter um livro em branco, branco da cor do amor. Não me dei conta do amor quando o tinha ao meu lado. Precisei de uma vida toda para acordar do erro e remediar o destino, só o livro não consigo já abrir. A humidade nas folhas estragou tudo. O coração, o corpo, a vista, as pernas. O tempo em mim no esplendor máximo. A punição da metamorfose das células.
Desculpa o que estou para aqui a falar, doideira é isso. Não te interessam os meus pensamentos últimos, e não eram estes que te queria deixar. Gostava de ter mais tempo para conversar aqui contigo, por isso invento conversas sem nexo a fintar o tempo. Não vou ter tempo de te enviar esta carta que não é carta, fica junto de todas as outras cartas que não são cartas que nunca te enviei, à espera das tuas mãos se um dia as receberes. Quem sabe todas juntas se transformam no tal livro do destino branco como o amor que eu julgava.


Guarda-as, são as minhas memórias.

Deixo-te um beijo e um sorriso nos lábios.

João Júlio

São Martinho Novembro de 2007
Fotografia de Barcoantigo em 2004

terça-feira, novembro 04, 2008

Do desencontro... IV parte

(Livro de contos)

Tudo começava a ser confuso para mim. Um mistério que se adensava a cada passada. Até a enorme mansão, os corredores compridos com o seu silêncio impecavelmente limpos e arrumados me intimidavam. O Dr. Ernesto ao meu lado em passos rápidos, sem uma palavra conduzia-me pelo labirinto. É isso estou num labirinto. Quem foi o capitão Júlio. Que espécie de homem? Porque tenho a sensação que planeou tudo, a morte, a minha chegada, o meu assombro, o meu medo. É isso! O meu medo neste momento. Que estaria na carta escrita. Que estaria guardado no quarto, que mais parece um camarote de navio. Agora enquanto caminho e os meus passos ressoam no chão limpo e se perde o eco nos corredores dou-me conta que o quarto cheirava a mar. Estranho. Como o conseguiu. Como é possível sentir o cheiro da brisa, o cheiro do sargaço ali, um quarto fechado na penumbra. Não sei. São já demasiadas perguntas que faço a mim próprio e para as quais não vou com toda a certeza obter resposta nunca. Chegamos, parece que acordo de uma espécie de êxtase. O Dr. Ernesto abre a porta. – Faça favor de entrar, e sente-se enquanto vou buscar os documentos que Sr. capitão Júlio me confiou.
Sento-me, obediente, sem acção, sem raciocinar, num gesto automático a responder a uma ordem. Que se passa comigo? Olho em volta. É uma sala ampla duas enormes janelas com sacada. Mentalmente faço um exercício de localização onde me encontro. Onde o Norte? Os homens do mar são assim, temos por dentro uma espécie de agulha magnética que nos orienta, como as aves marinhas, pode ser isso, mentalmente na minha cabeça surge a imagem da mansão, é isso! As duas janelas com as sacadas viradas à alameda. é aqui o escritório virado a nascente, é aqui que os antigos fidalgos apreciavam o nascer do sol. Pormenores da arquitectura do tempo. Importantes, nem eu sei. É um escritório esta sala agora, mas com toda a certeza seria a biblioteca, a sala de estudo. As enormes estantes em carvalho velho até ao teto repletas de livros antigos. O enorme quadro do visconde a observar-me desde a parede. Os meus olhos como um radar preciso e rápido a dar-me a informação possível. Uma enorme lareira impecavelmente limpa e arrumada com as ferragens de bronze reluzentes. Demoro o olhar ali, preso na cor amarelada do bronze e fico a pensar nos velhos veleiros. Os barcos que o capitão Júlio tanto defendia. E fico a lembrar o nosso navio Sagres, com os bronzes impecavelmente polidos, motivo de orgulho e de vaidade das tripulações. O meu tempo a bordo como Cadete. O inicio das minhas viagens no mar. Volto à sala. Um grande sofá em couro escuro, dois mais pequenos, também uma mesita com um livro poisado, a pequena mesa toda trabalhada em talha, uma obra de arte, aqui tudo é de estremo bom gosto. Um piano de cauda, Alemão penso. Percebo pouco de instrumentos musicais, mas o nome, C. Bechestein incrustado, não me deixa grandes dúvidas. O Visconde na parede ainda sentado a olhar. A cadeira parece a mesma que está junto ao piano. Com certeza era nela que se sentava para escutar o piano. Tocado por quem? Nunca o vou saber. Respira-se aqui um misto de passado e de modernidade, o computador na enorme secretária é a prova da modernidade instalada. Mas o cheiro é uma mescla a madeiras e ceras difícil de encontrar já.
– Ora aqui está toda a documentação, escutei. Por uns momentos esqueci-me do motivo que ali me tinha levado. Esqueci completamente o Dr. Ernesto. Era eu a vaguear no tempo. Regresso de repente. – Desculpe estava aqui a admirar a sala, retorqui.
– É uma bela sala, tentamos na recuperação manter a traça o mais fiel possível, mesmo o mobiliário aqui ainda é o original, só as acomodações para os residentes foram alteradas. Mais modernas. Com as comodidades que a lei exige e mais algumas que achamos estas casas devem ter para proporcionar aos nossos idosos, a melhor qualidade de vida e a tranquilidade possível nesta ultima etapa que enfrentam.

Como lhe disse há pouco, isto é uma missão, chamemos-lhe assim, é uma missão estar aqui ao lado deles, acarinha-los, escuta-los suprir todas as suas necessidades transpor as limitações que o tempo lhes impõe. Por exemplo o capitão Júlio, estava muito limitado já das pernas, nunca quis deslocar-se em cadeira de rodas, nem com o auxílio das canadianas. Os últimos meses quase não saia do quarto. Passava o tempo a escrever e a ler, muitas vezes a olhar a baia da janela, às vezes nos dias bons levantava-se de madrugada e vinha lentamente até ao refeitório pela manha cedo ainda antes do pessoal da cozinha chegar, e depois ia até ao jardim, caminhava muito lentamente. Dizia-me que tinha tempo. Que toda a vida andou demasiado depressa, que assim conseguia absorver os aromas da terra, as cores do dia, os sons. Que ao caminhar lentamente tinha tempo para dar valor a tudo, às pequenas coisas, ao caminhar da formiga, ao saltitar dos pássaros, às gotas de orvalho na relva, às flores nos canteiros.

Gostava muito de conversar com ele já lhe disse. Mas vamos ao que interessa. Aqui estão as cartas que lhe falei dentro deste envelope, as cartas e as instruções para o caso de alguém vir à sua procura e chegar tarde como é o caso. O Sr. João Pedro desculpe-me a crueza das palavras mas é a realidade, aqui temos de ser prático acima de tudo. (continua)
Fotografia de Mariah

quarta-feira, outubro 29, 2008

hoje...

nos amaríamos

apenas isso

incondicionalmente

sem reservas

assim seria a entrega

verdadeira

sem medos sem pressas

hoje mais do que nunca seria

pq já existimos um para o outro.

o mistério esta lá fora

acreditas?

acho q sim

e não dentro de nós mesmos .

dás-te conta da beleza destas palavras hoje


tudo entre nós é belo... um cheiro de inocência

sexta-feira, outubro 24, 2008

ainda não sei responder-te

Perguntaste-me se era feliz. Não te respondi. Fiquei a olhar-te a sorrir e tu entretanto mudaste de assunto. Eu a pensar. Sim era feliz mesmo cansado, sentado no sofá recostado para trás olhos fechados numa espécie de sono, te sentia, uma pena, a sentares nas minhas pernas a abraçar-me o pescoço, a beijares-me as orelhas, a face, a boca, a tua, doce a aninhar-se em mim. Era feliz quando abria os olhos devagarinho a imaginar-te e os teus olhos ali junto dos meus a brilharem doces a afagarem-me o sentir. Era feliz quando tu num repente despias a blusa, libertavas os seios tão formosos e te encostavas ao meu peito e baixinho ao ouvido, quase um sussurro, pedias – massaja-me as costas.

Aqui estou sem te saber responder ainda. O peito vazio do teu, o olhar fechado, o corpo cansado


João marinheiro, 2008

sábado, outubro 18, 2008

A tua carta II...



( Livro de Contos)

Custa-me escrever. Tenho os dedos cansados, fazia muito tempo que não escrevia assim desta forma, em papel, tenho de parar a descansar as mãos, acho que exerço demasiada força a agarrar a caneta, estou nervosa, é isso, tenho tantas coisas para te dizer que tenho medo de não o conseguir, de me esquecer das importantes. Se me cansar faço uma pausa na escrita e depois recomeço com nova força, as ideias mais claras a falar-te desta forma escrita.
Meu querido de sempre. Também eu tenho de novamente pedir-te desculpa. Pelo meu silêncio estes anos todos. Pela saudade. Pela ausência que tantas vezes falas. Como te disse atrás, faz muito tempo comecei a ler as tuas cartas. Alimento a secreta certeza que és tu que as escreves. Só podes ser tu, porque senão é alguém que soube de nós. As coincidências são tantas meu querido. Resisti sempre à tentação de te responder, de te comentar. Tocam-me sempre tanto as tuas palavras. Quando te leio o tempo é só nosso, tens razão. Quando for a Portugal irei à nossa praia do Cabo do Mundo, e depois visitar-te. Não sei. Preciso de ir para me reencontrar, para te reencontrar, para nos reencontrar-mos os dois primeiro em pensamento, e depois frente a frente. Tenho medo desse momento.Também eu envelheci, não sou mais aquela menina como tu me chamavas, de olhos negros sem fim, e cabelos compridos da cor da noite estrelada, ainda me lembro das tuas palavras. Como podia esquecer as tuas palavras. Eu sei que me escreves. Desculpa insistir, ou alimentar a esperança que me escreves. Às vezes quando leio os poemas que publicas, sei que são para mim as palavras. Porque descreves pormenores nossos de tempos passados. Eu sei, e fico a sorrir com uma enorme ternura no coração por ti. Sempre nos quisemos muito. Acho que, de nos querermos tanto, partimos os dois para crescer, só livre o amor floresce e amadurece no coração das pessoas. Júlio, desesperava quando partias de viagem mar a dentro a correr perigos, tantos meses sem saber de ti, Júlio. Acho que nunca estive preparada para sofrer assim da forma que sofria. Sempre a angústia de poderes morrer no mar. O teu naufrágio na Terra Nova foi o despoletar da minha dor, tive que partir, de me libertar, por isso fui sem me despedir, sabia que não gostavas de despedidas, que as pessoas vinham e iam na vida. Ainda escreves isso, que não gostas de despedidas. Não me despedi de ti, levei-te comigo, dentro de mim, nunca te contei. Perdi o teu contacto escrevi-te algumas vezes mas as cartas foram devolvidas, depois habituei-me também à tua ausência. Sabes, eu acho que esta vida é feita de hábitos, de gestos, de rituais diários, que nos moldam, nos acomodam, e depois o tempo burla-nos, porque nos faz perder a vontade, nos faz ganhar medo de mudar, e vamos ficando, ficando, ficando. As silvas avançam na memória e tomam de assalto o tempo. Adormecemos por dentro. Morremos no coração…Tu não morreste no meu coração, ficaste adormecido, embrulhado na memória, guardado como tesouro. Descuidei-me Júlio e abandonei a memória tua durante anos confesso. Perdoa-me meu querido. Tens um coração tão doce, sinto que me perdoas, e sei tão pouco de ti, e tenho tanto ainda para te contar.
Tive de parar de escrever, e recomecei outra vez esta carta, quis que ela fosse em papel, escrita pela minha mão, uma forma de me sentires quando me leres de saberes que sou eu que te escrevo com o coração em sobressalto, apertadinho, a tremer, emocionada.
Tenho de te pedir também desculpa, penitenciar-me mil vezes. Nunca te contei, quero dizer numa das cartas que veio devolvida falava-te dele do nosso filho. É Júlio temos um filho, perdoa-me outra vez, nem eu sabia quando parti mas levava-te comigo no ventre. Temos um filho que é exactamente como tu. Todo tu. Teimoso, determinado amoroso terno. Morris ficou espantado quando ele, o João Pedro nos disse que ia seguir a carreira na Marinha, eu apanhei um susto no momento, depois pensei, vai atrás do pai. Sim, tem o teu nome, Júlio. João, escrevi-lhe a contar tudo, a contar quem eras, quem és, onde nós moramos no Porto e em Lisboa, e onde estás agora, sim eu sei, a Sílvia contou-me onde tu estás a viver, o Zé antes de ter o enfarte soube de ti, um anuncio no Jornal Noticias acerca de um Simpósio sobre recursos marinhos e navegação na Sociedade de Geografia, viu o teu nome, Capitão João Júlio entre os conferencistas convidados. Não conseguiu ir ter contigo, mas obteve a tua direcção, por isso te escrevo finalmente com a esperança, quase certeza que vais ler a minha tão longa carta.
O João Pedro vive na Austrália em Sidnei, tas a ver, também ele está longe meu Deus, e tenho tantas saudades. Costumo falar com ele por telefone e escrevo-lhe por e-mail. Só vem a Londres uma ou duas vezes por ano, anda pelo Pacífico entre a Nova Zelândia e Austrália. Também ele é Capitão da marinha mercante.
Sempre o mar meu querido, tanto mar entre nós a separar, a afogar o amor. Ainda sentes amor por mim? - Perdoa, que parva sou em fazer esta pergunta. Somos amigos, bons amigos, é melhor, sermos assim, amigos eternos, amigos de sempre, amigos para sempre, amigos até ao fim, como escreveu Vergílio Ferreira. Não sei se alguma vez leste o livro? -Deixa, que tonta sou em estar a falar-te estas coisas se temos tanto mais importante para conversar. Contei ao João Pedro e depois falei com ele por telefone, vem ter comigo a Londres, e com certeza vai a Portugal ter contigo, vais gostar de o conhecer. Tal pai tal filho. Se eu me sentir preparada também vou. Ainda não estou. Ainda não estou preparada para te olhar de olhos nos olhos. Tenho medo que o coração me falhe, ou me rejeites, ou não te encontre. Não te sei explicar Júlio. Mas quero ir e quero visitar a Sílvia também, recuperar o tempo perdido, recuperar as memórias. Dás-te conta que são elas, as memórias, que nos alimentam na saudade, na dor, na ausência, são elas que nos prendem à vida, nos seguram de pé quando não conseguimos levantar a cabeça, quando estamos aniquilados. O poder das memórias Júlio. Nestes últimos três anos tenho andado a treinar a memória a reavivar o passado, e de cada vez me lembro de mais um pormenor, e outro e outro. Fantástico o poder da mente o poder do coração. Tanto que quero saber de ti. Já não me chega o que escreves na net. És tu que escreves não és? Eu sei que sim.

Meu querido Júlio agora já sabes o importante, que temos um filho, nosso, que sabe de ti e de mim, o nosso segredo, e agora sabes de mim, deixo-te também o meu número de telefone, se me quiseres telefonar. Telefonas-me? Espero o teu telefonema. Escreves-me? Espero uma carta tua a dar-me coragem para ir ai a Portugal ter contigo. Damos um abraço Júlio, abraças-me? Deixas-me sentir o teu coração junto do meu outra vez? Perdoa, estou piegas, tenho os olhos inundados. Emoção Júlio. Emoção. Havemos de nos encontrar e cumprimentar como fazem os amigos de verdade.
Fico à espera de uma carta tua, agora sabes onde me encontrar. Agora é o tempo dos reencontros o tempo da serenidade. Diria o tempo dos amantes. O tempo sempre o tempo meu querido.
Espero por ti.

Beatriz

Londres Agosto de 2006

Fotografia, Oleo sobre tela de João renato

quinta-feira, outubro 16, 2008

Do desencontro... III parte




( Livro de contos)

Obrigado. Respondi enquanto apertava a mão estendida. Agradeço, em meu nome e de minha mãe tudo o que fizeram para proporcionar o melhor conforto ao meu pai durante o tempo que aqui esteve. Obrigado mais uma vez.

-Não tem que agradecer. A nossa missão é mesmo esta, somos uma espécie de retaguarda avançada das famílias, parece irónico não é, retaguarda avançada das famílias, mas é verdade. Sabe, no mundo actual tão rápido de tempo, tão voraz, os velhos vão ficando para trás, é como se estivéssemos para apanhar um comboio na estação que começa a andar de repente, só os mais afoitos e ágeis conseguem correr e saltar para bordo, os mais fracos ficam, aqui os mais fracos são os velhos, não quero dizer que o capitão Júlio fosse um fraco, longe disso, estava era velho e principalmente só, e os velhos quando estão sós tendem a desmoronar as defesas da vida que construíram, tendem a ficar parados à espera. O senhor perdoe a minha franqueza, o meu modo de pensar, são já vinte anos dedicados à Terceira idade, encaro a profissão já como uma espécie de missão, entende.
Mas o capitão Júlio era um grande senhor, muito lúcido, muito observador, muito cavalheiro, só as pernas não ajudavam, tinha dificuldade em andar, e o coração ás vezes pregava-lhe umas partidas. Foi pena o senhor não ter vindo mais cedo, ele estava, não sei, se à sua espera, mas estava à espera de alguém. Ás vezes conversávamos. Ajudou-me bastante com os seus conselhos, em algumas decisões difíceis que tive de tomar nestes últimos anos em que aqui esteve a partilhar o lar na nossa companhia. Nunca lhe agradeci a ajuda que dava de espontânea vontade a conversar comigo.

Por vezes acontecia que nos sentávamos os dois ali na alameda ao inicio da tarde e ele puxava a conversa, sabia sempre quando alguma coisa me preocupava, era muito bom observador, olhe, era tanto que eu sabia sempre como iria estar o tempo no dia seguinte, era só perguntar-lhe que logo me dizia -amanhã, pois amanhã! Ora deixa cá ver o céu. Amanhã pois, amanhã vai estar sol, e um ventinho de norte miudinho, uma nortada fresca. Ou então dizia-me; - chuva! Amanhã vai estar um dia cinzento com chuva, mas temperado o dia, ou fria a noite. Bastava-lhe olhar o céu. Eu nunca consegui entender a percepção que tinha para ver o tempo. Quando o questionava ria-se, dizia que aprendeu a saber do tempo a atravessar os oceanos.

Mas desculpe-me outra vez. É que eu gosto bastante de conversar. Mas vamos ao que interessa, estou aqui para cumprir as ultima vontades de seu pai. Como lhe foi dito pela Hermínia, a senhora que o atendeu, ela avisou-me que o senhor aqui estava. O seu pai deixou algumas instruções escritas, e eu como fiel depositário dessas instruções procuro que se cumpram da forma que ele as delineou. A parte em que o lar estava directamente envolvida foi integralmente cumprida, agora a outra parte que não sei o que seja está aqui nesta carta que o seu pai me entregou, penso eu com as suas vontades. Como sabe todos os seus pertences iriam ficar aqui durante os próximos 5 anos até alguém aparecer para os reclamar, se isso não acontecesse, findo esse prazo, reverteriam a favor do Lar e logo lhes daríamos o fim mais conveniente. O seu pai deixou uma conta bancária também, a ser administrada pelo Lar durante esse tempo, findo o qual a conta reverteria para o Lar anualmente até se esgotar, mas tem toda a documentação detalhada no meu escritório se tiver a amabilidade de me acompanhar.
- Com certeza que o acompanho, é minha intenção recolher os pertences do meu pai e levá-los para Londres para junto de minha mãe, irei pensar nisso depois de ler então o conteúdo da carta que deixou.

Sentia-me sofucar. Precisava urgentemente de sair dali, de me descalçar e sentir a areia da praia para me acalmar, perder o olhar na lonjura do horizonte salgado do mar que amo. Precisava do cheiro da maresia, do fresco da manhã para me avivar a lassidão que me entrava pelo corpo como uma maré viva de força desconhecida. Precisava de reagir, sair dali. Lembrei-me de ti da falta tua neste momento. O nosso amor tão vazio já tão distante no tempo.
-Vamos! Disse baixinho enquanto me dirigi para a porta. (continua)
Fotografia, Rio Minho em 1913

domingo, outubro 12, 2008

Do desencontro...II parte



(Livro de contos)


Sou só um homem de mar só isso. Um homem do mar habituado a guardar as emoções, a ser frio de sentimentos, a ser máquina nas emoções, a não falhar, a saber comandar. Mas agora sinto as pernas a cederem, uma tristeza a invadir-me o corpo, uma angústia, um vazio inexplicável. Sinto-me a falhar. Estou aqui á porta do quarto que foi dele e sinto que falhei em alguma coisa. É este o quarto do meu pai, semelhante a um camarote de navio, decorado assim, simples, arrumado, deu para ver que sim numa mirada rápida, uma janela, uma cama estreita, uma secretária com um candeeiro e uma cadeira, um pequeno computador portátil fechado, um caderno de capa prata, um estojo de lápis e canetas, uma caixa castanha em couro aberta com um sextante reluzente no lado direito, um livro fechado com um marcador das paginas em couro preto e livros arrumados numa estante, um guarda fatos com espelho e dois gavetões, um tapete com uma rosa dos ventos a cobrir o chão todo e a indicar o norte. Demoro-me a olhar o tapete, parece-me Arraiolos, quase de certeza, mas o motivo náutico não é característico das tapeçarias de Arraiolos, e o Norte desta forma? Certo. O norte a coincidir, confirmo pela agulha que tenho no relógio de pulso. Fantástico. Teve de ser feito propositadamente para aqui só pode ter sido. Homem estranho este a quem não posso chamar de pai, já não sei. De repente ganhei dois pais ausentes, dois pais mortos, um cheio de memórias outro cheio de nadas, e são esses pequenos nadas que me afligem, que me querem dizer tanto, que me podem explicar quem sou, porque lhe sigo as mesmas pisadas de vida sem o saber, porque sou exactamente igual diz a mãe. Como pode isso ser possível.
Agora entendo porque ela me dizia que era igual ao pai. Morris nem nadar sabia. Morris não gostava de mar. Se éramos contrários no gosto pela aventura. Agora percebo as palavras da mãe.
Passo os olhos na estante dos livros. Olho os títulos. Alguns de relance, fujo à tentação de os tocar de os folhear. Sempre me fascinaram os livros, e manusear estes será profanar a vida dele, os seus segredos os seus gostos, quem sabe reler as frases sublinhadas, as páginas marcadas. Sensações estranhas me percorrem o corpo. Olho de novo, Guerra e paz, O dom silencioso, O homem e o mar, Cem anos de solidão, Os jardins da memoria, Arte de marinharia, Navegação astronómica, Ser capitão na marinha mercante, Tábuas náuticas, Manual de sobrevivência no mar. Tantos livros, técnicos e literatura universal, separados uns a um lado outros a outro lado arrumados por tamanhos e temas. Neste pequeno quarto tudo está no lugar certo. Na parede várias cartas náuticas, um mapa-mundo com rotas traçadas, coordenadas, pontos de referencias anotações escritas a tinta permanente numa letra vincada perfeita. Nisso não somos parecidos, a minha letra é uma desgraça de gatafunhos, penso comigo próprio.
Estou aqui à meia hora, só, no seu quarto, sinto-me estranho e ao mesmo tempo num ambiente familiar. Volto a aproximar-me da secretária, abro o livro, reparo que tem umas capas colocadas, talvez para o proteger, todos os livros estão impecáveis de conservação, como novos, como se não tivessem sido manuseados. Abro e folheio. Nunca li este livro; “Todo o tempo do Mundo”, seria este que estava a ler? Estranho o título. Fiquei apreensivo. Curioso, sem respostas, sem perguntas para fazer. Olho de novo em volta a ver os detalhes, a tentar descobri este homem nos pequenos pormenores. Aqui permanece o silêncio, só interrompido pelo vento nos ciprestes da alameda ou o barulho do mar que escuto por vezes misturado com o som da rua vindo da janela entreaberta. Sinto um calafrio, é estranho este lugar, uma penumbra, uma meia-luz a espalhar-se nas paredes, reparo agora, de um azul água discreto, suave, espécie de mar calmo. Estou parado ainda quase na porta sem coragem para entrar no seu mundo, sinto-me um salteador de tesouros, salteador de memórias, sei lá, todo eu estou confuso, todo eu tremo todo eu não me reconheço. Quem foi este homem que se agiganta em sentimentos dentro de mim. Não sei. Já não sei se devo querer saber e profanar a memória, os segredos, ou virar costas. Mas estou curioso, porque me informou a auxiliar do Lar que ele estava á espera de alguém? E porque planeou a guarda das suas coisas por tanto tempo, 5 anos de espera? Sabia de mim? Da minha existência? E a tal carta que ela me falou? Que noticias lá estão?


Batem à porta, dou um salto interior, acordo por momentos, não sei se breves não estava aqui, vagueava a tentar descobrir, a tentar ver no rosto da mãe sinais deste homem, deste pai que nunca o foi, deste pai que não sei se renegue se abrace, se ame, se odeie. Estou parado a olhar a pequena foto junto da cama na pequena mesa-de-cabeceira, é a mãe a descer umas escadas a sorrir, é a mãe ali estática a olhar-me, a mãe sempre esteve ali ao seu lado. Tocam de novo á porta duas pancadas suaves. Acordo outra vez desta espécie de sonho, desta espécie de pesadelo, não consigo reagir com a lucidez, os reflexos anestesiados

- Bom dia. Informaram-me que o senhor estava aqui. Sou Ernesto Vieira o director do Lar, sei que é filho do senhor Capitão Júlio, antes de tudo os meus sentidos pêsames pela sua morte. ( continua)

Foto, Estaleiros Mónica Gafanha da Nazaré

terça-feira, outubro 07, 2008

no dia de anos...


( livro de contos)


Beatriz. Beatriz.


Logo hoje recebo a tua carta. Logo hoje. O dia dos meus anos. Nem imaginas como estou por dentro. O meu coração fraco ainda a bater devagarinho, cada vez mais devagarinho, quase a despedir-se. Lembras de te falar dos cachalotes nos Açores, que via quando atravessava o mar, lembras? E te dizia que por vezes fracos, iam morrer à praia. É quase assim que estou Beatriz, a morrer na praia do cabo do mundo. A nossa. Já não sei. Sou um velho tolo.
Agora a tua carta nas minhas mãos a falar-me de ti. As minhas mãos cansadas e tremulas Beatriz. As mãos que tu gostavas. As mãos que te afagavam, as mãos que te seguravam minha, as tuas nas minhas entrelaçadas.

Beatriz. Beatriz.

Saboreio cada palavra tua devagarinho para lhe sentir o sentido, a profundidade da fala. Em cada frase fecho os olhos a imaginar-te, a tentar sentir-te, a tentar escutar o som da tua voz. O brilho dos teus olhos. Perdoa-me. Já não sou capaz. Já não consigo. Já não te sei desenhar de memória. És um esboço em mim cada vez mais esbatido, e agora a tua carta Beatriz. Meu amor. Não sei se te ame ainda ou te odeie. Não, não posso manchar de negro o meu coração, tu és amor ainda, sempre em mim. Foste sempre amor em mim. Perdoei-te quando foste embora, compreendi porque foste. Não foste feita para amar um homem do mar a cheirar a maresia, a saber a sal, de olhar perdido no horizonte, eu era assim não era? Perdoa-me. Não soube amar-te com o lado certo do meu coração. Agora já não me serve o coração. Está fraco. Inútil. Velho como eu, arrumado aqui neste corpo que se alquebra como os velhos navios do bacalhau se alquebraram todos abandonados. Perdoa falar ainda de barcos e de mar. Sei que não devo, mas corre-me por dentro no sangue. Nem sei se ainda tenho sangue por dentro, ou uma mistura de saudade e água salgada a queimar-me o coração. Deve ser isso. Só pode ser isso que faz anos me substituiu o sangue lentamente, e o corpo aguado vai corroído naufragando lentamente. Foi isso que me aconteceu. É isso que me acontece. Já não tenho conserto possível. É a quilha, sabes. A quilha e o cavername.
E agora Beatriz a tua carta nas minhas mãos. A tua carta a dar-me noticias tuas a falar-me de ti da tua vida. Eu sabia. Eu sabia que um dia ias voltar, por isso deixei a casa no Porto, não me desfiz dela. Perdoa porque a abandonei, perdoa-me porque também te abandonei na memória, não consegui evitar, e a dado momento da vida quando ia ao Porto à nossa casa não conseguia ver-te nítida na lembrança, não conseguia escutar a tua voz em lugar nenhum, não conseguia sentir o teu cheiro nas roupas da cama. Desapareceste da casa Beatriz. Deixei-te fugir de lá, depois era uma violência em mim tentar reaver-te de memória, deve ter sido por isso que deixei de sonhar a dormir faz tantos anos. Existes em mim por dentro como uma capa que reveste o coração por dentro, sem acesso exterior mas que existe por dentro. Estás em mim incrustada.
Desculpa. Não devia escrever estas palavras, porque são palavras vãs já a esta distância do tempo e o meu coração já não vale nada. Foi por isso Beatriz que abandonei a casa no Porto. Acho que faz mais de 25 anos que não vou lá. A Câmara quer ficar com ela porque está entalada por prédios altos, e dizem que se não faço obras reverte a favor do Município. Já não me interessa. Que dizer não interessava Beatriz, até saber do nosso filho. Porque nunca disseste-te. A dor que tenho dentro, um naufrágio imenso, um temporal imenso. Sofro uma dor que queima, ao pensar que toda esta minha vida foi uma vida sem sentido. Dou-me conta que fui pelo mar errado. Uma inundação da alma Beatriz saber que temos um filho e eu ter sido sempre um pai ausente, desconhecido, indigno da palavra. Mas eu sabia que um dia tu virias ao meu encontro, eu sabia. Esperava-te para me despedir.
Agora a casa no porto é para o teu filho. O nosso filho que não conheço, não sei o nome. Se ele a aceitar. A casa de Lisboa vendi-a quando vim morar para a vila. Não me fazia falta, também vendi o veleiro que tinha, ficou nos Açores anos atrás. Lembras São Martinho, é aqui que estou, na pequena enseada, é uma boa praia para morrer, um sítio sossegado onde ainda sinto o aroma do mar, a ternura da nortada, os gritos das gaivotas. Tenho uma janela de onde observo o mundo. Um mundo pequenito agora, já me chega.

A tua carta Beatriz queima-me os dedos de saudade. Sinto-me impotente aqui, preso fechado, queria tanto ver-te uma última vez. Eu sei que não é possível. Eu sei
Fico com essa mágoa dentro a denegrir-me a memoria. Maldito orgulho o meu em nunca te ter procurado. Havia de te encontrar. Mas para quê. Tinhas uma vida nova, longe do mar. Casada, feliz, realizada profissionalmente. Gostei de saber minha querida. Nem tudo se perdeu nesta nossa vida desencontrada. Nem tudo foi mau. Encontraste o amor e a felicidade. Ainda bem. Eu nunca te pude dar isso que ansiavas. E tu, tão nova, tinhas a ânsia de voar, crescer por dentro, de conhecer o mundo. O amor tem de ser livre para crescermos não é verdade. Tantas vezes falamos isso um ao outro. Escolheste o teu caminho o teu mundo. Não o meu mundo de água salgada, de longas noites de medos. Não. Este é um mundo fraco onde habitei nos últimos 50 anos. Corri oceanos e não sou de lugar nenhum. Atravessei continentes. Pisei terras distantes, conheci cidades imponentes. Dormi em camas de todos os portos. Esvaziei a paixão no corpo de mulheres viajantes do tempo. Não pertenço a lugar nenhum. Não tenho amigos. Não tenho raízes. Amava os barcos, é isso, foram os meus amores a vida toda. Um amor inútil. Sofrido. Cheio de vazios e de trabalheiras. De angustias tantas vezes. Agora aqui a pensar em tudo, acho que não valeu a pena. Que me enganei. Que estava errado na profissão, que o amor era um amor falso. Aos poucos estou a renegar os barcos, no entanto só a bordo fui feliz, só os barcos me deram a tranquilidade e o equilíbrio para vencer a saudade tua. É verdade. Tornei-me num viciado na saudade tua, e agora não sei como me curar, ou sei e espero. É isso espero a cura de ti. Esta carta é isso, sinto que sim, sinto como os cachalotes a minha hora, e já estou na praia Beatriz. Perdoa-me porque desisto, mas já não tenho força suficiente para teimar. O corpo não ajuda estou velho. E estou a renegar os barcos que amo e o mar que foi a minha vida.
Beatriz. Beatriz meu amor agigantado. Meu amor Adamastor. Meu amor cabo dos medos.
Fico à espera aqui. Tenho todo o tempo do mundo ainda para que voltes um dia.


Estarei cá.
Eu ou as memórias minhas.

Amo-te ainda. Não. não te amo ainda. Amei-te sempre toda a vida é isso, e sou um velho louco e tolo em estar a escrever-te isto aqui. Nunca vais ler esta carta. Escrevi-te algumas, que nunca enviei. Não sabia para onde. Escrevia-te quando atravessava os oceanos, em dias que a lua espelhava na água profunda, em dias de tempestade. Todos os dias eram pretexto para te escrever. Quase sempre arrancava a folha do caderno e a lançava ao mar. Era o orgulho em não dar parte de fraco, afinal foste tu que foste embora sem te despedires de mim. Deixei de saber de ti quando deixei o Bacalhau e me separei do Zé o meu antigo imediato. Rumei à América e ao Pacífico perdi-me pelo oriente durante anos. Quando voltava a Portugal sentia-me um estranho por cá só demasiado só. Portugal mudava lentamente. Por sorte não apanhei a guerra em Africa, valeu-me andar na campanha ao bacalhau. Deixa. Não leias esta parte. Que tolo estar aqui a lamuriar-me.
Tenho a tua carta aqui na frente dos meus olhos, para ler outra vez devagarinho. Saboreio cada palavra tua devagarinho para lhe sentir o sentido, a profundidade da fala.
Fico à espera.

Estarei cá.
Eu ou as memórias minhas

Teu ainda sempre (continua)

João Júlio
Cap. M. Mercante

domingo, outubro 05, 2008

Do desencontro…




( livro de contos )


Resolvi ir em tua busca, o pai tardio que com surpresa descubro agora. Olhar-te de olhos nos olhos para tentar perceber tudo o que se passou. A carta da Mãe foi uma surpresa, um estardalhaço em mim, a revelação do seu segredo tão bem guardado.
Como se guarda um amor desta forma durante tantos anos sem que se perceba?
Morris sempre foi o meu pai, não conheci outro, nunca duvidei do seu amor, foi ele que me criou, mas agora depois da conversa com a mãe quero saber a verdade, quero ir ao fim da história. Quero saber quem foste. Que espécie de marinheiro foste tu na vida dela. E quero perceber porque o mar também me chamou a mim, esta ligação aflitiva que temos. Agora algumas coisas começam a fazer sentido. Esta procura do mar, a ânsia de navegar, sentir o vento e o sal no rosto e no corpo, o barulho abafado dos motores, o contacto com o aço frio e húmido dos cascos, de atravessar os oceanos sem parar. Não pensar em nada, só em levar o navio a bom porto e depois de atracar fechar os olhos e descansar enquanto se descarrega e carrega de novo e partir, reduzir o contacto com terra firme ao mínimo indispensável. E o nome. A mãe perpetuou a tua memoria dando-me o mesmo nome sem nunca fazer uma referencia a isso, só agora na carta que me escreveu, e que me fez deixar o emprego que tinha longe de tudo.
Sidnei é do outro lado do mundo. Imaginas onde fica a Austrália. Pedi uma licença sem vencimento por seis meses e vim para a Europa directo a Londres conversar com a mãe. Não sei pode ser impressão minha pode ser, mas acho-a diferente, mais aberta um, olhar mais vago, uma ruga nova na fronte uma voz mais saudosa. Não sei o que se passou com ela nestes últimos tempos, faz mais de um ano que não vinha à Europa, nem sei bem porquê, mas acho que eu também ando a fugir de mim próprio a desviar-me do coração a esquecer-me propositadamente.
Agora estou aqui na vila à beira mar onde a mãe me disse que o capitão Júlio vive, uma residência de idosos, o antigo palacete da vila estilo colonial. O facto é que já o conheço por fora, de todos os cantos. O facto é que já aqui ando a tentar ganhar coragem para transpor o portão vai fazer três semanas, o facto é que já fui a Lisboa e ao Porto às ruas onde eles moraram. O facto é que a casa do capitão está abandonada, a cair, envolta por silvas que ocuparam o pequeno jardim. O facto é que a mãe a descreveu com pormenor, bastou-me olhar para saber que era aquela a casa. Baixa, duas janelas, pintada de branco e azul, o azul ainda se notava e o branco era um amarelo esbatido e sujo agora. A mãe disse-me que abandonou a casa tinha vinte e um anos, cinquenta anos portanto. Meio século meu Deus, meio século de vida apagada, meio século de emoções amordaçadas. Que espécie de amor foi o deles, que espécie de homem é o capitão? Estou cheio de perguntas, cheio de interrogações.
Preciso de o olhar, de o ver para tentar perceber, tentar obter respostas a milhares de perguntas que me enchem a cabeça estes últimos dias. Caminho em direcção à entrada principal. Toco à campainha. É o tempo de resolver finalmente todas as perguntas. Todas as interrogações.

- Bom dia! Por favor, queria visitar o Sr. capitão Júlio, penso que ele vive cá, foi essa a indicação que me deram.

- O Ti Júlio? Ele não gosta que lhe chamassem capitão. Dizia que esse tempo do mar já tinha passado. Que já não era marinheiro.
- Que já não era?
– Sim. O Ti Júlio, era assim que o tratávamos aqui, faleceu fez agora três semanas. Uma manhã não desceu para o pequeno-almoço logo pelas sete da manhã. Ele era um madrugador, e muito bom conversador. Logo pela manhã nos riamos com as suas graças, sabe. Estranhamos, pensamos que estivesse doente. Fui eu que fui ao quarto dele para o acordar. Dormia. Parecia que dormia, olhos fechados, rosto sereno, um sorriso nos lábios. Não pensei que estivesse morto, mas estava, agarrei-lhe a mão para o acordar, estava gelada, fria. Apanhei um susto enorme, gostava tanto dele, era uma pessoa tão terna, tão serena. Aqui não nos devemos afeiçoar às pessoas, mas que lhe posso dizer, tem algumas que nos entram pela alma adentro.

Não sei o que me deu, o que senti neste momento enquanto olhava a senhora ali na minha frente a falar da morte como se estivesse a falar das compras no supermercado, algo se desmoronou por dentro ao receber assim a noticia fria, impessoal, de uma forma banal, como se a estivesse a ler num jornal qualquer, a folha da necrologia. Olhei a senhora de novo, imperturbável, conversadora, parecia que queria contar uma história.

- Sabe, deixou duas cartas. Uma com as ultimas vontades dirigida ao director aqui do Lar ao doutor Ernesto, outra para entregar a quem o viesse visitar. Acho que ele esperava uma visita.
Também deixou umas coisas, umas caixas com livros e mais o que escrevia. Está tudo guardado. Nós aqui no lar, cumprimos todas as suas ultimas vontades. O corpo do Ti Júlio foi cremado no cemitério do Alto de São João em Lisboa e depois as cinzas foram espalhadas no mar ao largo da foz do Tejo. Foi muito emotivo, muito triste, mas ao mesmo tempo, sabe, ele não tinha ninguém e fomos nós aqui do lar, não devíamos mas que quer, afeiçoamo-nos a ele, às suas histórias que nos contava, sentimos já tanto a sua falta. Só nós! - Sabe! Ninguém soube que ele morreu. Em três anos que aqui esteve nunca recebeu uma visita, um telefonema, só pouco tempo antes de morrer recebeu umas cartas que vieram da sua antiga morada.
- Sabe, eu também fui ao enterro do Ti Júlio, ao mar a levar as cinzas, levei também uma flor para lhe oferecer, um ultimo gesto de carinho, uma orquídea, eram as flores preferias dele, as que mais gostava, sabia muito de flores, às vezes estávamos a tarde toda a falar de flores, gostava de flores selvagens, dizia que eram como ele, com alma e indomáveis. Aprendi tanto com o Ti Júlio.
Depois, quando espalhamos as cinzas. Foi o senhor da funerária que fez isso, apareceram golfinhos e umas aves grandes a voar á roda do barco a gritarem, parecia que se estavam a despedir dele. Senti um arrepio no coração. Ficamos todos assim, apreensivos. Parecia uma coisa sobrenatural, mas acho que foi cisma minha, da emoção sabe, da tristeza. Ele era acima de tudo um senhor, um bom homem, daqueles que já não se encontram.

-E o senhor quem é? Algum familiar?

-Sim! - Também sou marinheiro. Chamo-me João Pedro. O capitão Júlio era meu Pai. Que nunca conheci, soube da sua existência faz seis meses, estava no Pacifico. A minha mãe resolveu escrever-me a contar a verdade. Quando acabei a viagem meti-me no avião, tirei ferias, fui a Londres conversar com ela, foi quando soube onde ele estava. Não tinha a certeza, também não consegui vir logo aqui, acho que me faltou a coragem, faz um mes que estou cá na vila na Estalagem do Cabo. Andei a colocar as ideias em ordem. Para mim o meu pai era o marido da minha mãe. Um professor inglês que faleceu fez três anos, foi difícil tudo isto, lidar com esta realidade e agora. E agora sinto um aperto tão grande, um arrependimento tão grande, porque não vim logo até aqui. Acho que cheguei tarde. Demasiado tarde para poder abraçar o meu pai.

À tempos estive aqui na praia à noite, na vinda estive a olhar o palacete do lado de fora, reparei num senhor à janela na ala Oeste, a virada para o mar, para a praia, não sei, senti qualquer coisa estranha, aquele homem ali, parecia que o conhecia, não sei, fui embora e não pensei mais nisso. Era a voz do sangue a chamar-me. Devia ser.



- Pode ser sim. O seu pai, o Ti Júlio habitava a ala oeste, sim o quarto dele era o único que tinha janela para a praia, foi a única exigência que fez para se instalar cá. Ainda esteve ano e meio à espera que as obras ficassem prontas. O quarto está fechado com tudo o que é dele lá. Foi uma das exigências também, ficar assim até alguém vir em sua procura, depois podia ser habitado por outra pessoa. Não sei, ele tem cinco anos adiantados pagos, portanto a habitação é dele. Não sei o que pensava, nos últimos tempos estava estranho depois de receber uma carta. Sabe, acho que desistiu de viver. Tinha problemas de artrite e o coração também não andava lá muito bem, acho que foi a falta de uma mulher ao seu lado. Demasiada solidão. Não sei que mais lhe dizer. (continua)



sexta-feira, setembro 26, 2008

morremos...


não me despedi de ti, levei-te comigo, dentro de mim, nunca te contei. Perdi o teu contacto. Escrevi-te algumas vezes mas as cartas foram devolvidas. Depois habituei-me também à tua ausência.
Sabes, eu acho que esta vida é feita de hábitos, de gestos, de rituais diários, que nos moldam, nos acomodam, e depois o tempo burla-nos, porque nos faz perder a vontade, nos faz ganhar medo de mudar, e vamos ficando, ficando, ficando.
As trevas avançam na memória e tomam de assalto o tempo. Adormecemos por dentro.



Morremos no coração…



João marinheiro , Palavras escritas, 2008
Fotografia de Barcoantigo em 2008

segunda-feira, setembro 22, 2008

terça-feira, setembro 16, 2008

domingo, setembro 14, 2008

segunda-feira, setembro 08, 2008

sábado, agosto 30, 2008

dormir na praia


(Livro de contos)


Do lado direito do peito tenho o mar. O lado esquerdo é teu.
As mãos estão paradas ao longo do corpo, vazias. O ruído de fundo que se ouve vem da praia, vem das rochas, a água salgada a bater e ser espuma que se desfaz em mil bolas minúsculas. A espuma é branca da cor do amor, como se o amor tivesse cor. Não tem. Dói. O amor dói. Arde na pele da mesma forma que o sol em brasa a queimar a pele quando durmo na praia. É uma febre vermelha. O amor com outra cor? Será?

Sol.
Vento.
Praia.

O vento está de sul, rondou esta noite. A madrugada foi de chuva, o vento sul trás a chuva. Pelas sete horas o nevoeiro estava à porta á janela, na varanda, na rua, a praia encoberta, as gaivotas pousadas viradas a sul. Na varanda a chuva cai do telhado em pingos grossos como lágrimas de dor. Aqui não há dor nem amor. O amor é mais logo quando o dia clarear, agora é neblina meio cinzenta meio branca, escurecida. Não quero o amor assim, sombrio, gosto de um amor com sol, solidário, presente, omnipresente.
Só tu não estás para a palavra ser verdadeira.
Aqui tudo é falso. Quero dizer.
Aqui tudo é imaginado, não real. Virtual. Essa a palavra. Virtual!

O amor é assim? Será assim virtual. Branco? Deve ser.

Há dias andava na praia como ando sempre a olhar o mar com olhos de não ver. Posso andar na praia assim de olhos fechados que sei onde está o mar.
Contigo é diferente, arregalo os olhos até doerem, luto com o sono, o peso das pálpebras como persianas velhas a caírem, venço e fico de olhos demasiado abertos. Só tu não estás. Por mais esforço que faça. Não te vejo. Não te sinto, nem na mão esquerda nem na mão direita, atrás ou á frente de mim.
Às vezes dormes ao meu lado, mas acho que fazes de propósito. Só pode. É quando vencido fecho os olhos e adormeço na praia até acordar assustado com o mar a lamber-me os pés com uma língua fria, húmida, a inundar-me num estado liquido, diria pastoso de areia fina e água salgada, às vezes também chegam farrapos de sargaços vencidos pelo mar de fundo vigoroso.

O mar tem fundo, não tem?
E o coração? Tem fundo? Fica fundo?

Gostava que me dissesses como é o coração. Podes dizer-me mesmo ao ouvido. Murmurar-me, sussurrar-me, soprar-me ao ouvido mentalmente como é o coração.
Fazes isso? Fico à espera.

Hoje vou adormecer outra vez na praia à espera que faças isso. À espera que venhas. À espera que chegues.

Dás-te conta?

A minha vida mais parece uma Gare Marítima onde me encontro sempre à espera. À TUA ESPERA! Espero-te ainda.

Vale a pena?

Sopras-me também ao ouvido se vale a pena esperar por ti a dizeres-me que não?
Fazes isso?

Matas-me não é!

Sempre desconfiei que tinha um coração fraco, um coração inundado pelo mar, um coração inútil.

Fazemos assim!

Morro de amor por ti. Afinal tenho um coração inútil.
Afinal estou parado sempre à espera. Qualquer lugar me serve. A tal Gare Marítima da minha infância. (Lembro-me da de Leça, também serve, mas nessa altura não existias). Um cruzamento de ruas. Uma paragem de autocarros laranja abrigada, dentro um banco corrido com duas pessoas sentadas. Eu espero do outro lado. A outra rua do cruzamento. A paragem é um tubo frio ao alto com uma placa de chapa numerada.
Chove. Hoje acordei com chuva e neblina, alguns trovões distantes faziam escutar-se no silêncio abafado da manhã. Voltaram agora do lado do mar, ouvem-se perfeitamente enquanto penso as palavras. Aguardo que se aproximem os relâmpagos. São traços de luz poderosa na noite.
A placa com números. Cada número é um autocarro laranja, podes vir em qualquer um deles. Por isso espero. Nunca vieste! Não andas de autocarro.
Desculpa-me!

Eu não sabia!

A Boavista tem uma rotunda enorme, larga. Atravessei-a a correr de forma obliqua. A fugir do sol.
Os ponteiros do relógio no pulso castigam-me. Condenam-me a esta existência de esperas. Vou atrás de ti. Vou de uma forma estranha. Vejo-me a ir nos vidros das montras reflectido, uma sombra? A rua por onde caminho a descer. Os pés não tocam o chão. Voo! Caminho como se andasse sobre a espuma no mar. Deslizo de uma forma obliqua ainda a fugir do sol, paralelo ao tempo. O tempo está nos ponteiros do relógio que me castiga.

Diz-me, mereço castigo?

Já não vou escrever mais a palavra AMO-TE. Fica proibida no meu dicionário, no meu léxico gramatical. Afinal tenho um coração fraco, que não te merece. Gostas dos corações fortes e eu não sou. Sou humano, cheio de defeitos. Fazemos assim: GOSTO DE TI. Ficas a saber. Concordas que substitua a palavra proibida agora por esta? Quando eu adormecer cansado na praia dá-me também essa resposta.

A rua agora sobe, reconheço-a por reconhecer ao fundo a janela da sala onde me despedi da mãe ligada às máquinas. O corpo a despedir-se, quase morto. Se tu soubesses…Viro para trás, mudo de rua. Detesto esta rua íngreme. Se aqui estivesse o mar no lado direito de mim podia caminhar de olhos fechados e passar a rua, olhar a janela da sala sem ver.
Chego à estação dos comboios com a sensação de estar atrasado. Compreendes porque me atrasei? Porque tive de mudar de rua. Conheço tão mal a tua cidade. Olho os comboios e espero que chegues. Espero. Vais chegar não vais? Espero que chegues no comboio rápido Lisboa – Porto. A tua cidade é o Porto. Verdade? Também não sei. Mas a minha não. Não tenho uma cidade minha. Tenho momentos meus em muitas cidades. É triste não é? Não te importes, eu não me importo já, estou habituado foi isso com toda a certeza que me tornou assim meio ausente, sempre à espera sem o saber. Por falar nisso. Na espera. Também não vieste em nenhum comboio rápido Lisboa Porto, esperei pelos outros todos também, gritei o teu nome, escrevi um grafitti na parede com o teu nome.

Não viste!

Depois. Não te disse que existe sempre um depois? E também não te disse que depois o depois é sempre diferente do imaginado. Eu imaginava que vinhas, que ias escutar o teu nome no altifalante, que ias ler o teu nome na parede, o grafitti assinado por mim, e depois me vias e sorrias e eras o sol, o meu sol. Foi tudo completamente diferente. Depois chegou a policia, tas a ver o depois. Levou-me, ali o criminoso era eu. O coração fraco a bater. A dado momento já não sei se chove por fora ou por dentro de mim. Depois. O depois diferente, tive de explicar tudo na esquadra e depois repetir ao juiz que compreendeu o meu coração fraco e humano a errar.
Que te esperava, que só gritei o teu nome no altifalante aflito, que só pintei o teu nome na parede como ultimo gesto desesperado da espera, porque os comboios já tinham chegado e partido todos, porque só os abandonados permaneciam na estação, a dormirem sob um monte de cartões velhos a esconder a vergonha. Neste momento estou atormentado, espero a condenação que tarda. Vou limpar a parede, apagar o teu nome de mim, e depois tenho umas quantas horas de serviço comunitário para fazer, eu não me importo, vou limpar todas as paragens dos autocarros da tua cidade. A ver se te encontro.

Porque te estás a rir?

Eu sei que as probabilidades são de um para um milhão de te encontrar. Tu não andas de autocarro. Mas não tive escolha. E se vens pela rua a caminhar? E se vens pela avenida a descer em direcção ao mar? E se vais até á ribeira a ver o rio? E se vens a conduzir o teu carro. Tens carro, não tens? (As coisas que me faltam saber de ti). Posso estar no dia um dos tais dias que fazem parte do milhão de dias e te encontro. Já tentei! Juro! Já tentei, estavas na tal paragem no cruzamento das ruas. Eram duas pessoas sentadas no banco à espera do autocarro laranja, uma eras tu. Só podias ser tu! Quando te vi e soube que eras tu, mandei parar os ponteiros do relógio no pulso. O tempo começou a deslizar muito lentamente. Eu disse-te que caminho sem tocar o chão? Quase a parar o tempo! Deitei fora o coração inútil por ser fraco, (esse o meu erro). Substitui a palavra em uso, GOSTO DE TI pela palavra proibida, AMO-TE (nunca me perdoaste o gesto), fechei os olhos para te manter cativa na memória e fui a correr.

Os olhos fechados na tua cidade.

Lembro-me.

Era um cruzamento, duas ruas, eu estava na paragem à tua espera e tu estavas também à espera, não de mim mas eu não sabia. Ainda não sabia.

Lembro-me

Atravessei a rua a correr os olhos fechados ainda, tu tão perto. O tempo a parar. A ter-mos tempo. A palavra substituída de novo no lugar certo, verdadeira. Tu tão perto.

Lembro-me

Estendia a mão esquerda aberta, o corpo inclinado para a frente quase a tocar-te, a mão direita também. Lembro-me perfeitamente do som dos travões, o ruído dos pneus na rua a chiarem, o cheiro a borracha queimada.
O tempo ainda parado como eu lhe tinha pedido. Os olhos fechados. O corpo a correr.

Lembro-me

O doce do sangue na boca. O movimento estranho a flutuar na espuma. O corpo a ficar.
Abri os olhos. Não eras tu na paragem era uma semelhança tua, já não vi bem. Tenho o coração fraco e tinha-o deitado fora. E sinto o frio do mar a inundar-me por dentro, os farrapos de sargaço a abraçar-me as pernas. Não sinto o relógio a bater no pulso. Não sinto o coração fraco a bater ainda por ti. Não sei se chove ou se é o meu lado direito do peito a inundar-me, não lhe sinto o sabor da água, ou a força do vento ou o calor do sol.

Lembro-me

Pensando bem eu vinha a correr de olhar fechado na tua cidade a pensar que era na praia e que eras tu sentada nas rochas à minha espera.
Pensando bem para que penso. Para que sinto?
O sol, descobri agora, é azul em relâmpagos intermitentes. O vento é um uivo ondulante na cidade. A chuva é amarga a arder nos olhos.
Os ponteiros do relógio desobedeceram e avançam sem ordem um pouco o tempo. O tempo desordenado. Sabes o que é isso? O tempo desordenado. Deixa. Não queiras saber como é.
Tarde. É tarde.
Sinto uns dedos em mim. Juro que nesse momento perdi o rumo, a direcção. Desnorteei-me. Sinto uns dedos em mim a abrirem-me as pálpebras. Eram uma espécie de prédios altos, esguios, brancos, as pessoas. Um ângulo completamente obliquo e diferente de todos os ângulos. Olharam-me! Está morto! Ouvi dizer. Fecham-me os olhos então, e eu como estava cansado deixo-me adormecer na praia, a mão esquerda estendida para te sentir.

Se quiseres

Se vieres



João marinheiro, excerto do Livro de contos, "Dormir na praia "
Praia de Fornelos 2008
Fotografia de Barcoantigo em 2008

segunda-feira, agosto 25, 2008

se eu pudesse refugiar a memória no escuro da noite...

quinta-feira, agosto 21, 2008

o coração todo teu...


Agora que sabes que te amo
O coração todo teu
Para lá do tempo

Envolves-te no manto do silêncio
Eu aqui na angustia da espera
Tardas

Envelheço nas curvas dos dias
Sem memória já
do teu corpo inalcançável
e fico adormecido

este amor
tão doloroso de ausente
como ausente sou sempre
das noticias tuas que tardam

a ausência esse lugar dos destroços
agora que sabes que te amo
o coração todo teu


João marinheiro 2008

sábado, agosto 16, 2008

Acordo 150 milhas a oeste de nada e o silêncio é sofucante
Abro os olhos no escuro total. O barco parado estático. Tacteio em direcção ao poço e ligo o motor, acento as luzes, carrego as baterias extenuadas, lentamente os instrumentos de bordo iluminam-se, lentamente os visores, os alarmes passam do vermelho ao laranja finalmente ao verde. 14 volts a carregarem as baterias.
35º de temperatura 80% de humidade a escorrer pela pele, irrespirável, o mar um caldeiro onde os meus pecados se expiam. O nevoeiro espesso a assustar
Penso em ti
Se tu me entendesses…
joão marinheiro 2008

sábado, agosto 02, 2008

breve história...


Éramos dois ao serão nas noites da memória, eu e tu, e uma gata persa triste.
Um dia foste embora e continuamos dois. Eu e a gata persa triste que entretanto morreu com saudades das tuas festas.
Ainda somos dois.
Eu e a memória tua nas noites agora longas e frias.
Nunca te disse da forma como te amava.
Ou como te amo agora que aprendi este amor novo em silêncio feito de esperas e de desejos como fogo frio a consumir-se por dentro.
Espero também partir e depois já não somos ninguém à tua espera.


João marinheiro 2008

Fotografia de Barcoantigo 2008

terça-feira, julho 22, 2008

A tua carta...


(Livro de Contos)

Querido Júlio

Não estranhes esta minha carta tão tardia. Peço-te desculpa por isso. Por ser tão tarde. Mas aconteceram tantas coisas nestes quase 50 anos que nos separam. Acho que desisti de ti ou desisti do teu amor. Não sabes quanto me custou separar-me, ir-me embora sem uma palavra, sem me despedir, sem dizer que ia. Foi um acto de cobardia de minha parte eu sei. Não sabes os rios de lágrimas que correram nos meus olhos. Acho que chorei tudo por uma vida. Agora secaram-me as lágrimas.
Durante uns tempos soube de ti. Lembras a Sílvia a namorada do Zé Areias, casaram quando vocês regressaram do mar. Acho que te recordas do Zé foi o teu imediato na segunda ou terceira viagem à Terra Nova, já não estou certa. Como andavas embarcado com o Zé eu ia sabendo algumas notícias. Terminaram quando deixaste a pesca do bacalhau e foste para os navios de longo curso. Fui mantendo o contacto com a Sílvia, umas duas cartas por ano. Nos primeiros anos perguntava por ti, ou ela me dava uma notícia a dizer-me que andavas pelo Pacifico, pela Austrália, pelas Américas, nessas alturas tinha a esperança que pudesses vir a Inglaterra a algum porto. Sentia uma vontade enorme de te ir ver. De ir ver o barco onde navegavas, a tua casa no mar. Nunca vieste pois não? Nunca quiseste vir para norte. Eu sei que soubeste que eu estava em Inglaterra. A Sílvia contou-te que eu vivia em Londres mas não te contou tudo. Isso vou fazer agora nesta carta, tentar contar-te tudo nesta carta. Não sei se vou conseguir. Confesso Júlio que me foi muito difícil começar a escrever. Compreendes aquele receio, aquele aperto no coração, aquele sufoco na garganta. Tanto que queremos dizer e não sabemos por onde começar. Eu demorei quase cincoenta anos a começar estas letras. Ainda gostas da minha letra? Desculpa que pergunta tola que te faço. Desculpa!
Fui embora Júlio porque desisti. Desisti de ti e de mim ma altura. Era o mar que se entrepunha, que nos separava. Comecei a odiar o mar que tu amavas. Tu sempre a dizer-me que amavas o mar, que te corria no sangue, que era uma paixão. Comecei a sentir-me uma mulher traída, e as mulheres quando amam, quando se sentem traídas perdem a cabeça. Perdi a minha foi isso! Perdi a cabeça e fui embora. Desculpas-me? Não desculpes!
Quando foste para baixo para Lisboa no navio para te juntares à frota acho que na minha cabeça a decisão já estava tomada. Tínhamos discutido, queria que arranjasses um trabalho em terra, e eu queria continuar os estudos, não ficar em casa à espera na angústia sem saber de ti tantos meses. Não sou uma mulher do mar. Quando cheguei a casa a decisão estava tomada. Fiz as malas e apanhei o comboio para França, depois o barco para Inglaterra. Atravessei o canal com medo. Medo de ver as velas do teu navio branco, um cisne do mar como lhe chamavas, mas sabia que era impossível, ias rumo aos Açores. Eu estava a norte, muito a norte de ti.
Matriculei-me na universidade e diz o doutoramento, no início foi difícil, diria complicado, os pais também se zangaram comigo, valeu-me no início a prima Zara que vivia em Londres e me auxiliou no primeiro ano. Não dominava a língua com facilidade, mas rapidamente me integrei na vida estudantil, também arranjei um emprego aos fins-de-semana numa livraria fantástica. Valeu-me Morris um querido professor de Arquitectura. Apaixonou-se por mim e eu com o tempo afeiçoei-me a ele, foi muito importante a sua presença durante a minha gravidez. Tive sempre o seu apoio. Acabamos por casar. E tu? Também casaste? Morris faleceu, faz hoje precisamente três anos. O tempo que me levou a decidir escrever-te. Três anos. Tenho pensado nisso. Se calhar por me sentir outra vez sozinha aqui. Talvez por sentir saudade de Portugal, da minha cidade, do rio Douro da praia, do mar. Acho que a palavra saudade é uma palavra traiçoeira. Ingrata diria mesmo. Prega-nos partidas. Mina-nos o corpo. Já não sei o que digo. Mas depois de Morris partir, à noite ficava na sala sentada no sofá a ler, ou a trabalhar no computador. Reformei-me, faz anos, mas continuo com as minhas pesquisas, os meus trabalhos de investigação, colaboro com algumas editoras e regularmente publico os meus artigos. E tu? Ainda escreves as tuas histórias de marinheiros que gostavas, eu te lesse em voz alta na sala. Se calhar já não. Há tempos numa pesquisa apanhei um susto. Fiquei a tremer. Comecei a ler, contava histórias que me eram familiares, parecia que eu fazia parte das histórias. Não és tu que escreves pois não? São demasiadas coincidências as palavras. Acho que nunca vou saber se foste tu que escreveste. Mas é a tua maneira sentida de escrever que me lembro, que eu li ali num sítio perdido da Internet. As palavras nestes três anos passaram a fazer-me companhia pela noite. Nunca fiz um comentário, nunca tive a coragem para vencer a barreira do medo, do anonimato, e escrever a perguntar quem era, quem escrevia assim da forma igual a mexer com os sentidos, a entrar em nós, como tu escrevias. Nunca fiz um comentário. Foi medo que me impediu. Medo da rejeição de saber se eras tu. Durante estes três anos alimentei a fantasia que eras tu. Sabia pela forma como escrevias se estavas alegre ou triste, se estava sol ou chuva, se era verão ou Inverno, se a praia estava deserta ou povoada. Se os barcos ainda continuavam a morrer abandonados na areia ou se salvavam. Durante estes últimos três anos viveste comigo outra vez à noite pela madrugada até ao nascer do dia. Eras tu que escrevias não eras? Mas já não interessa. Não faz falta saber. Finalmente ganhei a coragem para te escrever. Escrevo-te com a mesma caneta que me ofereceste um dia. Guardo-a como um tesouro, foi a única coisa que trouxe comigo. Acho que não te devo maçar com estes pensamentos, qualquer caneta serve para escrever. A Sílvia veio ter comigo este verão. O Zé faleceu repentinamente vítima de um enfarte, e ela veio ter comigo a passar um mês, foi um reencontro de duas amigas. Fez-lhe bem e a mim também. Pude treinar o meu português esquecido, faz vinte anos que não vou a Portugal, sei das notícias pela RTPi. Estou a pensar em ir ao Porto, a Sílvia convenceu-me. Este verão possivelmente.
Falamos de ti e de nós. Soube que te reformaste, que continuaste a dar aulas de náutica, que não deixaste os velhos barcos à vela, que manténs a mesma casa, que viajas bastante, e que ainda escreves. Não contei à Sílvia que te leio na net faz três anos. Depois de ela me dizer que ainda escreves, fiquei com a certeza de que és tu que escreves. És tu que escreves não és? Soube também que não te casaste, que optaste pelo mar, que andavas sempre em viagem a levar navios cada vez maiores de um porto para outro. Que naufragaste duas vezes que da segunda vez te encontraram por mero acaso ao fim de quinze dias, moribundos, tu e mais oito dos teus marinheiros, que estiveste uns meses no hospital, que depois disso deixaste as longas viagens e te reformaste. Porque nunca casaste?
Com o reencontro da Sílvia voltou a palavra esquecida ao meu corpo a palavra saudade. Comecei a sentir saudades de ti, do mar, de nós. Aos poucos reuni a coragem suficiente para te escrever. Já não tenho a coragem de antigamente. A idade torna-nos submissos. Já não consigo imaginar-te. Como és, se o marinheiro alto e esbelto, entroncado de cabelo loiro curto vestido de branco e azul-escuro, se um marinheiro alquebrado pelo mar de olhar triste irreconhecível, distante. Por vezes pergunto-me se te encontrasse na rua, se te iria reconhecer, acho que sim, tenho essa secreta esperança. Mas será difícil. É incrível mas a Sílvia de tantas fotografias que trouxe, não tem uma única onde tu estejas, nem do tempo que o marido andava contigo embarcado. Sempre foste pouco fotogénico como dizias, eu sempre achei que não. Deixa parece que já não sei que te escrever e estou para aqui envolta nos pensamentos. Desculpa fazer-te perder tempo a ler estes disparates que escrevo…


Beatriz (Continua...)

Fotografia: Oleo sobre tela de João Renato