Não sei por onde começar
Gostava de te escrever uma carta. Sim, uma espécie de
carta das viagens das idas e das vindas. Das partidas. Dos reencontros. Dos
abraços. Das lagrimas. Dos lenços brancos enquanto o navio se afastava do cais
e nos levava de encontro a Africa e á guerra.
Não consigo escrever-te uma carta.Fomos tão breves os dois, tão breves que dói, e as pontas dos dedos dilaceram-se de encontros ao vazio que ficou.
Gostava de
poder tocar-te novamente. Afagar os teus cabelos e murmurar-te ao ouvido em
ruídos de água na levada que és tão bonita. Olhar-te nos olhos outra vez e ver
o amanhecer do sol sobre a montanha alva onde a neve brilha e o frio nos faz
arrepiar a pele e onde o abraço tem um sentido quente de conforto.
Separa-nos uma linha invisível e a distância entre o
tu e o eu. Existimos os dois por dentro da memória num lugar recôndito e
secreto, onde o tempo não avançou e somos crianças de novo.
Ensinas-me a tabuada e eu ensino-te as palavras
imaginadas, num jogo de apanha apanha, de toca e foge, e eu, sempre que te
tocava, era uma corrente eléctrica que me atravessava. Pena que nesse tempo
tudo era novo e a única luz nas trevas era a candeia de azeite a tremeluzir.
Ainda sinto o cheiro do azeite a arder e na pele o
cheiro da madeira de carvalho a crepitar na lareira.Faltam-me as memórias da tua seara, dos cachos dos teus cabelos loiros como espigas ondulantes, o som do teu sorriso, o contorno dos seios arrebitados ao vento que eu contemplava em contra luz quando sensual, tu, te entrepunhas entre o entardecer do sol e o meu olhar perdido. Nesse tempo existia a inocência em nós e todos os pequenos gestos eram brancos, puros como a cor do amor.
Faltam-me o fogo e o folego e as palavras hoje. Tudo
se confundiu quando os nossos corpos se encontraram na beirada do rio. Lembras?
E as minhas mãos te tocaram a pele das costas, os seios e os lábios sôfregos se
colaram num amplexo novo de excitações e calafrios electrizantes.
Eras uma espécie de perola, sim, tens razão, uma
espécie de perola rara que profanei, espécie de templo secreto na margem do rio
ao sul de nós. Perdemos a inocência pura e o amor deixou de ser branco e
tingiu-se de cores rubras. Nesse dia choveu, e vimos um arco iris a rasgar o céu
e fomos á procura do pote de ouro que estava escondido debaixo da outra ponta
do arco.
Perdemo-nos os dois na floresta. Crescemos. Partimos. Dou-me
conta que foi a ambição do ouro que nos perdeu. Tu eras o metal puro á distância
da ponta dos meus dedos. Tu eras o tesouro escondido que sempre estiveste á
vista, e eu cego não sabia ver-te até ao dia em que deixamos a inocência
desaguar no mar. Ai era demasiado tarde. O nosso olhar confundiu-se e o rubor
tingiu a tua face e os teus olhos afastavam-se dos meus e os meus dos teus, e
eu ao longo da vida nunca mais soube olhar olhos nos olhos com medo de
encontrar os teus outra vez.
Nem sei por onde começar.
Os lugares não existem já, destruíram a montanha e
agora um risco de alcatrão largo separa as duas partes.
João Marinheiro
São Paio de Antas Novembro 2013
Fotografia de Barcoantigo em 2013