terça-feira, julho 18, 2006

V

Estávamos para ali em pequenos grupos ao redor do Xico, um tipo indecifrável, verdadeiro artista, não se sabia…
Resolveram eles em boa hora para quebrar as distâncias, ou o frio do desconhecimento, o gelo das apresentações instituídas, irem todos tomar um café, melhor, umas imperiais que estava muito calor, ou não fosse o Algarve a terra do calor. Eu entretido a organizar os painéis da exposição que também levei, por pouco não ficava só. Não sabia de ti. E estavas presente em mim…
Ai sim. Feitas as reapresentações, de roda de uns copos de cerveja geladas, ficaram todos a conhecer-se melhor, ou quase nada.
Na mesma, muito comedida nas palavras continuavas, notava que eras de poucas falas, tímida um pouco? Ou porque tu também não conhecias ninguém. Recatada portanto. Aos poucos sempre soube que tinhas estado em Cuba na semana anterior. Observava-te por detrás do copo de cerveja, via o brilho do teu sorriso, o contorno dos teus lábios, o teu olhar, sabias que eu te olhava, sabias. Depois, mais tarde, um dia confessaste-me ao ouvido que gostavas das minhas carícias com o olhar. Porque me enamorava de ti a cada instante eu?..
O Xico no seu modo peculiar. Estranho. De arquitecto do tempo e do espaço, resolveu pagar as cervejas e sair de mansinho, afinal tinha ainda uma noite de trabalho intenso para vencer. Nisso somos parecidos os dois, não deixamos por mãos alheias o que nos propomos fazer, um no urbanismo recuperado, outro nos barcos historicos que morrem lentamente em qualquer beira mar…

Tinha de conhecer melhor o Xico, para expormos algumas ideias das vivências de cada um, para assim partilharmos essa maravilhosa essência de viver que é a amizade compartida em actos e pensamentos. Exposições, jornadas. Recuperação de um património que se perde em cada batida do coração. E assim desfalecido, fora de moda, esse nosso património, sofrendo de uma qualquer espécie doentia de Alzaimer vai regredindo, velho, sem utilidade, ficando mais pobre a memória, a nossa memória colectiva, de povo antigo, aventureiro, explorador. Povo de partilhas e descobertas de outros mundos. Estranho isto de ser Português…
Sentia-me um pouco em casa, afinal vinte anos antes já por ali vivera, numa das minhas deambulações de beira-mar, vindo da Fuzeta e da Ilha do Farol, mesmo sendo um homem do norte apanhava muito depressa o sotaque algarvio, meia dúzia de horas depois de chegar, já falava à moda do Algarve, como um filho da terra. Nunca se esquece a herança cultural que se adquire, e nisso sou um privilegiado. Essa riqueza dos sons, dos modos de vida, dos cheiros, da azáfama própria de cada lugar. Esse modo de olhar o mundo ou o horizonte da água, que a água como primeira memória da humanidade tem que andar sempre por perto na minha vida.
Findo o jantar. Cada qual por seu lado, que Vila Real é terra esquisita nestes dias, quase não se arranjava onde matar a fome. Estranha sensação esta de ser estrangeiro na nossa terra. Terra de “camones” que eles é que são o turismo. Eles é que tem o “money”. O português não interessa.
É melhor não enveredar por esta dissertação…deixemos que a globalização nos afogue tranquilos….
Regresso a ti. Bebi as tuas palavras pela noite fora…
Regresso a ti e à grata sensação do teu encontro. Olhar bonito. Perspicaz, se calhar defeito profissional? Tinha que descobrir. Mas afinal em que trabalhavas? Este foi o nosso primeiro encontro lembras, e tinha já tanto para te dizer. Tanto!
Em conversa sentados à mesa do café, lentamente revelaste que fazias investigação. Investigadora de património. Leccionavas em Londres na universidade.
Eu não sei do que falei, demasiado talvez? Lembro que fascinado pelo teu olhar de mistério, de roda do copo de cerveja que sorvia em pequenos golos, escutava-te, escutava o que me dizias. Aos poucos e pouco revelavas-te, como a água que brota na bica, vinda da mina entubada das entranhas da terra. Fresca, caindo em pequenos jorros na represa dos sentidos onde os jacintos de água e as libélulas disputam um lugar ao sol. Eras o meu sol na noite adiantada…
A madrugada avança. O copo está vazio, e a coragem para mais um diluiu-se na satisfação da sede saciada. És a fonte que me sacia a sede, não a desaceleração do ritmo a que gira o meu coração…
Tarde da noite, ou do novo dia que já despontava no barrocal a nascente despedimo-nos. Engraçado, estávamos no mesmo hotel. Amanhã, ou mais logo será outro dia para o reencontro.
Esta noite sonho contigo, sei já o cheiro dos teus cabelos macios, o cheiro do teu perfume. O som da tua voz. Adormeço embalado por emoções.
Adormeço em ti…


João marinheiro ausente


3 comentários:

Anónimo disse...

entrei na tua história e "vivi" essa vivência, sem saber bem explicar porquê. Será efeitos da ilha?...
Bjs

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

que bonito João...

APC disse...

Jesus!... Côsa má bonita!!! ;-)
Porque me parece tão real?...
;-)