terça-feira, novembro 04, 2008

Do desencontro... IV parte

(Livro de contos)

Tudo começava a ser confuso para mim. Um mistério que se adensava a cada passada. Até a enorme mansão, os corredores compridos com o seu silêncio impecavelmente limpos e arrumados me intimidavam. O Dr. Ernesto ao meu lado em passos rápidos, sem uma palavra conduzia-me pelo labirinto. É isso estou num labirinto. Quem foi o capitão Júlio. Que espécie de homem? Porque tenho a sensação que planeou tudo, a morte, a minha chegada, o meu assombro, o meu medo. É isso! O meu medo neste momento. Que estaria na carta escrita. Que estaria guardado no quarto, que mais parece um camarote de navio. Agora enquanto caminho e os meus passos ressoam no chão limpo e se perde o eco nos corredores dou-me conta que o quarto cheirava a mar. Estranho. Como o conseguiu. Como é possível sentir o cheiro da brisa, o cheiro do sargaço ali, um quarto fechado na penumbra. Não sei. São já demasiadas perguntas que faço a mim próprio e para as quais não vou com toda a certeza obter resposta nunca. Chegamos, parece que acordo de uma espécie de êxtase. O Dr. Ernesto abre a porta. – Faça favor de entrar, e sente-se enquanto vou buscar os documentos que Sr. capitão Júlio me confiou.
Sento-me, obediente, sem acção, sem raciocinar, num gesto automático a responder a uma ordem. Que se passa comigo? Olho em volta. É uma sala ampla duas enormes janelas com sacada. Mentalmente faço um exercício de localização onde me encontro. Onde o Norte? Os homens do mar são assim, temos por dentro uma espécie de agulha magnética que nos orienta, como as aves marinhas, pode ser isso, mentalmente na minha cabeça surge a imagem da mansão, é isso! As duas janelas com as sacadas viradas à alameda. é aqui o escritório virado a nascente, é aqui que os antigos fidalgos apreciavam o nascer do sol. Pormenores da arquitectura do tempo. Importantes, nem eu sei. É um escritório esta sala agora, mas com toda a certeza seria a biblioteca, a sala de estudo. As enormes estantes em carvalho velho até ao teto repletas de livros antigos. O enorme quadro do visconde a observar-me desde a parede. Os meus olhos como um radar preciso e rápido a dar-me a informação possível. Uma enorme lareira impecavelmente limpa e arrumada com as ferragens de bronze reluzentes. Demoro o olhar ali, preso na cor amarelada do bronze e fico a pensar nos velhos veleiros. Os barcos que o capitão Júlio tanto defendia. E fico a lembrar o nosso navio Sagres, com os bronzes impecavelmente polidos, motivo de orgulho e de vaidade das tripulações. O meu tempo a bordo como Cadete. O inicio das minhas viagens no mar. Volto à sala. Um grande sofá em couro escuro, dois mais pequenos, também uma mesita com um livro poisado, a pequena mesa toda trabalhada em talha, uma obra de arte, aqui tudo é de estremo bom gosto. Um piano de cauda, Alemão penso. Percebo pouco de instrumentos musicais, mas o nome, C. Bechestein incrustado, não me deixa grandes dúvidas. O Visconde na parede ainda sentado a olhar. A cadeira parece a mesma que está junto ao piano. Com certeza era nela que se sentava para escutar o piano. Tocado por quem? Nunca o vou saber. Respira-se aqui um misto de passado e de modernidade, o computador na enorme secretária é a prova da modernidade instalada. Mas o cheiro é uma mescla a madeiras e ceras difícil de encontrar já.
– Ora aqui está toda a documentação, escutei. Por uns momentos esqueci-me do motivo que ali me tinha levado. Esqueci completamente o Dr. Ernesto. Era eu a vaguear no tempo. Regresso de repente. – Desculpe estava aqui a admirar a sala, retorqui.
– É uma bela sala, tentamos na recuperação manter a traça o mais fiel possível, mesmo o mobiliário aqui ainda é o original, só as acomodações para os residentes foram alteradas. Mais modernas. Com as comodidades que a lei exige e mais algumas que achamos estas casas devem ter para proporcionar aos nossos idosos, a melhor qualidade de vida e a tranquilidade possível nesta ultima etapa que enfrentam.

Como lhe disse há pouco, isto é uma missão, chamemos-lhe assim, é uma missão estar aqui ao lado deles, acarinha-los, escuta-los suprir todas as suas necessidades transpor as limitações que o tempo lhes impõe. Por exemplo o capitão Júlio, estava muito limitado já das pernas, nunca quis deslocar-se em cadeira de rodas, nem com o auxílio das canadianas. Os últimos meses quase não saia do quarto. Passava o tempo a escrever e a ler, muitas vezes a olhar a baia da janela, às vezes nos dias bons levantava-se de madrugada e vinha lentamente até ao refeitório pela manha cedo ainda antes do pessoal da cozinha chegar, e depois ia até ao jardim, caminhava muito lentamente. Dizia-me que tinha tempo. Que toda a vida andou demasiado depressa, que assim conseguia absorver os aromas da terra, as cores do dia, os sons. Que ao caminhar lentamente tinha tempo para dar valor a tudo, às pequenas coisas, ao caminhar da formiga, ao saltitar dos pássaros, às gotas de orvalho na relva, às flores nos canteiros.

Gostava muito de conversar com ele já lhe disse. Mas vamos ao que interessa. Aqui estão as cartas que lhe falei dentro deste envelope, as cartas e as instruções para o caso de alguém vir à sua procura e chegar tarde como é o caso. O Sr. João Pedro desculpe-me a crueza das palavras mas é a realidade, aqui temos de ser prático acima de tudo. (continua)
Fotografia de Mariah

1 comentário:

Sónia disse...

Percorri-te nos desencontros…demoro, mas acabo sempre por o fazer, tu sabes que sim e sabes porquê. Gosto que saibas que também sinto aqui o cheiro da brisa, do sargaço. E o tapete…gostava de o ver, acho que já o desenhei, só não sei onde fica o norte. Talvez também compre um relógio que mo indique…Fico á espera das outras cartas. Não voltes já para Sidnei, não?

Beijo