domingo, outubro 12, 2008

Do desencontro...II parte



(Livro de contos)


Sou só um homem de mar só isso. Um homem do mar habituado a guardar as emoções, a ser frio de sentimentos, a ser máquina nas emoções, a não falhar, a saber comandar. Mas agora sinto as pernas a cederem, uma tristeza a invadir-me o corpo, uma angústia, um vazio inexplicável. Sinto-me a falhar. Estou aqui á porta do quarto que foi dele e sinto que falhei em alguma coisa. É este o quarto do meu pai, semelhante a um camarote de navio, decorado assim, simples, arrumado, deu para ver que sim numa mirada rápida, uma janela, uma cama estreita, uma secretária com um candeeiro e uma cadeira, um pequeno computador portátil fechado, um caderno de capa prata, um estojo de lápis e canetas, uma caixa castanha em couro aberta com um sextante reluzente no lado direito, um livro fechado com um marcador das paginas em couro preto e livros arrumados numa estante, um guarda fatos com espelho e dois gavetões, um tapete com uma rosa dos ventos a cobrir o chão todo e a indicar o norte. Demoro-me a olhar o tapete, parece-me Arraiolos, quase de certeza, mas o motivo náutico não é característico das tapeçarias de Arraiolos, e o Norte desta forma? Certo. O norte a coincidir, confirmo pela agulha que tenho no relógio de pulso. Fantástico. Teve de ser feito propositadamente para aqui só pode ter sido. Homem estranho este a quem não posso chamar de pai, já não sei. De repente ganhei dois pais ausentes, dois pais mortos, um cheio de memórias outro cheio de nadas, e são esses pequenos nadas que me afligem, que me querem dizer tanto, que me podem explicar quem sou, porque lhe sigo as mesmas pisadas de vida sem o saber, porque sou exactamente igual diz a mãe. Como pode isso ser possível.
Agora entendo porque ela me dizia que era igual ao pai. Morris nem nadar sabia. Morris não gostava de mar. Se éramos contrários no gosto pela aventura. Agora percebo as palavras da mãe.
Passo os olhos na estante dos livros. Olho os títulos. Alguns de relance, fujo à tentação de os tocar de os folhear. Sempre me fascinaram os livros, e manusear estes será profanar a vida dele, os seus segredos os seus gostos, quem sabe reler as frases sublinhadas, as páginas marcadas. Sensações estranhas me percorrem o corpo. Olho de novo, Guerra e paz, O dom silencioso, O homem e o mar, Cem anos de solidão, Os jardins da memoria, Arte de marinharia, Navegação astronómica, Ser capitão na marinha mercante, Tábuas náuticas, Manual de sobrevivência no mar. Tantos livros, técnicos e literatura universal, separados uns a um lado outros a outro lado arrumados por tamanhos e temas. Neste pequeno quarto tudo está no lugar certo. Na parede várias cartas náuticas, um mapa-mundo com rotas traçadas, coordenadas, pontos de referencias anotações escritas a tinta permanente numa letra vincada perfeita. Nisso não somos parecidos, a minha letra é uma desgraça de gatafunhos, penso comigo próprio.
Estou aqui à meia hora, só, no seu quarto, sinto-me estranho e ao mesmo tempo num ambiente familiar. Volto a aproximar-me da secretária, abro o livro, reparo que tem umas capas colocadas, talvez para o proteger, todos os livros estão impecáveis de conservação, como novos, como se não tivessem sido manuseados. Abro e folheio. Nunca li este livro; “Todo o tempo do Mundo”, seria este que estava a ler? Estranho o título. Fiquei apreensivo. Curioso, sem respostas, sem perguntas para fazer. Olho de novo em volta a ver os detalhes, a tentar descobri este homem nos pequenos pormenores. Aqui permanece o silêncio, só interrompido pelo vento nos ciprestes da alameda ou o barulho do mar que escuto por vezes misturado com o som da rua vindo da janela entreaberta. Sinto um calafrio, é estranho este lugar, uma penumbra, uma meia-luz a espalhar-se nas paredes, reparo agora, de um azul água discreto, suave, espécie de mar calmo. Estou parado ainda quase na porta sem coragem para entrar no seu mundo, sinto-me um salteador de tesouros, salteador de memórias, sei lá, todo eu estou confuso, todo eu tremo todo eu não me reconheço. Quem foi este homem que se agiganta em sentimentos dentro de mim. Não sei. Já não sei se devo querer saber e profanar a memória, os segredos, ou virar costas. Mas estou curioso, porque me informou a auxiliar do Lar que ele estava á espera de alguém? E porque planeou a guarda das suas coisas por tanto tempo, 5 anos de espera? Sabia de mim? Da minha existência? E a tal carta que ela me falou? Que noticias lá estão?


Batem à porta, dou um salto interior, acordo por momentos, não sei se breves não estava aqui, vagueava a tentar descobrir, a tentar ver no rosto da mãe sinais deste homem, deste pai que nunca o foi, deste pai que não sei se renegue se abrace, se ame, se odeie. Estou parado a olhar a pequena foto junto da cama na pequena mesa-de-cabeceira, é a mãe a descer umas escadas a sorrir, é a mãe ali estática a olhar-me, a mãe sempre esteve ali ao seu lado. Tocam de novo á porta duas pancadas suaves. Acordo outra vez desta espécie de sonho, desta espécie de pesadelo, não consigo reagir com a lucidez, os reflexos anestesiados

- Bom dia. Informaram-me que o senhor estava aqui. Sou Ernesto Vieira o director do Lar, sei que é filho do senhor Capitão Júlio, antes de tudo os meus sentidos pêsames pela sua morte. ( continua)

Foto, Estaleiros Mónica Gafanha da Nazaré

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