terça-feira, outubro 07, 2008

no dia de anos...


( livro de contos)


Beatriz. Beatriz.


Logo hoje recebo a tua carta. Logo hoje. O dia dos meus anos. Nem imaginas como estou por dentro. O meu coração fraco ainda a bater devagarinho, cada vez mais devagarinho, quase a despedir-se. Lembras de te falar dos cachalotes nos Açores, que via quando atravessava o mar, lembras? E te dizia que por vezes fracos, iam morrer à praia. É quase assim que estou Beatriz, a morrer na praia do cabo do mundo. A nossa. Já não sei. Sou um velho tolo.
Agora a tua carta nas minhas mãos a falar-me de ti. As minhas mãos cansadas e tremulas Beatriz. As mãos que tu gostavas. As mãos que te afagavam, as mãos que te seguravam minha, as tuas nas minhas entrelaçadas.

Beatriz. Beatriz.

Saboreio cada palavra tua devagarinho para lhe sentir o sentido, a profundidade da fala. Em cada frase fecho os olhos a imaginar-te, a tentar sentir-te, a tentar escutar o som da tua voz. O brilho dos teus olhos. Perdoa-me. Já não sou capaz. Já não consigo. Já não te sei desenhar de memória. És um esboço em mim cada vez mais esbatido, e agora a tua carta Beatriz. Meu amor. Não sei se te ame ainda ou te odeie. Não, não posso manchar de negro o meu coração, tu és amor ainda, sempre em mim. Foste sempre amor em mim. Perdoei-te quando foste embora, compreendi porque foste. Não foste feita para amar um homem do mar a cheirar a maresia, a saber a sal, de olhar perdido no horizonte, eu era assim não era? Perdoa-me. Não soube amar-te com o lado certo do meu coração. Agora já não me serve o coração. Está fraco. Inútil. Velho como eu, arrumado aqui neste corpo que se alquebra como os velhos navios do bacalhau se alquebraram todos abandonados. Perdoa falar ainda de barcos e de mar. Sei que não devo, mas corre-me por dentro no sangue. Nem sei se ainda tenho sangue por dentro, ou uma mistura de saudade e água salgada a queimar-me o coração. Deve ser isso. Só pode ser isso que faz anos me substituiu o sangue lentamente, e o corpo aguado vai corroído naufragando lentamente. Foi isso que me aconteceu. É isso que me acontece. Já não tenho conserto possível. É a quilha, sabes. A quilha e o cavername.
E agora Beatriz a tua carta nas minhas mãos. A tua carta a dar-me noticias tuas a falar-me de ti da tua vida. Eu sabia. Eu sabia que um dia ias voltar, por isso deixei a casa no Porto, não me desfiz dela. Perdoa porque a abandonei, perdoa-me porque também te abandonei na memória, não consegui evitar, e a dado momento da vida quando ia ao Porto à nossa casa não conseguia ver-te nítida na lembrança, não conseguia escutar a tua voz em lugar nenhum, não conseguia sentir o teu cheiro nas roupas da cama. Desapareceste da casa Beatriz. Deixei-te fugir de lá, depois era uma violência em mim tentar reaver-te de memória, deve ter sido por isso que deixei de sonhar a dormir faz tantos anos. Existes em mim por dentro como uma capa que reveste o coração por dentro, sem acesso exterior mas que existe por dentro. Estás em mim incrustada.
Desculpa. Não devia escrever estas palavras, porque são palavras vãs já a esta distância do tempo e o meu coração já não vale nada. Foi por isso Beatriz que abandonei a casa no Porto. Acho que faz mais de 25 anos que não vou lá. A Câmara quer ficar com ela porque está entalada por prédios altos, e dizem que se não faço obras reverte a favor do Município. Já não me interessa. Que dizer não interessava Beatriz, até saber do nosso filho. Porque nunca disseste-te. A dor que tenho dentro, um naufrágio imenso, um temporal imenso. Sofro uma dor que queima, ao pensar que toda esta minha vida foi uma vida sem sentido. Dou-me conta que fui pelo mar errado. Uma inundação da alma Beatriz saber que temos um filho e eu ter sido sempre um pai ausente, desconhecido, indigno da palavra. Mas eu sabia que um dia tu virias ao meu encontro, eu sabia. Esperava-te para me despedir.
Agora a casa no porto é para o teu filho. O nosso filho que não conheço, não sei o nome. Se ele a aceitar. A casa de Lisboa vendi-a quando vim morar para a vila. Não me fazia falta, também vendi o veleiro que tinha, ficou nos Açores anos atrás. Lembras São Martinho, é aqui que estou, na pequena enseada, é uma boa praia para morrer, um sítio sossegado onde ainda sinto o aroma do mar, a ternura da nortada, os gritos das gaivotas. Tenho uma janela de onde observo o mundo. Um mundo pequenito agora, já me chega.

A tua carta Beatriz queima-me os dedos de saudade. Sinto-me impotente aqui, preso fechado, queria tanto ver-te uma última vez. Eu sei que não é possível. Eu sei
Fico com essa mágoa dentro a denegrir-me a memoria. Maldito orgulho o meu em nunca te ter procurado. Havia de te encontrar. Mas para quê. Tinhas uma vida nova, longe do mar. Casada, feliz, realizada profissionalmente. Gostei de saber minha querida. Nem tudo se perdeu nesta nossa vida desencontrada. Nem tudo foi mau. Encontraste o amor e a felicidade. Ainda bem. Eu nunca te pude dar isso que ansiavas. E tu, tão nova, tinhas a ânsia de voar, crescer por dentro, de conhecer o mundo. O amor tem de ser livre para crescermos não é verdade. Tantas vezes falamos isso um ao outro. Escolheste o teu caminho o teu mundo. Não o meu mundo de água salgada, de longas noites de medos. Não. Este é um mundo fraco onde habitei nos últimos 50 anos. Corri oceanos e não sou de lugar nenhum. Atravessei continentes. Pisei terras distantes, conheci cidades imponentes. Dormi em camas de todos os portos. Esvaziei a paixão no corpo de mulheres viajantes do tempo. Não pertenço a lugar nenhum. Não tenho amigos. Não tenho raízes. Amava os barcos, é isso, foram os meus amores a vida toda. Um amor inútil. Sofrido. Cheio de vazios e de trabalheiras. De angustias tantas vezes. Agora aqui a pensar em tudo, acho que não valeu a pena. Que me enganei. Que estava errado na profissão, que o amor era um amor falso. Aos poucos estou a renegar os barcos, no entanto só a bordo fui feliz, só os barcos me deram a tranquilidade e o equilíbrio para vencer a saudade tua. É verdade. Tornei-me num viciado na saudade tua, e agora não sei como me curar, ou sei e espero. É isso espero a cura de ti. Esta carta é isso, sinto que sim, sinto como os cachalotes a minha hora, e já estou na praia Beatriz. Perdoa-me porque desisto, mas já não tenho força suficiente para teimar. O corpo não ajuda estou velho. E estou a renegar os barcos que amo e o mar que foi a minha vida.
Beatriz. Beatriz meu amor agigantado. Meu amor Adamastor. Meu amor cabo dos medos.
Fico à espera aqui. Tenho todo o tempo do mundo ainda para que voltes um dia.


Estarei cá.
Eu ou as memórias minhas.

Amo-te ainda. Não. não te amo ainda. Amei-te sempre toda a vida é isso, e sou um velho louco e tolo em estar a escrever-te isto aqui. Nunca vais ler esta carta. Escrevi-te algumas, que nunca enviei. Não sabia para onde. Escrevia-te quando atravessava os oceanos, em dias que a lua espelhava na água profunda, em dias de tempestade. Todos os dias eram pretexto para te escrever. Quase sempre arrancava a folha do caderno e a lançava ao mar. Era o orgulho em não dar parte de fraco, afinal foste tu que foste embora sem te despedires de mim. Deixei de saber de ti quando deixei o Bacalhau e me separei do Zé o meu antigo imediato. Rumei à América e ao Pacífico perdi-me pelo oriente durante anos. Quando voltava a Portugal sentia-me um estranho por cá só demasiado só. Portugal mudava lentamente. Por sorte não apanhei a guerra em Africa, valeu-me andar na campanha ao bacalhau. Deixa. Não leias esta parte. Que tolo estar aqui a lamuriar-me.
Tenho a tua carta aqui na frente dos meus olhos, para ler outra vez devagarinho. Saboreio cada palavra tua devagarinho para lhe sentir o sentido, a profundidade da fala.
Fico à espera.

Estarei cá.
Eu ou as memórias minhas

Teu ainda sempre (continua)

João Júlio
Cap. M. Mercante

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