segunda-feira, setembro 11, 2006

O que aconteceu hoje não tem explicação no momento…


Seguia na estrada sem rumo hoje. Andei às voltas perdido em mim, queria fechar os olhos, sei que não podia, a estrada requer atenção. Existem tantos aselhas a conduzir. Não quero ser mais um.
Saí em direcção ao sul. O mar calmo do lado direito chamava-me a ir ter com ele. O mar tem em mim destas coisas. Um diálogo de sentires sem palavras. Basta-me o saber que está lá. Ora calmo como hoje. Ora furioso consigo próprio. Quem sabe com o homem que não o respeita. Eu respeito o mar que me viu nascer, não lhe tenho medo. Medos têm os ignorantes que não amam o mar, não lhe sentem o sal na pele, o cheiro no corpo, o frio nos ossos. Eu sinto tudo isso e a água salgada na garganta como um náufrago sequioso. Sim que também já fui náufrago um dia. Também já senti a imensidão do mar e eu minúsculo, só, no oceano. Não me quero lembrar disso, não hoje. Porque hoje inexplicavelmente fui dar à nossa praia de uma tarde.
Sei que nunca vais ler estas palavras que hoje escrevo porque te recordo. Mas sem que me desse conta, o carro como que guiado por mão invisível que não eu, foi dar á praia de Rio de Moinhos. Lembras a praia, aquela onde se vêem os moinhos na encosta do monte, os moinhos onde eu ia com a avó levar o milho para moer. Cheguei a falar-te disso, naquele dia de primavera com uma brisa quente em que fomos os dois pela primeira vez, dar uma volta no carro do pai e fomos até lá.
Éramos amigos desde sempre, desde miúdos, vivias na Vila eu na Póvoa, éramos verdadeiros amigos, acho que ainda somos embora já não saiba de ti. Casaste e ele tem o meu nome. Coincidência ou não. Mas não podíamos ser um do outro. Hoje sei que não, e o que aconteceu nessa tarde foi um sinal. Hoje sei que foi. Já namoriscavas com ele, e eu entretanto tinha partido para o Algarve. Mas estava de volta e fui ter contigo, e nessa tarde fomos ver o mar na praia de Rio de Moinhos.
Dei-te a mão. Estavas bonita, nunca te tinha dado a mão da maneira que dei, da maneira que senti. Queria sentir-te por inteiro nesse breve contacto de dedos entrelaçados. Caminhamos pela praia uns bons vinte minutos em direcção a norte, a brisa no rosto. Lembro os teus caracóis ao vento. O teu olhar calmo. A tua voz meiga. Sempre gostei do timbre de tua voz. Do calor de tua voz. A maneira terna como falavas comigo como que a acariciar-me, os sons beijavam-me os ouvidos. Ficava calado a escutar-te, a olhar para ti. Abraçaste-me. Gostei do teu abraço de te sentir colada a mim. Descalçamo-nos e fomos abraçados junto à linha de água. A maré estava subindo lentamente. Tinha seis horas para o fazer. O mar é assim, sem pressas, vai e volta sempre…Nós não. Temos sempre pressa e nunca voltamos. Eu só voltei agora à nossa praia, onde te recordo com um carinho especial com que se recordam as pessoas Grandes. Tu és uma pessoa Grande em mim. E o mar chamou-me para me lembrar de ti. Fiquei enternecido. O coração batendo a um ritmo baixo para não perturbar o momento, quase te sentia ali. Lembro-me perfeitamente quando nos sentamos na areia abraçados a falar de nós. Enquanto te afagava os caracóis do cabelo, encostaste a cabeça no meu ombro, fechaste os olhos, tinhas uns olhos muito bonitos, expressivos, quentes, ternos, e tinhas uns óculos engraçados. Ficavas bonita, intelectual mesmo, nos teus óculos redondos à John Lennon. Era a grande moda na altura óculos assim. Acariciei-te o rosto, disseste que tinhas tido muitas saudades minhas, que as cartas que escrevíamos um ao outro, não chegavam para afastar essa saudade. Que sentias a falta do tempo que passavas na Póvoa em minha casa aos fins-de-semana. As brincadeiras que fazíamos, um tempo puro que existiu no nosso coração. Ainda existe, eu sinto.
Abracei-te, e nesse momento olhamo-nos profundamente revelados. Ambos sabíamos que estávamos na fronteira frágil dos sentidos. A fronteira ténue do desejo. A fronteira do querer. Éramos grandes amigos lembras. Mas tínhamos crescido. A adolescência já tinha partido um dia. Éramos um homem e uma mulher adultos, com desejos. Apertei o meu abraço. Estremeceste por fora e por dentro. Acariciei a tua face. Fechaste os olhos. Ofereceste-me os lábios que beijei quase a medo, e houve um estremecimento em nós. Ambos sentimos o coração acelerado. O sangue a correr demasiado depressa. O calor a instalar-se nos corpos. Beijamo-nos de novo imensos um no outro. Ambos sabíamos que era um beijo proibido. Mas ambos o desejamos, o merecíamos, fazia já demasiado tempo. Mas era um beijo proibido. Estávamos demasiado longe um do outro. As nossas vidas não tinham que se cruzar um dia. Namoravas tu, e eu tinha também a namorada no Algarve saudosa de mim. E eu ia partir dentro de dias. Mas éramos só nos no momento. Nós e o mar. Nós e o taxista bêbado que apareceu vindo não sei de onde. Num repente senti-me agarrado pelas costas na camisola. Tu deste um salto. Perdeste os óculos. Ficaste aflita. Ainda nos rimos depois com o sucedido.
O taxista era um daqueles homens rudes, oriundo de Vila Verde, li na porta do táxi depois quando fomos para o meu carro. O carro do pai emprestado. Tinha vindo com a família. A mulher, senhora vestida de preto, pesada, fúnebre, e três filhos. Dois rapazitos que se entretinham a atirar pedras às gaivotas e uma filha maiorzita, aí uns treze anos, nem sei. Não tínhamos dado por eles porque estavam numa duna, mas ele deu por nós. Pela nossa felicidade. Pelo amor proibido que estava a acontecer no momento exacto em que a maré subia. Os seixos rolavam na praia com um som abafado. O sol a rir de nós. Da nossa figura na praia deserta nesse domingo quente de primavera. Ele deu, e veio por ali abaixo trazendo na barriga um garrafão de vinho a destilar frustração e má disposição. Era um triste coitado hoje sei. Com ciúmes do amor que viu em nós e nunca teve de certeza. Fomos a maneira que arranjou de terminar o dia aborrecido na praia. Agarrou-me pelas costas, eu dei um salto e dum golpe libertei-me. Era militar na altura, preparado para tudo, no esplendor da robustez. Tinha ganho um louvor por aptidão física. Não me metia medo, mas senti pena, e tu pediste-me para o deixar em paz, porque me apeteceu enfiar-lhe dois murros na cara à frente dos filhos. Mas não o fiz, já era demasiado humilhante a sua figura de bêbado perante eles. Temos tantos pais assim ainda hoje… Parou a barafustar que não tínhamos vergonha de estarmos assim na praia. Que tinha filhos pequenos e estavam a ver. Chamei-lhe a atenção que não estávamos a fazer rigorosamente nada de reprovável, que ele é que era um mau exemplo, bêbado a fazer uma triste figura perante os filhos. Olhou estupefacto para mim, um olhar esgazeado, virou costas e foi pelo mesmo caminho, entretanto tu já ias longe em direcção ao carro, chamei por ti.: – Margarida! -Espera! - Não se passou nada!
Paraste à minha espera, as sandálias na mão, os óculos tortos na cara, nem te apercebeste. O rosto afogueado, toda tu tremias. Nervosa aflita. Abracei-te. Encostei-te a cabeça ao meu peito durante uns momentos, disse-te ao ouvido: - Sossega, não se passou nada. Foi uma coisa sem importância. Ainda nos vamos rir. Fiz-te uma festa nos cabelos. Perdi os meus dedos nos teus caracóis. Estremeceste, sentia o teu peito a arfar. Os seios duros contra mim. Ambos sabíamos que nos desejávamos. Ambos nos queríamos. Um amor verdadeiro. Sólido. Construído na confiança. Éramos verdadeiros amigos, tínhamos a plena consciência disso. E então fez-se luz em nós. Tinha sido um sinal. Um aviso o que tinha acontecido. Falamos disso lembras? Não podíamos ser um do outro. Estava escrito no destino. Tinha sido ele, o destino, que colocou aquele homem ali, naquela hora exacta, em que os nossos lábios se juntaram e nos amamos com o olhar, nos fechamos um no outro e fomos unos. E não podíamos ser. Eu não era teu e tu não eras minha. Os nossos caminhos cruzaram-se ali por breves instantes naquela praia de Rio de Moinhos.
Voltamos para casa cúmplices, ambos sabíamos que não tínhamos cometido um pecado sem remédio, éramos demasiado puros. Ainda nos rimos da figura do homem vindo do nada. Da aflição da esposa. O olhar reprovador da filha. Os filhos que nem deram por nada.
Levei-te a casa, fomos devagar em silêncio. Aos domingos a Nacional 13 é um martírio para se conduzir. Não nos importamos. Estávamos demasiado suspensos em nós, como uma imensa concha quase a fechar. Espécie de ostras que guardam em si o segredo na forma de pérola. Os nossos beijos breves foram pérolas. Pérolas negras, raras, puras, inatingíveis. Pousei a minha mão na tua perna, encostaste a cabeça no meu ombro, não dissemos nada até tua casa. Não precisamos de dizer palavras. Os olhos diziam tudo e escutávamos o coração. Na altura, demasiado sensíveis. Alertas. Qualquer movimento, qualquer ruído ampliava-se em nós. O coração rugia em explosões sentidas. O sangue corria quente, desabrido. Tremiamos por dentro e não era de frio com certeza.
Despedi-me de ti com um beijo na face, fiz-te uma festa no cabelo, e parti. Até hoje não sei de ti. Sei que vives perto. Um dia quem sabe ganho a coragem suficiente e vou visitar-te, vou em tua demanda. Não deve ser difícil encontrar-te porque hoje sem que eu veja uma explicação para o facto, voltei à nossa praia onde tudo começou. Onde tudo acabou para nós. E sei que assim deveria ter acontecido e aconteceu.
E hoje voltei a esta praia. A mesma praia mas sem o grande areal, comido pelo mar que avança lentamente a vingar-se de nós. A apagar o sítio onde me sentei contigo. A apagar tudo o que existiu e foi puro. A apagar o tempo. Mas o tempo é aquilo que queiramos que seja. E hoje o tempo foste tu e mais eu na mesma praia.
O mar continua esverdeado quente. A água transparente. A areia fina. As ondas de espuma desfazem-se na linha de maré. Os seixos continuam a marulhar, um ruído abafado e grave de pedras a rolar como naquele dia. Só tu não estavas. Mas não fez mal. Sei que não podias estar, que não devias estar. Que fomos um dia duas linhas paralelas que se cruzaram numa praia por breves instantes. Uns instantes bonitos. Acredito que nesse dia o sol demorou a adormecer. Eu demorei a adormecer. Sentia os teus lábios a queimarem os meus, nem sei de que grau era a queimadura. Primeiro, segundo, terceiro? Não sei. Um grau desconhecido e bom. Guardei-te comigo e hoje o que pensava estar perdido voltou. A minha amizade a ti. A mesma ternura como vinte e tal anos atrás. Só tu não estavas. Mas sei perfeitamente que isso não é possível, e verdadeiramente não é preciso. Precisa foi a recordação tua. Grande. Bonita. Plena. Uma amizade que perdura por dentro, pura, das verdadeiras.
Foste a primeira Margarida na minha vida, e hoje é um dia de verão. Mergulhei na água da nossa praia. Tu andavas por lá reflectida. O brilho do sol nas ondas. Falavas comigo. Escutava-te no rolar dos seixos. O mesmo som abafado e grave. Dei uma gargalhada grande, profunda, como à muito o não fazia. Nadei para o largo em braçadas possantes. Ainda sou um bom nadador. Regressei cansado com o aroma do mar em mim, o sal na boca. A impressão dos teus lábios nos meus. Voltei a sorrir e fui feliz
Despedi-me. O carro sabe o caminho de casa, deixei-me levar.
Adeus Margarida. Até sempre.

João marinheiro ausente
Praia de Rio de Moinhos, Setembro 2006
Fotografia Google

6 comentários:

tb disse...

Há recordações que nos lavam a alma...e nos acariciam por dentro descobrindo a felicidade que teima em adormecer.
Não tenho palavras para te descrever o que senti ao ler este teu lindo quadro!...
Beijo

APC disse...

Caríssimo,
Sabes que eu primeiro injecto-me com uma vacina especial e só depois é que leio as tuas pérolas? Ah, pois... Se assim não fosse, era certinho que entrava para o top das que se encantam por ti inevitável, louca e irremediavelmente! ;-)

PS - E eu cá tenho um trabalho para fazer, né? Não dava jeito nenhum! Lolololol ;-))))

PPS - Quando estiver mais "leve" ainda o vou reler. Isto merece muito mais tempo e alma do que lhe dediquei. Vim deixar-te um abraço! :-)

Su disse...

li. reli.
excelente este teu texto onde transmites todo o teu sentir
valeu a pena estar aqui...quieta, lendo...relendo....
jocas maradas de palavras

Isa e Luis disse...

Numa apreciação subjectiva é quase um poema de saudade.
Objectivamente poderia fazer dois ou três reparos, mas, como não nos conhecemos, correria o risco de ser mal interpretado.
Concluindo: gostei muito.
Um abraço
Luis

Sónia disse...

Já não me recordo de algum dia me ter perdido assim nas palavras de alguém...Parabéns por essa capacidade de amor e de fazeres das lembranças o sonho e a força da vida.

Ludmila disse...

Há sempre estórias de saudades.. De amores perdidos em vagas do mar... Em marés...

Gostei.. perdi-me no sentimento quente... Num abraço dado com palavras... Numa memória que se cruza com a minha.

Bj