
Às vezes escrevo cartas.
Gosto de escrever cartas sentidas e imaginar o efeito das palavras nas pessoas a quem são dirigidas. Na maioria não obtenho respostas, não sei o efeito, acho que o destinatário é um ser imaginado por mim. Por vezes brincamos com as palavras sem medir as consequências. Esquecemos que existem pessoas que estão do outro lado das palavras …
Mas escrevo cartas. Acho que vou sempre continuar a escrever cartas. Umas de amor outras de desamor outras de despedida, outras desesperadas de saudade.
Esta é uma carta ridícula a esta altura em que me sinto ridículo a escrever outra carta que eu não queria ridícula mas de saudade. Uma carta de saudade ridícula.
Esta é uma espécie de carta de amor. Breve.Vazia. Sem amor nenhum. Só saudade em cada letra. Saudade em cada palavra. Saudade em cada linha e em cada folha cheia de palavras a disfarçarem o amor, a tornearem a saudade, a fintarem o tempo. Esta é, afirmo, uma carta ridícula. Vazia de amor. Do nosso amor. Que posso fazer mais, além de não te deixar morrer por dentro, seco da sede de ti. Custava dares-me a mão e guiares-me nas noites frias ciclónicas, que enfrento em cada noite que te sonho e desejo. É que eu já não sei o que mais faça. Se desisto. Se me abandono. Se fecho os olhos definitivamente e deixe que as lágrimas brilhem exaustas da saudade.
Esta é mais uma carta, mais uma só a juntar a tantas outras que colecciono, uma colecção de saudades, de sentires angustiantes, de mortes. Morro em cada palavra que te escrevo vestida do negro da ausência.
Que me fizeste?
E eu que me parece, partiste ontem.

Peço-te um momento e ele é um momento do mundo sem tempo. Ficam as palavras de novo. Sempre as palavras. As palavras são assim espécies de rosas coroadas de espinhos em nós.
Hoje não me recomendo para companhia. Persegue-me a saudade como uma nuvem negra, espécie de bicho papão que me assusta.
Estou desesperado. Olho o telefone não sei quantas vezes ao dia na espera de noticias que já não chegam.
Liguei-te e atendeu o gravador frio a falar inglês. E eu fiquei mudo, parado, estático. Quantos anos se passaram.
E eu que me parece, partiste ontem…

Parti também. Fui atravessar o mar…
A última viagem foi difícil e longa.
Estremeço. Sinto o estremecimento do navio, e aqui no meio do oceano neste dia de fúrias e ventos e angustias e medo, é em ti que penso e no último acto antes de embarcar. Tenho mais medo do gesto simples de te ligar que enfrentar esta tempestade monstruosa que me quer engolir junto com o navio cansado. Fecho os olhos em cada investida. Sob os meus pés todo o navio estremece quando as vagas medonhas se abatem sobre nós. A máquina principal trabalha certa, alheia à fúria do mar. Gira precisa, e o navio avança por entre gritos, estilhaços de espuma, silvos do vento e muitos medos. Os nossos medos recolhidos que estão no corpo cansado. Na ponte atento, olho a agulha, os imensos mostradores, as coloridas luzes que piscam. O ecrã do radar descortinando o imenso vazio sem um eco, só o ruído do tempo. Aqui, longe de tudo de todos, os medos que sinto em terra, quando me perco pelas ruas do Porto em tua busca, imaginando que na próxima esquina te vou encontrar. Aqui despido das emoções e das ternuras, sou frio como o aço do casco e tento ser um só com o navio cansado e com a máquina/coração que nos leva singrando por entre a fúria. Tu não sabes da beleza que é o mar assim furioso. Não tenho palavras para te escrever disso, é preciso sentir entendes. Sentir na pele e no olhar este mar. Beber o sal, ficar ensalitrado até aos ossos. Os pulmões inebriados de maresias. Sou um lobo-do-mar solitário já. Só tu és plena na companhia que me fazes na memória. Por isso enquanto o navio avança te escrevo esta espécie de carta, confissão, desabafo para vencer o medo. Para te sentir próxima. Não te conto as novidades por não existirem e não te interessarem. Não pergunto por ti, por não obter resposta. Não sei de ti porque já partiste e não vou em tua demanda. Espero só que regresses, porque quando regressares eu estarei cá para te receber de braços abertos e o coração pleno do amor que juramos um dia.
João marinheiro 2007
Fotos de Geno