sexta-feira, janeiro 19, 2007

Existem mistérios que para o serem não podem ser revelados...


...Calculo te tenhas dado conta que existem mistérios que por serem mistérios não devem ser desvendados. Lembraste o que me disseste! Lembras? Merecia isso, eu?
Acho que não. Acho que verdadeiramente nunca te apercebeste da dimensão do estrago que fizeste em mim. Da dimensão do rasgo na pele. A ferida profunda. A cicatriz invisível. Mas não tivemos o tempo para que pudéssemos olhar. Estávamos demasiado frenéticos, éramos demasiado jovens. Demasiado ousados?
Dás-te conta hoje do que poderíamos ter sido e nunca fomos. Merecia-mos os dois?
Não sei. Tudo me parece uma história que chega na noite meio perdida. Nada está certo só eu me sinto inquieto. O chão afunda-se na alma. O tempo não cura ainda. Sinto o sabor a mar salgado na boca. A sede abrasa. Nunca vou sentir de novo a tua pele. Trocamos todas as palavras. Só a noite me acalma. Só o escuro me trás o medo. Só na noite fecho os olhos e tu vens de mansinho. És uma espécie de sopro que sinto junto ao ouvido. Se eu fosse a tua pele sabia como eras porque era eu na tua pele. Assim nunca sei, e o medo instala-se devagar lá fora e cá dentro.
Mereço isto?
O silêncio na rua hoje…
Não escuto o mar faz tempo. Sinto-me meio zonzo de ti. Sinto-me meio zonzo sem ti. Sinto-me cheio de ti. Mas estou esvaziado de ti.
Merecia tudo o que me fizeste. Sim porque o fizeste. É porque o merecia de ti. Vindo de ti. Planeado por ti. Executado por ti
Ainda me disseste, como que a justificares o acto, que tinhas pena dele, que tinha partido o braço, que precisava de companhia que não podia ficar só.
Lembraste do que eu dizia nas cartas que te escrevia semanalmente. Lembras?
Não lembras. Não lembraste. Porque te irias lembrar quase trinta anos depois. E com toda a certeza esta carta que te escrevo é uma espécie de mistério, nunca a vais ler portanto não vai ser desvendado.
Lembraste do que eu te escrevia?
Então e eu?
E os meus trinta meses de hospital! Lembras de eu escrever a dizer que já não aguentava mais. Que me sentia perdido. Que estava no limite da resistência.
Lembras?
Claro que não lembras. Nunca me escreveste a dar noticias das minhas cartas a ti. Acho ainda hoje que me enganei no endereço. Que as cartas nunca chegaram a ti. Só pode ter acontecido isso. Aguardo ainda hoje uma carta tua. Uma espécie de carta armadilhada. Uma espécie de carta fantasma. Uma espécie de carta sem carta, só envelope vazio de noticias tuas. Um envelope grande, moderno, em correio verde. Verde. - Ouviste! Verde! Porque é a cor da esperança. E eu tenho, em que se desvende o mistério, e ao abrir, tenha pelo menos uma linha tua escrita a dizer: - ESQUECE-ME!
Tu não sabes, e eu também nunca mais tive a oportunidade de te dizer, que é isso que tenho tentado fazer estes anos todos, porque sou um sobrevivente. Sabes. Não morri na tropa. Embora os trinta meses de hospital me incomodem no dia a dia. Embora as armas me incomodem no dia a dia. E as guerras me incomodem também no dia a dia. Não morri na tropa. Morri só em ti o que é verdadeiramente mais doloroso e perpétuo.
E nós! Que foi feito de nós? Porque planeaste tudo? Porque executaste tudo? Porque fizeste quase tudo para nos ferir aos dois? Não sei das tuas feridas. Sei das minhas cicatrizes que escondo como um arrependimento. - Amava-te, sabias disso? Acho que nunca te deste conta do meu amor por ti, porque me demorava nas vindas, porque me demorava nas partidas, porque ainda hoje me custam as partidas mas as aceito como uma consequência dos dias e do tempo. Não tenho já tempo, eu sei.
Porque teve tudo de ser assim. O nosso projecto comum espalhado como as tuas roupas no quarto dele. Podia ser aqui, ou ali, ou noutro lado qualquer que eu tenha visto as tuas roupas espalhadas, mas não daquela maneira, não estava preparado para a tua traição planeada. Porque me disseste que ias ficar no Porto a trabalho. Participar num congresso de professores? Afinal não foste e eu para crer tive de te ir buscar. Achas bem? Teria de ter um braço partido também eu? Tu não sabes o que a tropa faz a um homem. Tu não sabes o que é ser um número mecanográfico, só. Tu não sabes que ao passar a porta da portaria, a fronteira, passamos a potenciais assassinos com arma e tudo. Tu não sabes das coisas da guerra. Da minha guerra dentro da guerra. Abandonaste-me. Dás-te conta!
Deixa. Já não é importante que saibas que me abandonaste. Que eu tenha ficado meio moribundo. Perdido na cidade grande e estranha para mim. Sou um sobrevivente ainda. Fui para o mar...
Tu não sabes que embarquei num dos velhos navios à vela e que parti para onde o vento e a vontade do mar me levaram. Tu não sabes que em cada porto, sempre que pisava terra procurava esquecer-te no corpo de uma qualquer que engatava num bar. Que às vezes de tão bêbadas nem lhes sabia a cor dos olhos. Que só lhes queria sentir a pele, que só lhes queria sentir os cabelos nas minhas mãos vazias. Que só lhes buscava um consolo para a minha e a tua ausência. Tu não sabes. Nunca substituíram a tua ausência. Porque tu és como és, única e imperfeita, mas eu amava-te naquela altura. Dava a vida por ti. Entregaste a tua a outro porque tinha o braço partido, e indefeso tinhas de dormir com ele para o proteger. Cheio de sorte o tipo. Aconteceu o tal milagre misterioso. A revelação do amor para os dois? E eu porque só te amava a ti demorei a reconstruir-me por dentro. Os estragos foram violentos, uma espécie de granada de fragmentação com demasiados estragos invisíveis a olho nu.
(Gostava de te ver nua. Mas isso é outra parta da história…)
Lembras de telefonares a dizer que não vinhas no fim-de-semana ter comigo ao hospital? Claro que lembras. Eu lembro que não chegaste. Que o fim-de-semana era demasiado longo, que estava calor, que via o Tejo da varanda da enfermaria no quinto andar. Que andava louco. Perdido. Que me sentia sem rumo, desnorteado. Que estava reduzido a um numero, a uma cama de hospital, nº28 de má memória. Tantas vezes me lembrei de voar, de me libertar, de saltar para a liberdade cinco andares abaixo. Mas tinha-te a ti, e a tua presença por dentro de mim faziam ressurgir as forças nem eu sei de onde. O corpo humano é fantástico. Tu eras fantástica na altura. Mais tarde descobri que era um engano. Afinal eras vulgar, uma mulher igual a tantas mulheres na plenitude da juventude, com desejos que nunca me confessaste, com sonhos que nunca me partilhaste. Pensava que te conhecia, mas não. O melhor de ti estava fechado para mim. Já não me importo. Escrevo-te hoje nem sei porquê. Deve ser do tal mistério que falo no início da minha carta. Mas as saudades tuas eram muitas. Já naquela altura sentia saudades. Ainda não sei muito bem lidar com este sentimento saudade em mim, mas aprendo lentamente. Também aprendo a lidar com a falta de respostas às cartas que ainda hoje escrevo às vezes. Mas também esta é já outra história. Tenho tantas histórias dás-te conta? Não dás e eu volto ao fim de semana final. Tu não vinhas mas fui eu ter contigo e afinal não estavas na tua casa mas na dele. Não me perguntes como soube, mas existem mistérios que deixam de o ser se são revelados. Este fica comigo. Como ficaram todas as palavras que não te disse e muitas outras coisas, outros sentires, outras emoções. Guardei tudo para atirar ao mar. Tenho estado a lançar aos poucos e em cada vez que me liberto deles, liberto-me do peso que carrego faz tanto tempo. Esta mágoa interior que me faz fechado em mim. Espécie de ilha como a minha ilha das memórias antigas…
Tu és a memória antiga dos verdes anos da juventude. Contigo aprendi o amor. Contigo aprendi a sedução. Contigo aprendi o prazer. Contigo aprendi o bom da vida e o outro lado. Contigo. Sempre contigo até não ter mais espaço em ti e cair desamparado na cidade grande. Lisboa já naquele tempo era uma cidade mágica, eu é que não o sabia, porque a magia começava e terminava em ti. Tu eras eu, e isso me bastava. Afinal não eras. Eras só tu e um bocado do outro. Um lugar na cama ao seu lado porque tinhas pena e ele tinha o braço partido. Eu já não tenho pena. Nem por mim nem por ti. Nem pelo que poderíamos ter sido e não fomos porque nunca quisemos ser. Porque estávamos demasiado ocupados a viver na altura. Viver intensamente. Esqueceste que eu só vivia contigo ao meu lado, fora de ti sobrevivia. Sabes, mas nem tudo foi mau, aprendi a defender-me. As técnicas da sobrevivência. Os disfarces. As máscaras. Espécie de espião transformista em poeta que não sou. E hoje chego aqui a esta folha onde registo os pensamentos. Dou-me conta que não consigo recordar as linhas do teu rosto, acho só que se te visse na rua te reconheceria, mas provavelmente isso não vai acontecer por não saberes qual é a minha rua e eu já há muito esqueci a tua. Fica tudo como está.
Existem mistérios que para serem mistérios tem de ficar tal como se encontram, tu entendes o que te digo.
Entendes ou não?
E existem palavras também

…” Todas as vozes que eu queria importantes
Partem da minha vida
E fica este silêncio esta saudade
Que renego todos os dias
Sinto-me exilado em mim…”

João marinheiro ausente 2007
Fotografia Hugo/www.olhares .com

13 comentários:

APC disse...

Já na ausência são as palavras a única presença, e essas já só falam do silêncio. E, no entanto, elas contam a história, fazem a memória, gritam por ti. LINDO!

Anónimo disse...

Ai João.. nem sei que te diga! As cartas.. as cartas.. lembras-me como elas podem guardar palavras e sentimentos tão fortes!

Anónimo disse...

Na escrita está o nosso desabafo...que ela sirva para nos libertar dos fantasmas do passado...o presente tem pessoas reais que nos poderão ajudar a viver um lindo futuro!! Enterre o passado, viva o presente e sonhe com o amanhecer...livre de qualquer idade!
Sorria...

Anónimo disse...

...e que cavam fossos em nós...

Maria disse...

Com tanta dor, não sei que te dizer.
As minhas vozes também já partiram da minha vida...
Um abraço

Anónimo disse...

Voce consegue transmitir a dor nas tuas palavras....temos que esquecer do passado para poder dar um novo recomeço a nossa vida, assim teremos um futuro com alegrias....quando o futuro vira passado fica facil ver o que deveria ser feito......agora bola pra frente siga seu caminho na paz, sempre....a esperança nunca nos abandonarás
beijos e fica com Deus, c cuida

Anónimo disse...

Tu e ela: essa troca de correspondência é dolorosa. Ela não te devia ter deixado dessa forma. Depois desse amor tão intenso, a ausência dela faz-se sentir de forma penosa. Apesar de não seres livre, o amor é assim. Que texto terrível. Que dor. Ela não te merece. Uma mulher apaixonada de passagem.

Anónimo disse...

História ou estória..., que importa! Fica aqui lágrimas minhas, incasávelmente meus olhos leram e releram um texto escrito por um coração cansado...Mas
Você mesmo disse... -Isto é um jogo!Tu não não existes!
um abraço João Poeta

Anónimo disse...

______________________________...







...que dor João.

..._______________________________




...sentir-te assim.
abraço-te

Ana Luar disse...

Dizer que gostei seria pouco... Fabuloso, marujo!:)

abracinho amigo

A. disse...

infelizmente.um mistério.
:/



...mas estou aqui João.
quis avisar.





...um refazer do que
foi desfeito.


beijos.

joão marinheiro disse...

Querida A, ainda bem que estás. Que pelo menos tu não partes sem uma palavra, não gosto de despedidas mas...
Procurei-te e fiquei aqui no meu canto deambulando na esperança do milagre das notícias que chegaram. Tuas.
Ainda bem que não partes. Obrigado por vires.
Abraço deste lado do mar frio, e das montanhas com neve ao longe.

Su disse...

gostei de ler.te--------sempre

jocas maradas