domingo, novembro 05, 2006


…Só a memória enriquece e alimenta. Não há pedra que mais sangre nem asa que mais nos liberte. Talvez por isso os saberes da memória respirem um tempo e um espaço muito próprios. A morte que tudo transfigura pratica as artes supremas da imprevisibilidade. E, nesta imprevidência se compraz, irremediavelmente, a nossa condição humana…

Manuel Lopes. Amigo que já partiu. Prefácio do livro: O barco Poveiro de Octávio Lixa Filgueiras

Às vezes tenho que parar. Fazer uma espécie de limpeza no disco. Arrumar o sótão das ideias. Arrumar os sentires. Dar uma forma ao sentimento que se torne mais fácil. Ás vezes sinto-me tentado a partilhar as aflições que sinto. As duas ultimas fotos nestas memórias são o testemunho disso mesmo. Mas sei que não visitam este blog para verem desgraças ou lerem lamentos destes…Quem se interessa por um monte de tábuas que um dia foi barco com homens dentro e historias de vida sofridas. Quem?
Quem se interessa por este país pequenino que foi de marinheiros audazes. Admirado e respeitado lá fora. Situação que eu nas minhas viagens a congressos de património marítimo ou encontros de embarcações tradicionais, escuto falarem com admiração e respeito, porque na realidade tivemos uma história que fez historia no mundo do mar.
E agora?
Quem se interessa pelos barcos de trabalho, as antigas embarcações tradicionais que desapareceram quase todas, mercê da ignorância dos legisladores e do encolher de ombros dos cidadãos. Aquilo que os olhos não vêem o coração não sente…

...A política de redução da frota pesqueira por parte da CE, incentivou o abate indiscriminado de embarcações. Conhecida como “lei do abate,” a troco de uma recompensa monetária ao proprietário da embarcação, sem salvaguardar as embarcações de trabalho com interesse histórico e tradicional

A partir de 1986, para Portugal ingressar como membro da Comunidade Económica Europeia de pleno direito, foi-lhe estipulado um prazo de 10 anos para a reconversão da frota pesqueira, a alfabetização dos inscritos marítimos e a sua reconversão através da formação profissional, intenções reforçadas com o abate das unidades de pesca de pequena dimensão (todas as menores de 25 toneladas de TAB[1]. entre os 7 e os 12 metros).

Em 1996 o quadro do sector pesqueiro era assustador: o número de embarcações tinha sido reduzido a menos de metade, Portugal foi o país europeu que mais embarcações abateu à frota de pesca, Atrás vinham a extinção das fábricas de conserva, redes, fundições, serralharias marítimas, fábricas de plásticos para a pesca e outros aprestos navais.

...A montante e a jusante do barco coabitam uma infinidade de artes e ofícios que se interligam e se completam e que se extinguem pura e simplesmente com a extinção do próprio barco....

Ficam-nos por vezes as fotos. O testemunho mudo e possível da inculta cultura ou do desmazelo ou em última análise do deixar andar…

[1] TAB tonelagem de arqueação bruta

Fotografia de Dionisio Leitão 2006

12 comentários:

Anónimo disse...

Eu interesso-me, como sabes.
Um momento bom que aqui deixas para connosco partilhar e que te agradeço essa partilha.
Beijo enquanto vamos partilhando

APC disse...

É um ser, é um ente, é uma história, que podia ser cultivada viva, cada barco.
É uma perda, é um aperto, é uma zanga, que tanto sentes e tão bem transportas por palavras para nós.
Que te dar em troca?
Hoje, a companhia que verás amanhã.
"Amanhã", outro sorriso que prometo hoje.
Até lá... É bom saber-te assim! :-)

mfc disse...

Conheci muito bem o Manuel Lopes... eramos quase vizinhos.
Uma figura Poveira... que deixou a Póvoa mais pobre com a sua partida.

A política de abate de embarcações éincompreensível!

Anónimo disse...

Bonita homenagem. Tanto me arrepiam as tuas cartas de Amor como a tua humanidade bem patente neste tributo aos marinheiros que fizeram de Portugal o porto do mundo. Agora já não, tens razão. Hajam as memórias. Conservemos as memórias para que não sejam esquecidos.



a nação que hoje poderiamos ser ... pensas nisso?
beijo com ternura

Maria disse...

Uma fotografia lindíssima!
Um texto tocante!
Obrigada

Menina Marota disse...

Um grito que eu senti bem fundo no meu coração.

Porque, quando tanta gente se preocupa em apagar as memórias vividas e reais de tantos Portugueses, é reconfortante saber que existe quem veja para lá de discursos banais e atitudes de prepotência.

Respeitar o passado, é conquistar o futuro, que não deve esquecer quais as suas raízes...


Grata por o lembrares.

Um abraço

rtp disse...

Quem não se interessar, com este texto passa a interessar-se!

Anónimo disse...

quem se interessa? muita gente, tenho a certeza. E sabem que não sao apenas pedaços de madeira, sao pedaços com História. E é essa história, para mim desconhecida (infelizmente) que gosto de vir aqui ler. Cultura e saber precisam-se!

a propósito, a introdução é belissima.

beijos para ti João sempre presente

Mikas disse...

As palavras iniciais são lindas e a tua "homenagem" também, será que foi este o melhor caminho para a "globalização"? Perdeu-se tanto de bom e tão pouco melhor se reconstruiu!

APC disse...

A imprevisibilidade da morte a condicionar-nos a vida, e a memória a condenar-nos a um sofrimento que procuramos pelo prazer de nos libertar de um sofrimento que enfrentamos.
Cíclico... Como tudo!
Não havemos nós de ficar tontos!
Um abraço! :-)

Anónimo disse...

Houve um ano em que as andorinhas
se esqueceram de partir.
Comovidos os deuses, adiaram o começo do inverno.
Nesse ano, uma mulher e um homem
se fundiram em barco feito vento
e partiram sem rumo e sem dar notícias:
como se fora de cinza o nome que usaram.
Agora, nenhum horário retarda o êxodo
das últimas andorinhas em direcção ao sol.

Diz-me, meu amor, onde se cruza
a tua sombra com a minha.
Diz-me em que crónica de espanto
te tornaste o marinheiro
que debandou de encontro
ao deslumbramento das manhãs.

Graça Pires

Páginas Soltas disse...

É o primeiro contacto que tenho com este " espaço"....e sinceramete adorei!

Volateri com mais tempo...para saborear tudo!!

Uma óptima semana que se avizinha..

Maria