quinta-feira, julho 12, 2007

Os últimos dias…





Os últimos dias passei-os a navegar. Já não é a mesma coisa. Arranjei outro barco. Inevitavelmente tinha de arranjar outro que o nosso ficou na última viagem que fizemos os dois.
Lentamente regresso ao mar, ao nosso mar de amores, ao mar onde posso deixar correr as lágrimas no rosto cansado. Ao mar onde me perco na saudade. Ao mar onde me sinto perdido sem ti. E depois regresso lentamente. Muito lentamente a curar as feridas que ardem salgadas. Sinto-me perdido e esgotado. Esgotado da vida já.

Os últimos dias, passei-os a navegar. A sentir o vento na vela. Em manobras. A sentir-te em cada bordo, cada virada rápida, cada caçar a escota, cada afinar a inrrasa. É um barco pequenino este. É que tua memória cada vez é menos. Assim como o barco é pequenino consigo ter-te mais próxima de mim. Consigo ver-te sentada no banco do meio da pequena catraia enquanto ela navega. Consigo olhar-te. Consigo imaginar-te na minha frente à distância da minha mão. Consigo sentir-te os cabelos ao vento e o teu perfume no vento. Consigo sentir o brilho dos teus olhos como dois sois a cintilarem enormes. Tu sabes que os teus olhos me fascinam ainda. Às vezes dou por mim a olhar os olhos de uma estranha na rua a ver se brilham como os teus. Não brilham. Pareço um velho doido.


Este é um dia em que preciso falar-te para não enlouquecer.
Escrevo-te. Tu já não estás. Mas é como se estivesses guardada dentro de mim.
Dás-te conta da cidade vazia de ti. Dos caminhos que já não és. Só eu aqui fico a tentar enganar o tempo e o coração. A tentar abrir a porta de mim para deixar entrar o vento. Fui para o mar outra vez. Vencer o medo de te perder na memória agora. De ti só tenho a memória guardada em mim. Escrevo-te de memória. Todo este meu sentir é um sentir de memória. Memória virtual. Em tua memoria sempre. Cada vez mais funda, mais funda. Quase a não ser memória. Fico aflito se te perco de vez. No mar reencontro-te e reencontro a paz que preciso.



Hoje o tempo é tempo de ventos, de barcos, de velas e de memória tua. Sempre. Para sempre. O céu está mais azul. A agua mais cristalina. Aqui afastado a costa a perder de vista na linha do horizonte vejo-te a vires navegando até mim. Vens ao leme. Perfeita. Toda amor e memória. Passas por mim e eu aceno-te. Não dás por mim. Reconheço o barco. O nosso antigo veleiro, todo ele eras tu. O ar que respirava era teu. O chão que pisava era teu. Sempre que baldeava o convés eram as tuas canções que embalavam o tempo. As velas cheiravam a ti, às tuas mãos quando as recolhias no meio do temporal. O teu perfume entranhado nas madeiras no nosso beliche, nas roupas. Na almofada. A tua foto ficou lá. Ficou tudo teu lá.
Doía-me, entendes.
Doía-me demasiado a tua falta a bordo.
Todos os lugares eram teus. Não os podia ocupar de novo…
Hoje navego de encontro ao sol. Fecho os olhos e sinto-te no rosto a arder. Logo depois do anoitecer volto a terra lentamente. Pelo escuro da noite
Não quero que saibam que fui ao mar em tua busca…



João 2007
Fotos,Barcoantigo

12 comentários:

Anónimo disse...

Em ti vive uma grande história que desafia os mais simples princípios da compreensão humana. Tão somente guardada nos escombros, no meio de um odor a bafio, de um barco antigo.
E em tudo onde te leio, encontro o teu paladar subtil que se entranha no meu pensamento. Por mais que tentes ocultar a beleza, julgo descobrir quase sempre o nobre segredo que não ousas revelar.

É mais o Homem que se revela do que a mão que escreve, que me cativa. É mais o humano, do que o mestre que imortaliza palavras. É o teu transbordar cálido quando te libertas das correntes da matéria, simplesmente fluindo ao ritmo do navegar de um barco antigo.

Anónimo disse...

inda bem que não vais em minha busca..matavas-me com tanta saudade..
meu grande marinheiro,..feliz da tua amada\infeliz..o que nunca teve nada.
(tinha saudades de te ler, as tuas palavras escorrem-me por entre as pálpebras que te reconhecem entre milhares. és um gozo total e absoluto..inigualável meu querido.
mil beijos salgados desse mar que tanto te é.

Anónimo disse...

Poeta,

Como é bom reencontrá-lo nas memórias!

Tua viagem parece transparente ao ler-te apenas com olhos da imaginação!
- Quando tuas palavras encerram um sentimento pessoal e indivisível
Segregado apenas nas entranhas do conhecimento que é do teu próprio Ser
Contemplo-o apenas
Neste teu mar de vida e de palavras!
Um abraço

Catharina disse...

viajaste.. viaja.

tb disse...

Mas eu cá sei mas não conto a ninguém... :)
Sempre bom ler-te, velho marinheiro que governas esse mar num barco antigo.
beijo daqui

A. disse...

http://ask-im.blogspot.com/2007/03/fecho-os-olhos.html







...mais azul.para sempre.

APC disse...

É isso mesmo, é isto tudo, és tu, nesse tentar "vencer o medo de te perder na memória"...
E que bela memória, traduzida em tão amantes descrições:

Reconheço o barco. O nosso antigo veleiro, todo ele eras tu. O ar que respirava era teu. O chão que pisava era teu. Sempre que baldeava o convés eram as tuas canções que embalavam o tempo. As velas cheiravam a ti, às tuas mãos quando as recolhias no meio do temporal.

Belo! Sentidamente belo!...

Olha...
Deixo um abraço de embalar, com o carinho que tu sabes.

PS - "A sentir-te em cada bordo, cada virada rápida"???... Uh, sexyyyy! ;-)))

Ana Luar disse...

Tu não queres que saibam... E eu, prometo não lhes dizer nada!

Deixo-te nesse mar de sentires....

Fica um beijo de aromas... k deixo à tua escolha.

Mikas disse...

Um beijo para um doce marinheiro, até eu navego nas tuas palavras, sem rumo mas feliz

Bruna Pereira Ferreira disse...

No mar é fácil guardar segredos.
Qualquer barulho é mais pequenino que uma onda a rebentar.
O silêncio é zul. Mas não existe...

:)

Anónimo disse...

Uma carta de saudade. Qd se começa a ter saudade da saudade que se teve um dia, ou se diz...
Como pode ela já estar tão pequena, se ainda vais ao mar em sua busca?

Gostei mt!

Maria disse...

Deixas-me sem palavras.....

Um abraço forte, João