domingo, novembro 18, 2007

Quarta carta…


Já voltei a casa, aos dias longos de esperas aqui, sentado no beiral junto da estrada em paralelo que te afastou de mim. Espero. Os dias ainda tem sol por dentro e humidade fria ao entardecer. As horas agora mudaram, são horas de Inverno, por dentro e por fora do corpo. Queria ler um livro e não tenho vontade. Vivo numa espécie de apatia, como um peixe num aquário redondo, sinto-me redondo, não sei se a palavra descreve o que sou no momento. Contemplo as mãos, os dedos defeituosos já, as cicatrizes, as unhas roídas, esse é um vício de infância. (Disseram-me um dia que isso foi falta de afecto na infância, não sei, tive todo o afecto do mundo e algumas separações, nada de anormal). As mãos tremem, ressentem-se da artrite que avança em silêncio como a noite, aqui na rua frente à minha porta. Lá dentro tenho uma sala pequena, com uma televisão em silêncio, e uma parede com fotos amareladas, e uma mesa em madeira preta, e quatro cadeiras, e uma jarra sem flores, as últimas morreram secas. Acho, já não tenho a certeza. Às vezes não tenho a certeza de nada, nem de mim próprio, se existo, se não sou uma criação literária como se diz agora. Tenho também um rádio, velho como o tempo, a válvulas, com um olho mágico verde, que ilumina a noite na sala, quando eu, cansado, aquecido do dia ao sol me deixo ficar ali. No velho sofá onde me lias um livro. Prostrado. Os olhos fechados à espera. Ultimamente estou sempre à espera de algo. Não sei precisar, espero só, de olhos fechados. A rua é uma rua em silêncio. Velha. Estreita e escura, com gatos e alguns cães vadios como os meus pensamentos. São os cães que vigiam na noite a rua que eu gosto, é a minha rua, pequena, escura, mal iluminada, sem nome. Tenho também na sala minúscula, a um canto da parede da frente, um relógio velho com um cuco que já morreu faz muito tempo. Só dá as horas certas, timbradas, espécie de trovões, pancadas na parede que me estremecem o sono e me despertam por momentos, os momentos lúcidos onde me dou conta que o tempo que tenho, ainda se torna mais curto de hora a hora certa. Lembro-me quase sempre de um poema do Pessoa que li um dia, quando a vista era uma vista plena, e não esta de sombras, a enganar-me, a confundir-me, a deixar-me desesperado. Estou a cegar aos poucos também. O medo que tenho é de não conseguir reconhecer-te, nem de olhar o teu olhar, e já não me perder no mar, todo, nos teus olhos. Tenho medo de navegar em ti, que o oceano nos teus olhos seja um oceano seco já.
Tenho medo. Volto ao poema do Pessoa, e já não sei dele, onde pára, em que sítio da minha cabeça o guardei. Dou-me conta que guardo as coisas e as emoções e as perco depois. O meu coração já não treme quando penso em ti, nem sinto frio nem calor, as minhas mãos já não suam, nem acelero o passo para mais depressa te encontrar. Dou-me conta que muitas coisas já não são como as imaginei, estes anos todos quando andava no mar a fazer pela vida. Dou-me conta que o mais importante era a minha vida contigo, e não foi, e agora já não tem remédio ou cura possível. E hoje que é mais um domingo estou aqui ao sol, calço as velhas meias de lã branca feitas à mão a aquecerem os pés, e as velhas alpergatas de pano, e a samarra puída nos cotovelos cinzenta, e aquela camisa de flanela ao xadrez castanha, e as calças de fazenda que me picavam quando eram novas, e agora já não porque como eu estão demasiado velhas. Ainda uso o mesmo relógio de dar corda todos os dias, só o mostrador amareleceu por dentro do sal do mar, e os números se tornaram ilegíveis, mas sei a posição dos ponteiros, e o tempo para mim já não tem o mesmo valor que tinha quando era novo, e andava ao mar a fazer pela vida, e o contava para chegar a ti o mais depressa possível. Cada minuto perdido era um minuto sem ti, e hoje já não conto minutos ou horas ou dias, porque os anos avançam sem mim.
Na madrugada, quase sempre, escuto a rádio e as noticias que me trazem o mundo à sala. A maioria dos dias durmo aqui. Ainda conservo o velho serviço de chá com duas chávenas e o bule. Já não tem asa perdeu-a uma noite, assim também já não pode voar, sem asas não voa. Também já não bebo chá. Eras tu que me trazias as saquitas bonitas perfumadas com as infusões para saborearmos na noite, às vezes vinhas no pleno do verão beber um chá pela madrugada e ler um livro, deixaste ficar um ou dois que guardo, ainda tem as folhas marcadas, ainda tem as frases bonitas sublinhadas, aquelas que sentíamos e relíamos, gostavas de me ler em voz alta, como que a representar, sempre achei que andavas no teatro, nunca me disseste se sim, se não, rias só, e os teus olhos cresciam, tornavam-se estrelas cintilantes quando de livro na mão me lias e rodopiavas sobre o tapete vermelho. Perdia-me sempre no teu olhar. Tu eras toda a graça da sala, o recheio, a mobília, a decoração, o perfume, a luz. Eu o espectador atento, rendido à beleza, ao amor. Só dele soube mais tarde. Demasiado tarde. Comecei a pedir-te que me lesses uma e outra vez cada passagem. Assim admirava-te no esplendor dos teus trinta anos. Tiravas o casaco comprido que te escondia e revelavas-te. Tu em contra luz, os seios redondos a quererem saltar da blusa, o corpo perfeito, escultura de artista, e eu afundado no sofá, e o rádio a cantar baixinho na madrugada, e o chá a dizer que arrefecia com um fiozinho de aroma no bico do bule, e as pequenas bolachas salpicadas de amêndoa e açúcar. Tudo era perfeito. Só eu não. Deixaste de aparecer. Começaste por espaçar as vindas, e depois eu também parti novamente para o outro lado do mundo no navio velho. Quando regressei não te encontrei, mas fui à tua procura. Ainda hoje te procuro. Ainda hoje. E ainda hoje me perco aqui no medo. Inevitavelmente dirijo-te a palavra, um monólogo de louco alucinado que é o que sou, no que me estou a tornar, um velho louco e alucinado em tua busca. Tenho urgentemente de procurar um refúgio. Um daqueles sítios onde se depositam os velhos pra morrer, uma espécie de lar, de casa de loucos sem esperança, onde nos drogam para dormir. Mas tenho medo. De ter pesadelos, de acordar a meio da noite e não saber de mim, de não encontrar a minha sala pequena, não escutar as badaladas do relógio na parede, de não escutar os gatos na janela, os cães na rua vigilantes, a rua não existir.
E depois tenho pavor que voltes e eu não esteja aqui em casa para te abrir a porta e te dar um abraço. É que podes voltar a qualquer momento. Espero. Sobretudo espero o momento. Às vezes também parto, mas são momentos breves de ida e vinda, quando vou, aproveito para te buscar pelas ruas, avenidas, pelas praias volto sempre de mãos vazias e um monte de sonhos guardados nos bolsos sem valor, só sentir.
Fui e voltei.Voltei, de ter ido falar das memórias. Memorias com barcos. Da alma dos barcos. Do amor pelos barcos. Eu disse-te que ia ao outro lado da península e que aproveitava para te encontrar na cidade grande, não estavas. Nesse tempo pensei que pudesses ter regressado a casa, a chave está no mesmo sítio debaixo do tapete que diz bem-vindo em letras gastas, estava no mesmo lugar exacto, tu não vieste, e eu agora fecho os olhos aqui na sala, são duas e tal da madrugada e já gastei o lápis e as folhas todas onde te escrevo esta espécie de carta, chamemos-lhe assim, uma carta, mais uma a ti. Mas não é uma carta, são palavras na noite a fazerem-me companhia para me sentir lúcido e conservar a memória dos dias. Só isso. Tudo o mais é invenção. Invenção a matar o tempo. O tempo que já não temos. Ficam-me no pensamento palavras, uma espécie de voos, com gaivotas e maresias e ventos que me embalam entoadas que recordo de Eugénio ...

As gaivotas. Vão e vêm. Entram pela pupila.
Devagar, também os barcos entram.
Por fim o mar
Não tardará a fadiga da alma
De tanto olhar, tanto olhar.

João 2007

Fotografia de Barcoantigo 2007

12 comentários:

Eme disse...

Que mais hei de te dizer...?
Pelo verbar das tuas cartas já sabes que estou apaixonada.
*

Som do Silêncio disse...

Bonito...

Maria disse...

Inventamos tanto para (nos) (re)vivermos....
... por enquanto ainda vale, assim, mesmo asssim...

Abraço-te

Andreia disse...

Que te dizer João? Que dóis sempre que leio estas cartas. Dóis-me, é isso mesmo. Dói-me a beleza das coisas tristes.

Um beijinho!

Suspiros disse...

"Não vivas de fotografias amarelecidas"
(Madre Teresa de Calcutá)
Beijinho

Anónimo disse...

Esperas?

Por que não telefonas?

...

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

tristes...mas belas na sua escrita...

isabel mendes ferreira disse...

não querendo interromper a "leitura" epistolar.....

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já estou de saída.


não sem antes deixar um beijo.

solidário.

Anónimo disse...

Alem duma lágrima, foi tambem uma unha roída (tb tenho unhas roídas)
Adorei este texto
Beijos mtsssss

Su disse...

gostei.......

jocas maradas

Aninhas disse...

Espero que o silêncio seja o início de novas descobertas literárias!
Beijo do exílio.

Bruna Pereira Ferreira disse...

As cartas são bocadinhos de alma em papel...
Que também voam.
Como gaivotas.

Em correio azul-mar.
Vou-me. :)