domingo, outubro 05, 2008

Do desencontro…




( livro de contos )


Resolvi ir em tua busca, o pai tardio que com surpresa descubro agora. Olhar-te de olhos nos olhos para tentar perceber tudo o que se passou. A carta da Mãe foi uma surpresa, um estardalhaço em mim, a revelação do seu segredo tão bem guardado.
Como se guarda um amor desta forma durante tantos anos sem que se perceba?
Morris sempre foi o meu pai, não conheci outro, nunca duvidei do seu amor, foi ele que me criou, mas agora depois da conversa com a mãe quero saber a verdade, quero ir ao fim da história. Quero saber quem foste. Que espécie de marinheiro foste tu na vida dela. E quero perceber porque o mar também me chamou a mim, esta ligação aflitiva que temos. Agora algumas coisas começam a fazer sentido. Esta procura do mar, a ânsia de navegar, sentir o vento e o sal no rosto e no corpo, o barulho abafado dos motores, o contacto com o aço frio e húmido dos cascos, de atravessar os oceanos sem parar. Não pensar em nada, só em levar o navio a bom porto e depois de atracar fechar os olhos e descansar enquanto se descarrega e carrega de novo e partir, reduzir o contacto com terra firme ao mínimo indispensável. E o nome. A mãe perpetuou a tua memoria dando-me o mesmo nome sem nunca fazer uma referencia a isso, só agora na carta que me escreveu, e que me fez deixar o emprego que tinha longe de tudo.
Sidnei é do outro lado do mundo. Imaginas onde fica a Austrália. Pedi uma licença sem vencimento por seis meses e vim para a Europa directo a Londres conversar com a mãe. Não sei pode ser impressão minha pode ser, mas acho-a diferente, mais aberta um, olhar mais vago, uma ruga nova na fronte uma voz mais saudosa. Não sei o que se passou com ela nestes últimos tempos, faz mais de um ano que não vinha à Europa, nem sei bem porquê, mas acho que eu também ando a fugir de mim próprio a desviar-me do coração a esquecer-me propositadamente.
Agora estou aqui na vila à beira mar onde a mãe me disse que o capitão Júlio vive, uma residência de idosos, o antigo palacete da vila estilo colonial. O facto é que já o conheço por fora, de todos os cantos. O facto é que já aqui ando a tentar ganhar coragem para transpor o portão vai fazer três semanas, o facto é que já fui a Lisboa e ao Porto às ruas onde eles moraram. O facto é que a casa do capitão está abandonada, a cair, envolta por silvas que ocuparam o pequeno jardim. O facto é que a mãe a descreveu com pormenor, bastou-me olhar para saber que era aquela a casa. Baixa, duas janelas, pintada de branco e azul, o azul ainda se notava e o branco era um amarelo esbatido e sujo agora. A mãe disse-me que abandonou a casa tinha vinte e um anos, cinquenta anos portanto. Meio século meu Deus, meio século de vida apagada, meio século de emoções amordaçadas. Que espécie de amor foi o deles, que espécie de homem é o capitão? Estou cheio de perguntas, cheio de interrogações.
Preciso de o olhar, de o ver para tentar perceber, tentar obter respostas a milhares de perguntas que me enchem a cabeça estes últimos dias. Caminho em direcção à entrada principal. Toco à campainha. É o tempo de resolver finalmente todas as perguntas. Todas as interrogações.

- Bom dia! Por favor, queria visitar o Sr. capitão Júlio, penso que ele vive cá, foi essa a indicação que me deram.

- O Ti Júlio? Ele não gosta que lhe chamassem capitão. Dizia que esse tempo do mar já tinha passado. Que já não era marinheiro.
- Que já não era?
– Sim. O Ti Júlio, era assim que o tratávamos aqui, faleceu fez agora três semanas. Uma manhã não desceu para o pequeno-almoço logo pelas sete da manhã. Ele era um madrugador, e muito bom conversador. Logo pela manhã nos riamos com as suas graças, sabe. Estranhamos, pensamos que estivesse doente. Fui eu que fui ao quarto dele para o acordar. Dormia. Parecia que dormia, olhos fechados, rosto sereno, um sorriso nos lábios. Não pensei que estivesse morto, mas estava, agarrei-lhe a mão para o acordar, estava gelada, fria. Apanhei um susto enorme, gostava tanto dele, era uma pessoa tão terna, tão serena. Aqui não nos devemos afeiçoar às pessoas, mas que lhe posso dizer, tem algumas que nos entram pela alma adentro.

Não sei o que me deu, o que senti neste momento enquanto olhava a senhora ali na minha frente a falar da morte como se estivesse a falar das compras no supermercado, algo se desmoronou por dentro ao receber assim a noticia fria, impessoal, de uma forma banal, como se a estivesse a ler num jornal qualquer, a folha da necrologia. Olhei a senhora de novo, imperturbável, conversadora, parecia que queria contar uma história.

- Sabe, deixou duas cartas. Uma com as ultimas vontades dirigida ao director aqui do Lar ao doutor Ernesto, outra para entregar a quem o viesse visitar. Acho que ele esperava uma visita.
Também deixou umas coisas, umas caixas com livros e mais o que escrevia. Está tudo guardado. Nós aqui no lar, cumprimos todas as suas ultimas vontades. O corpo do Ti Júlio foi cremado no cemitério do Alto de São João em Lisboa e depois as cinzas foram espalhadas no mar ao largo da foz do Tejo. Foi muito emotivo, muito triste, mas ao mesmo tempo, sabe, ele não tinha ninguém e fomos nós aqui do lar, não devíamos mas que quer, afeiçoamo-nos a ele, às suas histórias que nos contava, sentimos já tanto a sua falta. Só nós! - Sabe! Ninguém soube que ele morreu. Em três anos que aqui esteve nunca recebeu uma visita, um telefonema, só pouco tempo antes de morrer recebeu umas cartas que vieram da sua antiga morada.
- Sabe, eu também fui ao enterro do Ti Júlio, ao mar a levar as cinzas, levei também uma flor para lhe oferecer, um ultimo gesto de carinho, uma orquídea, eram as flores preferias dele, as que mais gostava, sabia muito de flores, às vezes estávamos a tarde toda a falar de flores, gostava de flores selvagens, dizia que eram como ele, com alma e indomáveis. Aprendi tanto com o Ti Júlio.
Depois, quando espalhamos as cinzas. Foi o senhor da funerária que fez isso, apareceram golfinhos e umas aves grandes a voar á roda do barco a gritarem, parecia que se estavam a despedir dele. Senti um arrepio no coração. Ficamos todos assim, apreensivos. Parecia uma coisa sobrenatural, mas acho que foi cisma minha, da emoção sabe, da tristeza. Ele era acima de tudo um senhor, um bom homem, daqueles que já não se encontram.

-E o senhor quem é? Algum familiar?

-Sim! - Também sou marinheiro. Chamo-me João Pedro. O capitão Júlio era meu Pai. Que nunca conheci, soube da sua existência faz seis meses, estava no Pacifico. A minha mãe resolveu escrever-me a contar a verdade. Quando acabei a viagem meti-me no avião, tirei ferias, fui a Londres conversar com ela, foi quando soube onde ele estava. Não tinha a certeza, também não consegui vir logo aqui, acho que me faltou a coragem, faz um mes que estou cá na vila na Estalagem do Cabo. Andei a colocar as ideias em ordem. Para mim o meu pai era o marido da minha mãe. Um professor inglês que faleceu fez três anos, foi difícil tudo isto, lidar com esta realidade e agora. E agora sinto um aperto tão grande, um arrependimento tão grande, porque não vim logo até aqui. Acho que cheguei tarde. Demasiado tarde para poder abraçar o meu pai.

À tempos estive aqui na praia à noite, na vinda estive a olhar o palacete do lado de fora, reparei num senhor à janela na ala Oeste, a virada para o mar, para a praia, não sei, senti qualquer coisa estranha, aquele homem ali, parecia que o conhecia, não sei, fui embora e não pensei mais nisso. Era a voz do sangue a chamar-me. Devia ser.



- Pode ser sim. O seu pai, o Ti Júlio habitava a ala oeste, sim o quarto dele era o único que tinha janela para a praia, foi a única exigência que fez para se instalar cá. Ainda esteve ano e meio à espera que as obras ficassem prontas. O quarto está fechado com tudo o que é dele lá. Foi uma das exigências também, ficar assim até alguém vir em sua procura, depois podia ser habitado por outra pessoa. Não sei, ele tem cinco anos adiantados pagos, portanto a habitação é dele. Não sei o que pensava, nos últimos tempos estava estranho depois de receber uma carta. Sabe, acho que desistiu de viver. Tinha problemas de artrite e o coração também não andava lá muito bem, acho que foi a falta de uma mulher ao seu lado. Demasiada solidão. Não sei que mais lhe dizer. (continua)



3 comentários:

AnaMar (pseudónimo) disse...

Aguardo ansiosa, a continuação...
Abraço

Sónia disse...

Envolvente...muito envolvente.Uma tristeza tão suave, quase um embalo no coração...

Sónia disse...

Ah, quase me esquecia: Um beijão grande e muito especial por hoje ;)