domingo, março 16, 2008

É uma varanda...


É uma varanda de 5 por 1 metro, uma janela e uma porta que dá para o mar em frente.
À direita duas palmeiras resistem à força do vento norte. Sete candeeiros completam a vista a romperem a noite. Só um é de luz branca mesmo, e perto de mim os outros são amarelo sódio de alta pressão as lâmpadas. Só um é vapor de mercúrio branco, como se isso fosse importante. Importante é o som forte do mar, um rugido impressionante, baixo persistente de pedras a chocarem, a sentir-se vir da profundeza, a entrar em mim, a estremecer-me o corpo em calafrios de medo. Aqui o mar é sempre assim quando o vento sopra de norte, forte como hoje, e o vento sopra quase sempre de norte aqui neste pedaço de costa aberta recortada pela penedia e o alcantilado de tojo baixo e forte onde sobressai a torre do sinal sonoro que agora, faz anos, se mantêm em silêncio, como se o nevoeiro de hoje não fosse uma cerração de névoa espessa à vista, perigosa para os marinheiros, para os barcos que demandam a costa ainda indiferentes a mim e à pequena varanda por onde me passeio a sentir o mar.
Olho o céu nesta madrugada e a lua meio encoberta pelas nuvens brilha em branco prata, espécie de queijo redondo como eu lembrava que seria em menino, e as nuvens correm ligeiras tocadas pelo vento. A chuva tarda. Se calhar já não vem, e eu aqui entretenho-me a matar o tempo com o telemóvel a inventar relatórios do estado do tempo e a enviar para números ao calha a dizer:

- Relatório do estado do tempo das 22 horas:
Céu nublado
Vento de noroeste seco
Algumas nuvens
Estrelas no céu.

E depois envio 1 beijo deste lado a rematar a mensagem, mas este lado não existe. O relatório não interessa a ninguém, porque ninguém olha o mar a esta hora da noite com os meus olhos, e o telemóvel moderno que podia ser a minha ligação ao mundo continua dolosamente em silêncio. Aqui só se escuta o mar. Faço relatórios do estado do tempo ainda. Mania que ficou dos anos embarcado a atravessar oceanos. Faço relatórios do estado do tempo e não sei do estado em que estou, ébrio de saudade, ébrio do desassossego que sinto. Diariamente enlouqueço. Diariamente mato-me na mentira. Então os dias ficam parados e eu espero.
Conto as vagas que chegam a espumarem de raiva salgada de encontro às pedras negras que se erguem dos fundos aqui na reentrância de costa a fazer uma praia numa baia cercada por camboas onde se fazia a despesca até aos anos quarenta, quando por decreto, se proibiu este modo de pesca e se mandou destruir os muros que a vista atenta descobre em ruínas. Testemunho de um tempo de fome e de angustias passadas. As vagas chegam ritmadas, cíclicas, em grupos espaçados de sete seguidas e depois uma ligeira acalmia até chegarem de novo, era neste espaço de tempo de acalmia precária que se saia ao mar nas pequenas catraias nesse tempo em busca da sardinha e do pilado para matar a fome. Nem sei porque me lembro destes tempos de miséria mas tão puros na essência. Tão verdadeiros na fraternidade, na palavra dos Homens de Respeito.
A varanda de 5 por 1 metro é fria a esta hora da noite, a caleira arruinada pinga lágrimas da chuva que escorre do telhado negro, lágrimas de alguma água atrasada que ficou a despedir-se sei lá do quê e para quê, e eu caminho de ponta a ponta a contar os mosaicos velhos do chão a disfarçar, a imaginar que o tempo passa mas não passa. Aqui junto do mar cada dia tem vinte e quatro horas de angústia uns a seguir aos outros. Já não sei da coragem para morrer. Já não sei dos dias. Quem sou?

João marinheiro, praia de Fornelos 2008
Fotografia de Barcoantigo2008