quinta-feira, dezembro 20, 2007

V carta...


Estou desesperado. Demasiado velho já. tremem-me as mãos, a vista está enevoada. Definho. Espero por ti. Tantos anos. Desisto de te amar. Só o mar me consola sempre, só ele foi fiel, e esteve sempre aqui, meu confidente e companheiro de lágrimas. Só ele porque é salgado e eu por vergonha só no mar chorava por ti para confundir as lágrimas no sal.
Corri mundo. Atravessei oceanos, conheci terras e gentes. Mulheres. Procurei-te tantas vezes. Já não sei de ti. Não faz mal, acabou. Estou desorientado. O nevoeiro sufoca-me, faz-me lembrar quando andava na Terra Nova a fazer pela vida. Nevoeiro intenso e perigoso. Húmido pegajoso. Espesso. Não sei de ti. Já não sei de ti. O coração está cansado de te amar assim em silêncio. Em segredo. Desesperado o coração. Definha. Morre. Só o sangue é ainda rubro de paixão.

Agora tenho tempo. Perco-me a pensar enquanto aproveito o pouco de sol que espreita nas nuvens e me aquece. É triste ser velho, estar só abandonado. Não tenho família. Qualquer dia é outra vez natal. Já não sei mas deve ser, a luz nas ruas não engana. Agora tenho tempo. Faz tantos anos que não recebo um presente. Faz tantos anos que não dou um presente. Aqui onde estou agora a viver já tudo anda numa correria, mas eu sou um mundo à parte. Trago comigo o cheiro a salitre, a porão de navio velho, a minha pele é escura, negra, queimada do ar do mar e do sol. Sou um estranho!
Tu não sabes que tenho aqui no meu pequeno quarto uma janela onde vejo mundo, e o mundo para mim é o mar que vejo da minha janela. Já não tenho família, já ninguém me visita e eu mato o tempo em mim a olhar as ondas cadenciadas e certas a morrerem na praia. A praia é um pedaço de areia que avisto da minha janela. Tinha-te dito que precisava de ir para um sítio onde não adormecer só, aqui durmo só mas existe sempre alguém que vigia a noite. Na minha casa pequena não. Gostava de poder dizer a nossa casa pequena, mas não é, não foi, Era a minha casa onde vinhas por vezes mas é a tua casa se voltares.

Daqui deste pedaço de praia imagino-te. Procurei uma casa, um lar perto do mar, demorou, tive de vir para longe porque só longe encontrei um quarto com janela e mar e um pedaço de mundo meu que contemplo enquanto te escrevo outra carta. Esta será qual? Que numero lhe dou? Quantas cartas já te escrevi eu? Não faz mal, tenho sempre alguma coisa a dizer-te, a segredar-te ao ouvido, a imaginar-te. Às vezes não sei de que forma te posso imaginar mais, porque já te imaginei de todas as possíveis, e em todas, cada vez és mais tu. O meu amor. Achas isto possível? Eu acho que deve ser da minha idade avançada, que devo estar a ficar senil também. Velho rezingão a dar trabalho, e eu não quero dar trabalho a ninguém, prefiro fechar os olhos de uma vez, e ir embora. Por isso cada carta que te escrevo é sempre uma carta de despedida, como se fossem as ultimas palavras a ti. Se um dia leres alguma das cartas que te escrevo, algum dia.

Daqui desta praia rectangular sem cortinas imagino-te. Mas já não vou até à areia contigo, caminhar na beirada da água, as minhas pernas já não aguentam. Lembras-te? Já não lembras. Não lembras que eu existo ainda. Não faz mal. Já nada faz mal, porque o mal está feito e não tem remédio. Envelheci, é isso, e agora estou para aqui entretido, a olhar o mundo da minha janela e a pensar em ti e a escrever para me distrair de ti. Para me distrair de ti. Como se isso fosse possível.
Amei-te. Amei-te como amo o mar. Intensamente. Um amor fiel e puro, feito de sacrifícios, de lutas diárias. Só o amor puro fica para sempre. Nós não. Tenho medo de continuar a amar-te para lá da morte.


Queria deixar-te um poema e já não sei imaginar um poema para ti, que seja belo. Digno de ti. Ficam as palavras estas tentativas de poema que não são:

...Sento-me frente ao mar
E tudo faz sentido…


João marinheiro, Dezembro 2007
Fotografia Barcoantigo 2006

9 comentários:

Maria disse...

Ainda escreves, João? eu desisti, por hoje...
... mas não desitas de amar....
O pior de tudo e que eu conheço gente como o personagem que tu descreves. Que está sozinho, sem família. Sem amigos. Que há muito tempo não dá um presente, nem recebe, ainda que esse presente seja apenas... um abraço...
Também eu amo o mar, menos que tu, mas intensamente.....

Abraço, daqui, enquanto nada faz sentido...

tb disse...

Talvez por ser parte da nossa ilusão...
abraço com a força do mar revolto que nos é comum

Bichinho disse...

Fico sem saber que escrever...que Amor esse, beijo fantasma.

lua prateada disse...

LINDO!!!que amor mais belo...amores que hoje já quase ninguem entende que possam existir,é triste mas a vida assim foi...Passsei aqui para deixar um pouco da minha vontade de voltar a amar assim e para desejar um feliz Natal.Beijinho prateado lá da minha luacom carinho
SOL

M. disse...

"Procurei-te tantas vezes. Já não sei de ti"
´
Sabes sim. Sabes sempre, excepto quando desesperas e o desespero não passa de uma prolongada saudade. A cada carta de despedida segue-se outro regresso. A cada regresso outra despedida. E é delas que vivemos.

Abraço imenso como o teu mar

Eme disse...

Já te disse que adoro as tuas cartas? Mil e uma vezes. Dispenso mais palavras por aqui que o resto digo-to pessoalmente. Faz mais sentido :)

Beijo

Su disse...

gostei de ler.te

jocas maradas

inês miguéis disse...

Quando tudo faz sentido, tudo vale a pena. Feliz Natal.

Anónimo disse...

João

Desistir?

Nunca!

um beijo da

Pi