sábado, dezembro 08, 2007

Encruzilhadas...

Respondendo ao desafio lançado aqui está o resultado árduo de juntar as palavras...Com todos os imprevistos acontecidos estes dias...



Só tu.
Só tu me fazes escrever-te vezes e vezes e vezes sem conta as mesmas palavras repetidas até à exaustão dos sentidos. À exaustão dos dias. À exaustão do amor que te tenho ainda, guardado no coração ferido. Sim tenho um coração ferido, com cicatrizes que sangram de tempos a tempos como um vulcão adormecido, que hiberna, que finge.
Da última vez que te escrevi foi uma carta de despedida, ou uma carta ridícula, ou nem sei já. Ando confuso e velho, demasiado velho para te amar, porque na minha cabeça ainda és a minha miúda sem tempo presente, só passado e conservo-te da mesma forma como te recordo quando foste embora. Tenho medo que o meu amor por ti seja um amor mumificado no tempo, que seja uma espécie de sobrevivência do sentir, algo de petrificado em mim que me entope as artérias e calcifica o sentir, não sei. Sobrevivo à extinção pura e simples e inglória. Só a memoria perdura no tempo, só a memoria perdura para a eternidade. Para lá das palavras, para lá das cartas escritas, para lá de ti e de mim. Só a memoria é em ultima analise a sobrevivência de nós. A sobrevivência do amor que eu já não consigo dizer em palavras, que eu já não consigo demonstrar em gestos, que eu já não consigo dizer nos actos. Que eu, é verdade, já não consigo sonhar. O meu sonho de ti é uma amálgama confusa de rostos e de cores e de brumas. Invento um mundo sem tamanho ou margens para te ter, uma invenção cada dia mais e mais e mais difícil de inventar com nitidez com a clarividência dos dias claros. A minha vista tolda-se de um negro que me parece um luto, e tenho medo de cegar lentamente, de deixar de te ver mesmo assim desta forma insuficiente. Peço que me perdoes a falha física mas sou humano, com todos os erros que cometo. O corpo envelhece, consequência dos dias. Perdoa-me. Nos últimos tempos só sei pedir-te perdão. Nunca sei se efectivamente me perdoas a falta cometida. Haja o que houver serás sempre o meu amor. Livre, completamente livre. Só assim eu te posso ter como uma andorinha, livre, em branco e negro as cores das tuas vestes. As cores das tuas asas, que me parecem braços, os teus braços dos quais tenho uma saudade imensa. Que me rodeavam o peito. Que me abraçavam, me protegiam do frio nas noites de Inverno. Estas noites de agora são noites de Inverno de novo, um Inverno que chega com nevoeiro e frio e chuva miudinha, e eu lembro-me do teu abraço e do meu abraço a ti, do felizes que éramos nesse tempo cúmplice em nós. Até as gaivotas na praia se riam das nossas brincadeiras de crianças grandes na beira-mar. Quando posso e o corpo me leva vou até à beira mar recordar-me de ti.
Às vezes os velhos companheiros dos barcos lembram-se de mim, e convidam-me para ir longe a falar de barcos e de memórias. Vou. Gosto de contar historias. Faz-me bem recuar no tempo, ao tempo de menino ao serão nas noites de Inverno de roda da lareira e da masseira e da saia da bisavó e da avó e de andar com o avó a preparar a lenha para acender o forno para cozer o pão de milho que a moleira trouxe na quinta feira pela tardinha montada numa mula castanha dócil, a quem eu fazia festas no pescoço enquanto ela, com os seus enormes olhos me fitava serena, e escutava com as enormes orelhas de burra, as minhas perguntas sem resposta. Depois ia embora rumo a Rio de Moinhos, rumo a Outeiro. Nesse tempo o tempo tinha outro valor, era mais intenso, acho que mais verdadeiro. Este de agora é demasiado rápido supérfluo, artificial, falso. É isso! – Um tempo falso este de agora.
Faz tempo. O nosso tempo verdadeiro escrevi-te uma carta. Segunda carta a ti. Começava assim: …Tenho tantas saudades tuas. E cada dia que passa é mais um a juntar ao sonho…
É verdade. Tenho tantas saudades tuas. Demasiadas saudades que me prendem, me enredam como os peixes emalhados numa rede tecida de fios de algodão invisíveis. Tanta saudade que dói. Até quando? Até quando eu vou conseguir amar a tua memória só. Porque já só amo a tua memória breve. Tão breve. Tão breve.
No tempo que estive fora. Sem ver o oceano atlântico. Sem te ver nas ondas de espuma branca, sem te sentir no cheiro da maresia, andei aflito. Quis dar-te noticias minhas, não fosse tu regressares e andares a passear na beira mar e eu não estar na nossa praia do cabo do mundo à tua espera, e te sentires só e pensares que eu te esqueci e te troquei por outra. Confesso que às vezes o tento fazer, o faço num momento breve. Mas não resulta, não são perfeitas como tu. Não encaixam no meu coração como o teu encaixa. Porque o teu foi feito à medida do meu, em peça única. Sem substituição possível. Agora já sabes que és insubstituível. Que o meu amor é PARA SEMPRE.
Escrevi-te pela madrugada a passar o tempo a matar o tempo da única forma possível, pensando em ti. Foram noites longas de insónia e de desejo teu, do teu corpo. Do teu amor. Dos teus beijos e carícias. Da tua pele na minha pele. Desejo de sexo contigo. É isso, sexo louco contigo. Perdoa o meu pensamento assim desta forma a dizer sexo ao amor que fazíamos, mas por vezes nem sei se te deveria ter amado com este amor todo que me ficou entranhado na pele e sinto nas mãos, ainda, a latejarem no desejo de te tocar, ou te deveria ter amado de outra forma indolor – só sexo! Os dois de olhos fechados, estranhos, sem marcas no tempo. As marcas no coração que se ressente hoje de novo.
Tenho medo. Medo de ter que o substituir e te perder definitivamente. Medo de ter que usar um coração diferente, que não encaixe na memória do teu, e acorde diferente, estranho, sem memória, desmemoriado de ti e de mim. E não te reconheça, nem os lugares da memória, nem os lugares onde fiz a peregrinação de ti estes anos todos. Prefiro que doa. Que me faça doer o peito, me faça ficar aflito, sufocado, sem ar. Me faça desfalecer cada vez mais. Mas não o troco. – É teu!

Agora já sabes porque te escrevo. Agora já sabes o porquê das minhas cartas cada vez mais longas e longas e inúteis. Agora já sabes porque deixei de escrever poemas. E te escrevo cartas. Porque o tempo urge. Porque o tempo escasseia. O meu tempo para te amar aqui ainda. Porque te irei amar na eternidade quando o mar me levar para adormecer definitivamente nos seus braços. Peço-te que nunca, mas nunca, tenhas ciúmes, porque eu não tenho e o mar completa-me contigo e fecha o círculo da minha vida aqui. Agora já sabes. Estou velho, se um dia passares por mim e eu não te reconheça, passa devagar para me dares tempo a reconhecer-te ou então não passes nunca. E fica o silêncio, foi assim que terminei a minha terceira carta a ti. …Impera o silêncio a estremecer o corpo por dentro...Este silencio em nós tão louco e disforme e sem sentido. Já nada faz sentido neste Dezembro, neste dia 8 feriado que era o dia da mãe no meu tempo de menino e agora não porque o trocaram também. E agora porque o escrevi, recordo a mãe, e os olhos humedecem com uma névoa salgada. Ficam os restos do amor e a solidão. Só ela e o silêncio aqui na pequena sala onde te escrevo sôfrego do que te queria dizer e não consigo, porque as palavras não falam a expressão do rosto, o brilho dos olhos, a entoação da voz, as palavras não são nada de nada, só os caracteres, o código possível da nossa existência breve. O registo futuro para memória futura, o testemunho de acusação ou de absolvição, as provas, o material de trabalho para os juízes inquiridores me julgarem pelos pecados cometidos, as palavras omissas, os gestos reprimidos. O amor trocado no corpo de outras mulheres a ver se te esquecia, ou, em desespero, o coração delas se assemelhava ao teu e encaixava no meu, mesmo com arestas vivas a ferirem a pele por dentro, mesmo assim. Tenho frio, precisava que cuidasses de mim agora, me desses uns mimos, espécie de mãe a quem não é preciso pedir porque dá do coração, sempre, disponível e atenta. Espécie de mãe…que não és, nunca foste. Não poderias ter sido. Só eu inconscientemente procurei em ti as qualidades dela, só isso. Inconscientemente.
Ando louco, sem paciência para o mundo que gira demasiado veloz a destruir o sentir. Demasiado ruidoso demasiado ruidoso, e eu preciso do silêncio para conversar contigo, para te escrever as palavras que já não escutas da minha voz sem som, amordaçada pela ausência. Porque nunca mais me deste uma noticia tua? Será que morreste e eu não o senti? Sei que não que vives algures por ai e que és feliz, quero crer que sim que és feliz algures. Para triste basto eu aqui a definhar só. Era esse o motivo da minha última, quem sabe definitivamente ultima carta, dizer-te que já não consigo estar só, que vou procurar um lar, um asilo onde me acolham como náufrago dos barcos e da memória e do amor teu. Que vou deixar a nossa rua em paralelo torta, a casa, tudo. Levo a tua foto amarelecida e desmaiada do tempo. Já não consigo ver a cor dos teus olhos lá nem o brilho nem a cor do teu vestido, nada. Só me emociono sempre que paro a olhar a parede onde habitas. Não sabes mas nessa parede só tu habitas, como uma casa ampla. Recordo que me dizias gostar das paredes livres, as salas amplas com luz natural, as casas a respirarem. Nunca consegui satisfazer o teu desejo. Só a parede é grande e tua. Tudo o resto da casa é pequeno e velho e não tem luz natural e não respira, é um mundo secreto onde permanece o teu odor. Não te vou repetir nem descrever de novo a nossa sala. Deixei tudo como está também parado no tempo. Espécie de museu a minha casa, museu de ti. Agora já sabes o motivo da minha quarta carta a ti. Das minhas duvidas os meus receios os meus pensamentos.
Vou procurar um sítio onde se escute o mar para morrer… Venho hoje despedir-me de ti. Termino esta carta. Outra carta à laia de desafio desta vez com algumas palavras de um livro que alguém. Amiga, muito amiga me ofereceu, e que fala também ele o diário de um velho marinheiro…

...Desespero por nem conseguir imaginar a forma como me olhavas!
Roubaram-me os sentidos e a memória.
Estou vencido.
No meio de uma sala ou no meio do oceano?
Que importa?
Abandono-me.
Os brandais da vida partem-se e o corpo oscila solto como um mastro tremulo quando os brandais cedem.
Resta deixar-me cair na espuma que me rodeia.
Estarei já morto?
E que diferença faz o tempo nestas condições?
Estou cansado…muito cansado…

Vêem-lhe a palidez?
Devolvam-lhe a memória ou deixem-no em paz
Morto, se possível. E lancem-no ao mar… *



* Jayme velho, Quando os brandais cedem

João marinheiro, 8 de Dezembro de 2007

5 comentários:

Eme disse...

Que intensidade João, que intensidade! Fiquei presa nesta esfera de sentires que apesar de angustiantes também trazem réstias de esperança. Vagueei em cada linha transparente de loucura, a loucura da saudade, esta natureza de ti que te dá o dom da palavra tantas vezes! És tu aqui, todo. O marinheiro. Eu contentei-me com o olhar para perceber a paixão que ali reina e que se vai apagando lentamente até se tornar uma outra paixão, mas na serenidade.
Adorei este pedaço de silêncio, de olhar, de refúgio, de decifrar do coração..

"Os brandais da vida partem-se e o corpo oscila solto como um mastro tremulo quando os brandais cedem."

Tão teu..

Beijo

Bichinho disse...

Puro, sincero...beijo fantasma.

Maria disse...

Não sei quantas vezes te li.
Às vezes li-te aos bocados.
Sinto-me cansada, as tuas palavras são intensas, e eu não tenho as minhas para te comentar...
...o teu texto é excelente, João.

Beijo daqui, a ver o Bugio

Anónimo disse...

Sempre que cá venho digo o mesmo. Lindo!
Pelo sentimento que passa para o lado de cá, a saudade... está excelente!

Observador disse...

és mesmo um espectáculo homem!!

delicia..