segunda-feira, março 12, 2007

As costas da mão…





Estava à janela. Chovia torrencialmente. Ele chegou, estacionou o carro em frente.
Viu-o chegar. Sentiu-o rodar a chave na fechadura. A porta abriu-se com um gemido. Ouviu-o reclamar! - Raio de chuva! - Raio de tempo este, morrinhento! – Só água!
Não disse nada, continuou ali costas voltadas para a porta, só a janela interessava. A luz cinzenta, húmida que alumiava o rosto e as lágrimas na face…
Hoje chove torrencialmente nos meus olhos.
Chove lá fora.
Parece que todas as lágrimas se juntaram na minha janela…
Ele disse-lhe:
- Isto é um jogo! (o pensamento voou como um relâmpago. As palavras ficaram a meio da garganta a sufocarem. Espécie de nó junto da maçã de Adão.Tu não existes! Eu de te querer tanto é que te imagino. Imagino-te tanto que te sinto quase real. Mas não existes. Eu é que insisto em que existas. Eu só!)
- Isto é um jogo ouviste!
Ela não lhe respondeu.
Com as costas da mão limpou as lágrimas. Virou-se para trás. Ele estava no meio da sala, mesmo no sítio onde o imaginava. Disse-lhe: -Vens buscar as tuas coisas não é?
– É, retorquiu. Mas o dia não ajuda. Chove. Está um tempo dos diabos…
Olhos nos olhos, quase uma ultima vez, uma despedida, uma ultima carícia. Engraçado. Nestes anos todos verdadeiramente nunca estiveram presentes os dois. Estavam os corpos, estavam as mãos. Faltaram sempre as palavras. Os pensamentos. Os dois mundos paralelos nunca se tocam para passarem a ser um só mundo dos dois. Verdadeiramente acho que se desconhecem por completo. Será que alguma vez nos amamos com um amor de verdade. Será? A pergunta é de difícil resposta e agora ela já não faz falta. É passado. O presente é este aqui e a chuva lá fora para nos dizer que é presente também. Este mundo que vejo, esta sala demasiado grande, húmida, fria, onde os dois mundos se atropelam. Não cabem já.
É tempo de abrir as portas, as janelas do coração.
O coração é um engano.
O coração é um jogo de sentires. O coração.

Olhou-o outra vez. – Porque dizes que isto é um jogo? Somos um jogo porventura? Que sou eu? Um peão e tu o rei que me dá o xeque-mate? Não gosto de jogos sabes disso.
Porque me viras as costas? Estou a falar contigo agora é a minha vez ou não? Já não tenho vez na tua vida ou tens de ver na tua agenda um espaço livre.
E ele disse com aquela voz profunda que a fazia vibrar por dentro ainda. Vibrações de vidros a partirem cortantes. Tinha de ter cuidado não deixar assomarem aos olhos o sangue das lágrimas. Não vá ele perceber e ter pena. Pena é a ultima coisa que quer que sintam por si. Acabou. Espécie de filme, sem guião. O emaranhado dos cenários, dos adereços, dos artistas. Uma espécie de casting, sem texto. Foi isso. Uma espécie de casting sem texto os dois. O filme. (Num flash passam na memória os nomes de todos os filmes vistos. Nenhum titulo é suficientemente bom para servir). Foram um filme sem nome. As lágrimas assomam de novo ao olhar, vira costas olha de novo a chuva lá fora e cá dentro bem por dentro de si. Limpa de novo o olhar com as costas das mãos, o sal correu na cara até aos lábios, sensação estranha o sabor acre, espécie de verão revelado nos lábios. Espécie de praia plena, deserta com a água ali salgada e morna. Quando foi a ultima vez que viu o mar? Pousa as costas da mão molhada nos lábios e bebe, bebe os restos desse mar salgado em lágrimas. Queria sair, sair dali para a chuva para o tempo de Inverno. Arrefecer até aos ossos. Ficar húmida de chuva, a chuva torrencial que cai, parece que o tempo sabe.
O tempo sabe. O tempo.
O tempo é um assassino. Mata! O tempo mata e eu morro aos poucos em cada salto do ponteiro no relógio silencioso da sala. Fechaste a porta do cuco, não gostavas do som do cuco do relógio na noite. (agora penso que não gostavas de muitas coisas, e eu deixei de gostar delas por gostar de ti) tenho de lhe abrir a porta, de dar corda ao relógio. Das poucas coisas que trouxe comigo. A memória da casa dos pais e do som certo nas noites a marcar o ritmo do tempo na aldeia na serra. Ali não se escutava o sino na igreja distante. Ali tudo era distante. Mesmo assim deste comigo. Mesmo assim. Perdeste-te para me encontrar, coisa dos destinos. Não acredito no destino, acredito nas pessoas. Acreditava. O meu acreditar em ti revelou-se um fracasso em todas as direcções. Porque me viraste as costas e saíste da sala?
Não consigo já falar-te. Só o olhar fala ainda a linguagem muda dos sentires. A linguagem dos medos das revelações tardias. Onde é que está o meu amor? Onde é que foi o meu amor? Não existe o amor. Existimos nós nesta sala e somos diferentes do amor agora. Nós e o teu perfume masculino e forte. Um exagero pensei sempre. Questão de personalidade dizias tu. Que interessa agora neste dia de chuva. Que me interessa a que cheira a tua pele. Que me interessa o arrepio sentido quando me passavas a face com a barba por fazer no meu corpo. (tenho de afastar estes pensamentos proibidos agora. Espécie de sexo desejado. Animal. Pareço uma gata no cio? Será que pensam assim nestes pequenos nadas enormes?) ouço-te a mexer nos livros no escritório, escuto as caixas dos cds a caírem com demasiado estrondo. Tudo é demasiado estrondoso hoje em mim. Ouço-te a exclamar – Merda de desarrumo! Fico a rir por dentro. Espécie de pequena vingança, pequena vitória. O teu mundo em casa foi sempre ali. Faltavas sempre ou quase sempre. Às vezes regressavas altas horas da noite impregnado com o cheiro a cigarro, regressavas e deitavas-te ao meu lado ruidoso sem o respeito pelo meu sono (quantas vezes fingi dormir. Quantas vezes te esperei horas seguidas e não vinhas e adormecia a arder no desejo. Espécie de sexo só?) e às vezes procuravas-me, sempre no princípio, sempre. Mas a vida é mesmo assim, o amor é mesmo assim. Eu penso que o amor é mesmo assim como a vida. Envelhece. Envelhecemos os dois no amor? Porra! Tenho trinta anos! Envelheci? Acho que não. Esqueci foi de viver, eu, e passei a viver em ti. Olha o resultado. Estás ai detrás dessa porta reclamando. E eu aqui tentando disfarçar as lágrimas olhando o nada lá fora.

Nem um carro passa nesta rua deserta hoje. E eu aqui a ver um filme à janela, espécie de porta por onde entramos e saímos os dois, demasiadas vezes, saímos demasiadas vezes já. Desta vez só tu sais e fechas a porta. Com tempo, depois de acordar do pesadelo vou reescrever o final deste filme duo que fomos. Acho que vou. Pelo menos tentar. Pelo menos não me esquecer de mim. Foi o que fiz esquecer-me de mim depois que acabei o curso. E agora que faço? Por onde recomeço. Afinal o arquitecto famoso és tu. Nunca exerci. Nunca quiseste. Quiseste sempre que te esperasse em casa, e eu fiquei esperando as tuas chegadas. As tuas chegadas cada vez mais longas. Nem sei quando me começaram a parecer partidas em vez de chegadas, tudo se tornou confuso. Disforme fiquei aqui andando de sofá em sofá abandonando-me nos livros de sonhos. Já não sei sonhar? Talvez? Tenho de reaprender tudo de novo. Onde fica o princípio de mim? Onde o perdi? Em que divisão da casa ficou esquecido. Nunca entendi porque querias viver numa casa tão grande se vivias no escritório. Tinha medo de deambular por todos os sítios nas noites frias em que não voltavas. Nunca te apercebeste. Nunca. Que te aconteceu? Que é feito do meu amor? Nunca te apercebeste que comecei a ter medo da ausência da tua partida eminente, que a tua chegada era sempre uma chegada no princípio da ida e que cada vez ias mais. Ias. Ias. Ias. Já não consigo estender as mãos para te segurar um momento. Para te atrasar um momento. Para te ter um momento. Para seres mais um momento na minha vida. Não tenho vida sem ti. Não tens momento para mim. Eu não existo. É isso não é? É isso? Já não existo em ti?
Porque me dizes que isto é um jogo agora porquê?
Que carta fui? A tua indiferença magoa-me. Agora é a minha vez.

Continuo a achar que as pessoas são egoístas. Usam-se umas às outras para atingirem determinados fins…Não sei qual foi o teu, se era para pôr-me triste e desiludida conseguiste. Parabéns…
Eu é que tento sempre não ver o que está visível. Mas sou assim, acredito nas pessoas. Tenho de mudar ou aprender. Guardo-te na minha memória porque lá só gosto de guardar as coisas boas.

Arrumaste as tuas coisas.
Vais embora e eu não te digo que ficas em mim. Um pedaço de ti que vai nascer.
Vou para outra cidade, onde não haja mar e as lágrimas sejam doces, a água não seja azul oceânica mas verde esperança. Tenho a esperança por dentro a florir como o arco-íris que via na serra. Tu não lembras. Eu não te recordo. Fica-me no ventre a tua memória que guardo como um tesouro de amor que foi e já não é.

Tens razão.
Tens toda a razão. Isto é um jogo!

Tu não sabes. Mas esta jogada agora é minha. As melhores cartas são as que estão para vir à mão. A mão é minha, sou eu que dou. Sou eu que baralho.


Tu não existes, acabas quando fechares a porta e me secarem as lágrimas nos olhos.

João marinheiro 2007
Fotografia Google

10 comentários:

Anónimo disse...

os ramos que nos brotam,jamais nos vergam, irrompem talvez noutros caminhos que não os nossos.
fechaste a janela, abrisre a porta.
beijão.

Anónimo disse...

Eu..ontem não consgui comentar.Hoje também não. Amanhã também não serei provavelmente. Onde está aquela facilidade inata que tenho de expelir as palavras? Falta-me a droga; falta-me o dormir; falta-me a paz de espírito e sobretudo, falta-me a força para ficar indiferente ao impacto que este texto teve em mim. Lembras-te de te ter dito que há palavra que têm mais impacto sobretudo quando estamos mais vulneráveis? Talvez seja um desses dias. Eu não sei! Também tenho o sabor do sal nos lábios. Já me ardem e desconheço se é do sal ou dos beijos que gravei.. Por ora fico assim. Apetece-me apenas fechar os olhos..

Ana Luar disse...

:)

bjs, mar de emoções.

rtp disse...

Que início extraordinário de mais um ano de memórias!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

João

Pois é...isto é um jogo!

E sabes uma coisa?

As pedras estão viciadas.

Um texto tao triste quanto belo na sua expressão criativa.

Beijo de amizade

tb disse...

O jogo da vida...
beijos

Maria disse...

Porque escreves assim?
Tão triste, tão lúcido, tão bonito...

joão marinheiro disse...

Maria, verdadeiramente não sei. Mas tento a resposta em cada palavra. Abraço deste lado cansado da hora tardia

isabel mendes ferreira disse...

absoluto!!!!!!!!!!!!



________________raramente fico sem palavras.


agora fiquei!


volto. tenho de voltar. para reler.te....relendo-me....treslendo afinal o tempo assassino...e torrencial.


_____________

beijo.Te.

Borboleta com Asas disse...

Foi o texto mais forte que te li!
Sim!!!
Porque falas de mim...de ti!
De nós!!! É longo, como longos foram os anos que nos distanciaram, fiquei pálida...fiquei cega, muda, até esqueci que estavas ali a ver-me...
O que escreves-te...
"Eu penso que o amor é mesmo assim como a vida. Envelhece. Envelhecemos os dois no amor? Porra! Tenho trinta anos! Envelheci? Acho que não. Esqueci foi de viver, eu, e passei a viver em ti. Olha o resultado."