terça-feira, fevereiro 20, 2007

Volto à minha ilha, é tempo de folia, de Carnaval…


Éramos poucos, muito poucos. Oito famílias no Inverno que ia forte. A mãe costumava fazer bolos nesta altura, no tempo das gaivotas fazia bolo com ovos de gaivota. Gostava de ir aos ovos de gaivota frente ao pavilhão, era um burburinho as gaivotas no ar a piarem em voos rasantes para que eu me afaste dos ovos. Sabia dos ninhos, e quando elas põem os ovos se tirar os primeiros elas fazem uma nova postura de três ou quatro já nem lembro.
Esta é a minha ilha, sou o miúdo mais velho, somos 6, temos um baloiço de dois lugares junto ao estábulo do burro. O burro é o Ruço. O Ruço é manhoso. Um dia o tio teve de carregar todas as mercadorias do barco para o farol, até às tantas da tarde, de castigo. O chefe era mau. Regras eram regras…O tio estava de serviço ao burro, e o burro sabia que nos dias de barco tinha trabalhos dobrados, triplicados, quadruplicados…Gostava de estar no fundo do estábulo a olhar para a porta pelas sete da manhã, hora da ração. Nos dias de barco era preciso cuidado com o Ruço, ao abrir a porta, saia como uma bala e não havia quem o apanhasse, voltava à noite depois do barco dar o apito de partida. O velho Berlenga com o mestre Paiva ao leme, um homem grande, com umas mãos grandes, e um olho para cada lado…Acho que era um pouco estrábico ou cego de uma vista, já não sei. Sei que gostava na vinda para a ilha de passar junto ao Cabo Carvoeiro, rentinho, ali onde as correntes se encontram e formam vagas altas e cavadas. O barco dava umas mergulhadas, caia na cava das vagas. As mulheres assustavam-se. Um dia o motor até parou. O pai era especialista em por motores a trabalhar, foi lá abaixo e colocou o motor a funcionar, lembro-me porque cai nesse dia com o salto, ia junto da mãe na cabine dos passageiros dirigia-me para a pequena casa de banho e fiquei espalhado ao comprido, apanhei um susto. O mestre Paiva ria-se, dizia que o mar não era para as mulheres…Nunca gostava de se desviar do rumo, ir um pouco mais pelo sul do Cabo, de modo a atenuar o sobe e desce do barco na ondulação. Era uma cabeça dura e teimosa…

No verão eu gostava de ir à proa a ver os golfinhos a saltarem na nossa frente. Mas isso são outras histórias…A história de hoje é o Carnaval na ilha, o nosso Carnaval, o Ruço era um dos actores. O Ruço e o carro do transporte que às vezes tinha de puxar sempre que havia gasóleo para trazer para cima, bidões grandes com 200 litros.
O Ruço tinha manias…Andava a uma velocidade sempre igual mais lenta para cima, quase parado para baixo…Era preciso convencer o Ruço. Trabalho de psicologia asinina. Para colocar a albarda e as cangalhas era o cabo dos trabalhos. Quando estava de mau humor era coice para tudo o que era sitio, por isso tiveram de mudar o Ruço para os galinheiros junto aos baloiços ali era mais fácil de controlar. O sitio era mais apertado que o estabulo grande junto dos tanques de lavar a roupa e do forno de coser o pão. Mas o Ruço não tinha culpa, estava doente de solidão como todos, foi substituído nos anos setenta. Acho que em 71, já na altura em 67 ele era velho e manhoso, fez mais de vinte anos só, na ilha. Às vezes zangava-se e então comia os lençóis brancos se estivessem a secar, porque nos dias que não havia barco podia estar solto que não fugia dali, mas vingava-se, comia o sabão, a roupa. Vinha devagarinho e roubava os cigarros aos faroleiros ou aos turistas. Vinha de boca aberta e abocanhava o cigarro, acho que descobriu que o cigarro dava para atenuar a solidão… O problema era mesmo os turistas no verão. As turistas melhor dizendo, o burro que não era burro nenhum excitava-se com o perfume das turistas e com as turistas. Corria atrás delas a zurrar e com o “coiso” pendurado… Eu achava aquilo um divertimento, até um dia. Um dia que o Ruço cismou de se por às cavalitas de uma turista, foi o cabo dos trabalhos…Queria ferrar em todos de olhar esgazeado. Ruço diabólico…Outra vez estava ele descansado a dormir ao sol, e uma turista sentou-se em cima, para fazer uma foto, resultado apanhou uma ferradela num braço e um susto. Às vezes, pouco depois do Cabo Avelar chegar e descarregar os magotes de gente ávida por descobrir a ilha e deixar todo o lixo que traziam, eram só gritos dos turistas e turistas a entrarem pelo recinto do farol a dentro, com o Ruço atrás com o diabo no corpo. Achavam piada àquele animal afável, pequeno, por ali a destoar do silêncio da ilha, a destoar na própria ilha, porque a ilha era das gaivotas das galhetas, dos ratos e dos coelhos. Os faroleiros, as crianças e o Ruço estávamos a mais…
Do episódio da ferradela ficou registado no livro-diário o seguinte; A turista ferrou no burro que por sua vez ferrou na turista. Assunto arrumado!

O Ruço passou a andar amarrado por uma corda e ficou ainda mais melancólico. Às vezes punha-se a zurrar tempos infinitos, fazia as reclamações todas de uma assentada…

Volto às manias do Ruço nas descidas e nas subidas…Nunca percebi o ritual…
Cagava e mijava nos sítios certos, o termo é mesmo esse. Literalmente! Na descida parava nas estações todas, umas 5 ou 6, acho que aquilo era manha, chegava, parava, cheirava as castanhas e fazia mais duas ou três, mais abaixo uma mijada, depois mais umas castanhas. Um ritual. Na subida o mesmo. Não havia arte ou manha que o fizessem acelerar o passo cadenciado de anos de treino, e se puxavam por ele lá escorregava uma pata, as ferraduras polidas do desgaste, estacava. Fincava as patas da frente e nem de empurrão ele arrancava. Tinha uma personalidade forte, manhosa, vincada. De desesperar o faroleiro de serviço ao burro. Mas tinha um, um faroleiro, um primo do pai que lhe trocava as voltas, sempre que estava de burro e que queria ir a terra, só podia ir depois de ter levado tudo para o farol, as compras todas, assim usava um desperdício com gasolina no cu do Ruço. O Ruço ficava assim com uma espécie de turbo nas pernas, abalava a correr por ali acima. Um dia a coisa deu para o torto, a albarda partiu a cinta, as cestas, as cangalhas, caíram, espalharam-se as mercearias, a fruta caiu ao mar a rolar pela ilha abaixo, maças, laranjas, limões, batatas, tudo o que ia nos sacos, o Ruço solto levou arda, desapareceu literalmente, o Jorge, acho que era Jorge o nome do faroleiro teve de carregar tudo à mão e ficou de castigo na Ilha a procurar o Ruço. Foi proibido usar aditivos no Ruço, gastava as ferraduras mais depressa e sempre que o ferrador tinha de vir à ilha calçar o Ruço era uma festa, ou não era…Esse dia era dia do Ruço escoicear, de ferrar, de se rebolar pela terra de correr esgazeado pela ilha fora. Até os coelhos e os ratos e os sardões fugiam a sete pés e mais que houvessem…Tinha uma incompatibilidade deprimente com o ferrador. Homem pequenino, matreiro, especialista em espetar os cravos com duas marteladas nos cascos pequenitos do Ruço.

O Ruço que me lembro das vezes que com ele brincava tinha um olhar dócil, uns olhos grandes tristes, gostava de me cheirar e de mostrar os dentes. Éramos bons amigos. Já nem me lembrava que tive um amigo burro…Gostava de comer as favas dele, favas secas grandes e as alfarrobas doces, o Ruço gostava das alfarrobas, eu também.


Mas tenho de voltar ao Carnaval. Fazia-se uma festa, ali. Como éramos tão poucos éramos uma grande família. À noite tínhamos uma televisão na sala do ping pong e as senhoras juntavam-se ali a fazer malha a conversar, os homens a jogar cartas, nós os miúdos a caçar ratos. Eu era especialista em caçar ratos. Às vezes fugia deles mas isso era quando eram muitos e se lembravam de vir atrás de mim… Outra história…
No Carnaval todos nos mascarávamos, das mais variadas formas, sempre sem ofender a Nação…Porque no tempo existia a Pide. Lembro-me que anos mais tarde depois de Abril de setenta e quatro, um companheiro do Pai que esteve connosco na Berlenga foi preso porque diziam era informador da Pide, outra história…

Desse tempo, desse Carnaval existem uma ou outra foto por cá no álbum das minhas memórias…Já nesse Carnaval o Ruço era considerado o elevador atómico da Berlenga. Sem duvida o Ruço foi sempre mais que um elevador…. Prova o cartaz empunhado…divertíamo-nos muito nessas alturas. Não tínhamos banda de música nem gira-discos mas tínhamos boa disposição, ar puro, e um acordeão…
E o Ruço para nos passear de carro, o carro possível…

Muitos anos mais tarde voltei à ilha, apanhei um susto, fiquei triste com o abandono a que o Farol está votado. Desmemoriado. Não me espanto estão todos a cair aos bocados, em muitos ficam as minhas memórias de um quarto de século…Viva o Carnaval, e como se diz ninguém leva a mal…

João marinheiro, Carnaval de 2007
Fotografias do arquivo de Barcoantigo

9 comentários:

Anónimo disse...

sabes que eu adoro alfarrobas? lembro~me de passar em pequenina por uma alfarrobeira enorme a caminho da terra dos meus avós; aquele sabor ficou-me( e ainda por cima dava brindes,aquelas sementes pretas tão brilhantes)nunca mais tinha comido, e aquele sabor não se assemelha a mais nenhum.aqui na minha serra também há uma das poucas reservas de burros, á medida que foste contando a ´tua história, fui-me revendo nela, sentindo os cheiros, a nostalgia e o amor que emana desse teu ser(davas um bom pastor prá lem de marinheiro)smak!

Maria disse...

Eu não acredito, a Ilha, o Farol, o Ruço, a casa da palha a meio da rampa, mesmo mesmo ao pé do carreiro dos cações, outra vez a Ilha...
Vou reler e já volto.
Até já

Maria disse...

João

As gaivotas põem 3 ovos, até 3 posturas (se os tirarem, claro).
O velhinho Berlenga continua a ser, para mim, o melhor barco para a travessia...
Essa história do Ruço com a turista ainda hoje é lembrada na Ilha, pelo mais velhos... e na sala da mesa de ping pong há hoje uma mesa de matrecos...
Julgo poder ver, na última fotografia, o ti joão e a ti maria velaha... julgo, porque está muito clara e os meus olhos já estão velhos, mas não cansados, de ver o mar...

Obrigada por esta estória. Gostava de ler mais....

Ana Luar disse...

Andas perdido em memórias carnavalescas meu amigo... e pelos visto boas memórias....... Gostei da história do Ruço.
(não sou lá grande amiga do Carnaval)

Fica um beijo amigo.

Bruna Pereira Ferreira disse...

Que bonitas memórias... Parecem recolhidas do tempo dos postais a preto e branco guardados no meio de livros antigos com cheiro a traça...

:)

Anónimo disse...

vês o que provocas nas pessoas? nostalgia, de tempos saudosos,fazes reviver, fazes pensar, fazes regressar a passados mesmo sem o quereres:)
E ficas tu saudoso também. Todos têm na sua vida, mares, faróis e Ruços com histórias para contar. Quantos recordam?

beijossss

Sónia disse...

Sorrio.Foi isso que me fizeste:Puseste-me a sorrir.Senti-me como estando no banquinho pequenino junto ao borralho que a minha infância nunca teve e ouvir, atenta, alguém contar do tempo que eu nunca vivi...Talvez não faça sentido, mas mergulhei numa viajem...uma agradável viajem :)

Bem hajas!

tb disse...

Olha João,
Até tive que limpar os olhos para escrever-te, pois que a tua história me divertiu tanto, mas tanto, que até as lágrimas se vieram juntar à festa. Mas também foi de uma pontinha de emoção, pois que viajei contigo por esses tempos que apenas ficam vivos nas nossas memórias.
Tu estás a limpar a tua caixa de memórias e como o sabes fazer bem...
Um beijo

Nuno Silva disse...

. foi o meu primeiro farol quando acabei o curso. é uma boa escola
Nuno Silva o nuninho