sábado, fevereiro 24, 2007

Da nossa partida eminente…II


Até aos Açores são 600 milhas. Porque raio me lembrei de partir, de querer ir tomar um último gin ao café do Peter. Acho que nunca vou obter a resposta para este meu acto temerário…Os actos temerários por vezes pagam-se caros, o mar está cheio de temerários e de heróis mortos…

Esta noite tenho medo. Tenho, sinto o medo por dentro.
O mar está a mudar. Um ruído grave e baixo. O horizonte escurece, a brisa aumenta de força. O anoitecer está diferente, pesado, lubregue. O tempo arrefece.
Entretenho-me a fazer uma sopa para o jantar. O fogão oscilante. O púcaro oscilante. O prato oscilante. Tudo se mexe debaixo dos meus pés. O barco ressente-se das milhas navegadas, uma vida a carregar comigo. Fomos felizes os dois quando tu embarcaste. Ganhou alma e um brilho novo no convés. O casco ficou mais esguio, mais ligeiro na água. Acho que tudo são impressões da minha cabeça. Mas tu eras a alma a bordo.
Gostava de te ver ao por do sol de cabelos soltos em contra luz. Nua, como gostavas de andar para me provocar. Só eu, tu, e o velho veleiro que nos abraçava no interior. Só eu, tu, e as brancas velas que nos acariciavam o rosto. Só eu tu e o amor que respirávamos. O meu ar era teu. O teu meu. O mundo nosso. O oceano dos dois.

Mas esta noite tenho medo.
Os instrumentos de bordo estão loucos, o barómetro caiu assustadoramente, a pressão baixou, vem temporal por ai, e a esta altura da viagem a esta distância de terra o VHS está mudo, salva-se o rádio das métricas. Estou mesmo só, sem contacto para terra, sem saber do boletim meteorológico, mas não preciso, a tempestade anuncia-se baixinho. As nuvens carregam toda a chuva e toda a raiva ácida de todos os continentes.
Tenho de me prepara para o que ai vem.

Revisão geral. Fechar os albois de proa, cerrar as portas de mar, prender tudo no convés verificar o motor, verificar as pilhas na lanterna, verificar os moitões das velas, os cabos do estai, os brandais. A retranca da vela grande, as luzes de navegação.

Troveja ao longe a noite chegou escura, pesada, nem uma estrela no céu, sopra mais forte o vento, e faz abater o rumo na agulha. Corrijo, sei que esta noite vai ser de derivas, presinto. Mas tantas vezes já apanhei as tempestades…

É quase meia-noite estou cansado, começou a chover. Parece que todos os amantes se reuniram para chorar hoje. Bátegas de chuva grossa que ferem a cara e os olhos. As vagas já são grandes. Às vezes não as vejo, sinto-as só a virem em cachoeiras de espuma fustigadas pelo vento. O barco tranquilo mete a proa e levanta, mete a borda inclina-se como que a adormecer, então eu orço. O leme obedece e ele vai e cai na cava da vaga cansado. Tenho medo que caia de uma vez. O anemómetro giro como um louco. O vento está forte, tenho de arrear pano, rizar. Estivar a vela. Este ainda é um aparelho à moda antiga, uma carangueja grande e dois estais, já os recolhi, agora é só a vela grande. Aproo ao mar e ao vento. Tenho de meter o motor a trabalhar. O velhinho Perkins de 12 cavalos. Com tantas horas de trabalho, tantas milha. É antigo, pega ainda por manivela. Tudo neste barco é antigo. Até eu. Puxo os descompressores dos dois cilindros, dou-lhe três voltas a ganhar embalo, e enquanto o velho volante gira acciono o primeiro descompressor para comprimir, dá um soluço e gira, ligo o outro, dá outro soluço, e mais outro, e mais outro, e vai, vai só por si como que a cantar. O som abafado e quente do velho motor. Engato à vante e fico por ali às 600 rpm aproado ao vento a singrar devagarinho. Arreio a vela e já não rizo. Ela que estava abandonada a bater como um lençol no fieiro da praia abandonado nos dias ventosos. Caço a vela toda, aperto-a na retranca, bem apertada, bem estivada, não está noite para aventuras nem para navegar à vela.
A noite é de esperas e de incertezas…

Estou só no poço, tenho as escotilhas fechadas, vesti o fato de temporal. O fato especial que comprei. Lembras um para mim, outro para ti. Fatos de sobrevivência. Impermeáveis com malha polar por dentro e estanques. Com faixas luminosas para serem visíveis. Coloquei o arnês e o colete salva-vidas novo, aquele que é accionado por gás comprimido. É mais fácil de usar e esta noite vai ser agitada.

Olho os instrumentos, o anemómetro salta dos vinte e cinco para os trinta nós de força. Calculo força seis, força sete. As vagas crescem, cinco, seis metros…Sinto-as a rugirem, a espumarem na noite, a baterem no casco. São todas as fúrias das entranhas e das profundezas que se juntaram hoje. Agora é aguentar e estar vigilante, não vá ser abalroado. No meio do atlântico, esta é uma rota usada também pelos grandes navios que cruzam de norte para sul ou vice-versa.

Sinto o vento na cara frio a gelar, e um frio entranha-se em mim. Porque será que quando estamos com medo tudo nos mete medo. E porque tenho eu medo. Porque tenho? Porque me vim embora? Porque vim em tua busca?

Eu sei que não estás. Eu sei que já não estás. Que aconteceu naquele dia? Que aconteceu meu amor. Porque não me chamaste. Porque nem um grito escutei. Não me perdoo. Tu sabes, onde quer que estejas. Não me perdoo. Eu é que era o patrão no barco. Tu a minha convidada. Agora espero sempre que regresses um dia. Sinto-me negro por dentro. De luto por mim. Espero sempre que chegues, que te recolham numa ilha qualquer, que um navio te tenha salvo. Que tenhas ido para ao outro lado do mundo e regresses. Assim estou numa espécie de luto por fazer. Um naufrágio sem naufrago. Afogo-me nas saudades. Confundo o sabor das lágrimas com o sabor da água do mar.
Foi o mar que te levou não foi? Não posso ter dois amores pois não? O mar é ciumento não é?
Estou exausto. Sinto-me a tremer por dentro demasiado cansado. Húmido ensalitrado, doem-me os olhos a noite é de um negro demasiado negro, os meus ouvidos desesperam. Parece que te escuto a gritar no meio do nada, não te consigo ver. Só as vagas que varrem o convés. Só o vento que fustiga os brandais e provoca silvos como uma serpente endemoinhada. Não me podes vencer mar. Não me podes levar também. Porque me queres vivo? Para dizer que te amo. Mar desgraçado! Eu perdoo-te. Não sou de guardar rancores. Mesmo que me firam quase de morte. Morro aos poucos devagarinho. Os marinheiros morrem assim. Devagarinho! Fomos nós que inventamos a saudade. As lágrimas com sabor a mar. As ausências sentidas e consentidas. Fomos nós que nos dizemos lobos num mar que nos escorraça.

Que se passou contigo meu amor? Nunca o vou saber dou-me conta. Nunca, e cruzo este oceano imenso em tua busca. Sei que já não voltas. Que habitas um lugar mágico no reino de Neptuno, rodeada de corais rosas e de pérolas. Às vezes na ardência do mar parece que és tu que caminhas.

Passaram já quatro horas, acho que estou no mesmo sítio. O vento amainou estamos os dois cansados, o barco mais eu. Queria dormir. Despir o fato e deixar-me estar no beliche de olhos fechados. Não acordar mais. Ainda me sinto a tremer por dentro. Mas tu dás-me a serenidade e a lucidez suficiente para ter paciência. Penso em ti e deixo de ter medos…És a minha luz do alvor. A estrela da manhã. A estrela Polar que me guia. Vou descansar um pouco e reorganizar-me a bordo. O trabalho é uma rotina mas tem que ser feito. Amanhã ou depois chego ao destino. Amanhã ou depois…


Tenho o Faial pela proa finalmente. Chego inteiro. Acho que desta vez me libertei dos medos. Vou atracar, estou com a tal vontade de beber um gin, e dar um abraço ao Peter. Um abraço de condolências também pelo pai que partiu. Um abraço atrasado, como gostaria de te ter dado. Tanto que gostaria de te ter dado. Tanto que me faltava viver contigo. Tanto ar teu que me fazia falta respirar. Tanto de ti em mim. És imensa e eu sou nada. Sou nada sou nada!

Tive sorte! Tive sorte! Tu dás-me sorte. Vendi o barco regressei de avião. Acabou!
João marinheiro 2007
Fotografias Google



7 comentários:

Anónimo disse...

que viagem alucinante! Não tens um cobertor? Naufraguei e estou cheia de frio... Também vislumbro a esplanada junto ao café do Peter com vista para um mar azul-cinza já calmo onde navegam os barcos ao sabor da brisa. É importante saber mesmo o que aconteceu? Aquela tempestade não foi definitiva. Foi apenas um breve vaguear sem coordenadas e foste salvo. Que interessa como? venceste o mar, talvez só por esta vez. Anda, vamos beber mais qualquer coisa ao Peter...

Anónimo disse...

eu tambem quero iiiirr..eu tambemm queeeroo .iiiiiiir...ai eu tambeemmm....
eu pago os cafés.,dáccord? ah.. jáime la france et tes histoires aussi..(eh oui!)

isabel mendes ferreira disse...

TU!







escreves como uma tempestade....






e eu gosto tanto de te ler.



obrigada.

beijos.

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

O REGRESSO

Os amigos insistiram no regresso do “BEJA”.

O desejo íntimo também era grande…

Porque não dar vida de novo a este projecto?

Além das notícias do Alentejo voltamos a ter outros

temas interessantes e sempre a lembrança dos

bons Poetas Alentejanos e não só.

Assim decidimos voltar e esperar o bom acolhimento

de sempre dos Amigos que aqui encontrei e dos

novos que porventura nos visitem.

Abraços amigos

tb disse...

João, meu amigo
percorri contigo toda esta tempestade que são as tuas palavras em mim.
Ainda bem que chegaste a bom porto, para escreveres novas e sempre intensas, como os sentires que sabemos.
Um beijo deste lado de ti, o lado de dentro de mim.

Maria disse...

Parece que fiz esta viagem contigo. Pela angústia. Pela ausência da pessoa amada. Pela ligação íntima com o mar.
Por tanta coisa...
Vou ficar aqui, sabor a sal na boca, à espera de mais estórias...
Um abraço

Bruna Pereira Ferreira disse...

Mais uma epopeia marítima que leio com gosto aqui.

:)