domingo, fevereiro 18, 2007

Da nossa partida eminente… I


Vou então também embora meu amor. Bastaram-me estes últimos anos de sacrifício. Um amor a uma voz. Estou desmemoriado, acabaram-me as memórias. Ficam só uma espécie de filamentos ténues, um fio de nylon invisível que me prende ainda a ti. Acho que perdi a conta as vezes que te pedi perdão.
Dou-me conta nunca me perdoaste e eu ainda não descobri onde errei, ou talvez não.
Desculpa ter-te amado com o lado errado do coração.

Foste embora e levaste contigo tudo o que trouxeste de teu. O teu corpo, as tuas mãos, o teu riso, o teu olhar, o teu andar gracioso, os teus gestos, o teu cheiro. O cheiro que tenho entranhado nas narinas e nas mãos. O perfume dos teus cabelos. Os cabelos soltos ao vento quando passeávamos de mão dada na praia do cabo do mundo. O jeito de me olhares, como que a quereres entrar por dentro de mim, toda, e possuir-me de uma vez por todas e deixares-te ficar aninhada por dentro das orbitas por dentro do meu olhar. As vezes que eu me perdia a olhar-te enquanto dormias ao sol na nossa praia. As vezes…
Deixaste-me a tua marca por dentro. Uma memória desmemoriada, um desassossego.

Hoje chove torrencialmente nos meus olhos
És Inverno maduro adiantado…

E eu estou aqui de volta das memórias. As poucas memórias de que me alimento, tentando num gesto temerário reunir as pontas destes fios que me prendem ainda a ti.
Perdoa a minha insegurança. O chamar-te de meu amor. Às vezes dizem que sou especial. Que tenho um coração nobre, do tamanho do mundo. Sou é frágil. Sou é demasiado frágil desde que foste embora. O resto sou eu a tentar esconder-me, a tentar que não saibam da minha desilusão, porque quando sabem geralmente vão também embora de mim. Sei que não és. Faz tanto tempo que não és. Só a minha alucinação só o meu sonho que não quero desvanecido no tempo. Perdoa meu amor. Perdoa dizer-te assim de forma tão crua e fria já. Meu amor ausente. Minha insegurança. Meu sofrer. Meu amor vazio que é como te sinto. Vazio. Chamo-te para me sentir vivo entende.
Chamo para exorcizar os medos. Chamo para que me aqueças o coração doente. Chamo porque tenho saudade e frio. Muito frio. Perdoa o andares por dentro de mim nas minhas viagens. Eu deixo só para que tu me acalmes as tempestades como a última à qual sobrevivi milagrosamente porque tu vieste. Vieste como a LUZ, como a calmaria, como a bonança, como um deus diáfano sobre as águas revoltas do oceano que me renegava. Vieste. Eu sei que vieste. Porque penso em ti e deixo de ter medos…

Vou também embora. Embora de mim, estou demasiado desiludido com tudo e sobretudo cansado. Muito cansado. Muito cansado. Já não tenho as tuas mãos para me acariciarem o rosto enquanto dormia e os medos, os sobressaltos, as aflições se iam embora lentamente.

A minha última viagem deu para reflectir, para sentir o medo em mim, a aflição. Já não estava habituado a navegar em solitário, o barco, o nosso velhinho veleiro parece-me imenso sem ti, e um silêncio incomodativo nas noites longas se abate sobre mim. Logo eu que tanto gosto da navegação sob o olhar atento das estrelas e da lua esplendorosa. Logo eu.

Tu não sabes meu amor, tu não sabes das aflições que senti e o importante que és em mim.
Tu não sabes do meu amor intenso, que às vezes me parece um cemitério de restos.

Tive muito medo sabes. A minha vida como um filme em câmara lenta, o meu naufrágio na juventude, as 5 horas a lutar pela vida e terra ali tão perto e a noite que chegava e o companheiro meio desfalecido longe do barco e eu sem saber que fazer, se lhe acudir e abandonar o barco ou tentar dar-lhe ânimo para nadar até mim. Tu não sabes que em segundos tive de decidir tudo sem erros sem falhas, sem medos, os medos vieram depois quando nos recolheram ao sol-pôr e estávamos exaustos a entrar em hipotermia. Tu não sabes dos meus medos de miúdo. Era um miúdo nessa altura. Que sabe da vida um jovem com 16 anos? Que sabe? Que pensa? Que pode voltar o mundo com a força das mãos e os sonhos? Quem sabe? Quem sabe! Aprendi a lição, e a respeitar o mar, a amar o mar. Até hoje, tem sido fiel essa relação, sem traições sem adultérios sem omissões, somos os dois e um só. Mas às vezes o mar zanga-se comigo, talvez para me chamar a atenção da minha temeridade do meu destemor do meu desprezo pela vida, só tu me interessavas não te dás conta, por isso parti mais uma vez numa altura em que não o deveria ter feito. O oceano é misterioso tem os seus segredos as suas manhas os seus encantos.

Porque me deixo enfeitiçar pelo mar?
João marinheiro 2007
Fotografia de Barcoantigo

8 comentários:

Anónimo disse...

deliciosamente intenso no apogeu da frase..hoje chove torrencialmente nos meus olhos
és inverno maduro adiantado..
magnifico, como tudo o que sai desses teus dedos magoados.
smak!

Maria disse...

Nem sei o que dizer.
É mesmo melhor ficar calada e quieta a olhar o teu mar e adivinhar mais memórias...
É um texto fantástico, e espero que continues... espero...

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

João

Mais um texto muito bem escrito, e muito comovente...

Anónimo disse...

o mar enfeminado, endeusado... tão fatal quando se zanga à semelhança de ser humano, sobretudo se por ele sentirmos uma paixão intensa.

"Dorme... eu e eles velaremos toda a noite
Nem dúvida nem morte ousarão tocar-te com um dedo
Abracei-te e a partir de agora pertences-me
E quando pela manhã te levantares verás que é verdade o que te digo"
(Walt Whitman)

A. disse...

...sempre João.



sempre profundo.um mar.







deixo-te um beijo.hoje.

Anónimo disse...

Minhas palavras encolhem-se diante deste tecido iluminado de palavras... com raios do amor.

A ausência perde-se em dias doentes.
um abraço agradecido e com raios de luz

algevo disse...

Sempre profundo. Sempre maravilhoso.

Sempre..........

De regresso.

I.

tb disse...

Porque há momentos em que as palavras se trocam pelo silêncio que estas nos calam fundo em nós...é o caso
Beijo desse enfeitiçamento comum...