quinta-feira, maio 28, 2009

do desencontro... VIII (continuação)




( Livro de contos)

Vou ter que lhe pedir desculpa pelos meus actos, espero que me perdoe, mas já não se podem remediar. Quando a encontrar logo verei o que dizer, o que vou sentir. Quem sabe é melhor assim esta espécie de preparação para a despedida, nas horas que faltam posso acalmar e habituar-me à ideia que Laura agora tem uma família e um mundo próprio do qual já não faço parte. Seria muito egoísmo da minha parte querer fazer parte de seu mundo, se eu optei por partir, se fui eu que renunciei e virei costas. Quando nos despedimos não disse uma palavra, ficou a olhar-me subir as escadas para bordo, enquanto os seus olhos me pareciam cada vez maiores e brilhantes. A Laura tem uns olhos fantásticos de belos. Afasto estes pensamentos da cabeça, acabo de beber o vinho do Porto de um gole. Armando está a conversar comigo há alguns minutos e não o escutei. Perdi-me. Fechei-me num mundo insonorizado por uns momentos. Volto à realidade da sala – perdão Sr. Armando, perdi-me por uns momentos. Voltando á minha vida no mar. Como pode imaginar quando acabei o curso tive a oportunidade de embarcar como 2º Imediato num cruzeiro que partiu de Lisboa para a costa leste da América, ora eu agarrei logo a oportunidade, até porque a companhia em questão também tem navios de longo curso e tinha a oportunidade de passar para essas rotas, o que aconteceu 4 meses depois.
Durante dois anos fiz o tirocínio como 2º e 1º Imediato, fui parar à Austrália, fiquei a viver em Sidney, uma cidade fantástica, tive a oportunidade de ingressar na Australian Sea, a Companhia marítima onde estou até hoje, nas rotas até à nova Zelândia, China, Japão, Indonésia, nunca vim para norte, para o hemisfério norte, nunca calhou…navego sempre no Indico e no Pacifico. Outros mares.

O estar cá hoje em Lisboa deve-se a alguns acontecimentos que ocorreram nos últimos tempos, acontecimentos dos quais eu sou parte interessada sem que o soubesse, pelo menos até seis meses atrás.

Somos interrompidos pela dona Rosália que nos chama para almoçar, e eu neste momento dou pela minha falta grave. - Perdoem, desculpem mas nem pensei na indelicadeza de aparecer agora á hora do almoço, estou a causar transtorno. – Ora essa! Exclama Armando, enquanto me dá uma palmada amigável nas costas. Sente-se aqui ao meu lado que assim podemos continuar a conversa.

Somos servidos pela senhora que me abriu a porta, espécie de governanta penso eu, e sou interrompido pela dona Rosário, – Fernanda este é o menino João é como se fosse da família, portanto nada de cerimónias. A senhora olha-me enquanto sorri e serve da terrina em porcelana a sopa fumegante á dona Rosário, um creme de legumes com um aroma fantástico. As saudades que eu tinha de uma comida assim, feita em casa, com todo o carinho e tempo dedicado. Cozinhar é uma arte que cada vez se perde mais em favor da comida industrial. Se temos uma boa coisa em Portugal é a comida. Das poucas vezes que comi aqui em cada dos pais de Laura sempre me senti bem. Não sei explicar, sempre me senti inglês, nasci em Londres, mas é em Portugal que me sentia bem. Até cerca de seis meses atrás não sabia explicar. Desde novo que aprendi a falar português porque a mãe me falava em português e fez questão de me matricular na escola Portuguesa. Hoje tudo faz sentido para mim. Se eu soubesse quando conheci a Laura quem sabe não tinha partido. Mas Portugal não era a minha pátria, não é ainda. Não sei verdadeiramente se sou de algum lugar em particular.

Provo a sopa, excelente. Excelente sabor. Difícil de encontrar palavras para definir, um creme aveludado de favas com pequenos cubos de pão alentejano frito em azeite, uma iguaria típica, que nunca como senão aqui em casa deles.
Parece que adivinharam que eu vinha, se há sopa que mais goste é desta que aqui provei pela primeira vez, um creme de favas divinal – Parabéns dona Rosário e parabéns também à dona Fernanda que é uma cozinheira impar.
O Armando sorri enquanto me serve um copo de tinto Periquita reserva, um vinho que aprendi a gostar e que não bebo faz anos. Na escola náutica quando saiamos para o mar, a bordo bebia-se Periquita, um vinho terras do Sado, península de Setúbal. Recordo-me em particular de uma das viagens a bordo do navio Polar uma Goleta de dois mastros, bonito veleiro onde naveguei durante o tempo que estive em Lisboa a acabar a especialização e onde o apreciei pela primeira vez a caminho dos Açores.

A dona Rosário fica a sorrir enquanto exclama, – coincidência João! Hoje são uma data de coincidências. Nunca nos passava pela cabeça que aqui pudesses estar hoje, mas ficamos muito contentes que estejas, acredita. Até parece que o almoço foi escolhido porque vinhas, diz a rir, já vais ver se tenho ou não razão.
Fernanda recolhe os pratos vazios da sopa, e eu bebo mais um pouco deste vinho suave e intenso.
Em casa dos pais de Laura sempre se sentiu, se respirou paz e harmonia. Equilíbrio. As coisas certas nos lugares certos, um culto do belo sem exageros, uma refinada mestria, o almoço ou o jantar sempre foram servidos e ainda hoje com regras de eficiência certas, nobres direi. Se eles fossem da nobreza. Penso, a mesa longa em madeira de carvalho, uma toalha em linho imaculada de branco, e as loiças, porcelana Vista alegre. O mesmo serviço ou parecido, os copos em cristal Atlantis vejo no copo alto de balão onde bebo, talheres em prata, os cabos trabalhados em baixos relevos, balanceados no peso, obras de arte autenticas, dá gosto comer assim aqui, qualquer simples comida aqui assume um sabor para lá do óptimo, esta casa, esta família emana um calor humano que nunca encontrei em lugar nenhum.
Mas sou eu que sou demasiado ausente, demasiado habituado a viver no mar, com os gestos automatizados e rotineiros. Agora tudo me parece um deslumbramento.

Levo o meu pensamento a mais de mil processamentos de informação por segundo, é um tropel de recordações de sensações de emoções esquecidas, adormecidas em mim que regressam todas de uma vez, tantas que me fazem ficar ausente por breves momentos que se notam sempre.

Fernanda regressa com uma travessa fumegante. Cabrito assado no forno com batatas que coloca frente a dona Rosário, regressa com outra pequena travessa de arroz seco alourado no forno e uma salada envolta num molho de maionese aromática. Fico a olhar meio surpreso. Devo ter feito uma cara de espanto porque a dona Rosário começou a gargalhar, – não te disse João que hoje o almoço era uma data de coincidências. Como sabia que vinhas? E como sabia que estes são os pratos que aprecias? – Não sabia! Mas o facto é que aqui estamos hoje, e como tal aproveitemos o momento.
Diz enquanto me serve um naco de cabrito suculento e algumas batatas.
Aguardo que todos se sirvam para provar o cabrito, está excelente.
– Então! Gostas? Que tal está de sabor, interroga a dona Rosário, enquanto Armando me enche de novo o copo, e eu começo a sentir o efeito do vinho em mim a amaciar-me os sentidos, a folgar os músculos, a abaixar a tensão dos nervos.
– Como calcula não tenho palavras dona Rosário. Tudo aqui está perfeito, direi demasiado perfeito para a vida a que estou habituado.

Armando retoma a conversa de novo – Então andas pelos mares do Pacífico? Questiona. Mas isso é muito longe. – Olha lá, e esses mares não são perigosos com os temporais que por lá andam? Costumamos ver nas notícias, ainda á uns anos, lembras, o Tsunami que varreu as costas da Indonésia com aquela devastação toda, por onde andavas?

Claro que lembro Armando. Nessa altura estava em Melburne.
A navegação agora é mais segura, temos sempre informação meteorológica ao momento, rotas, tempos, ventos, tudo. Os satélites vigiam lá de cima, temos de ser atenciosos ás informações que chegam e decidir da melhor forma. Agora não se navega à aventura, temos prazos a cumprir, planos rígidos de segurança, tempos de chegada e de partida, os navios valem milhões, e no fundo tudo é um negócio, e os negócios tem de ser rentáveis para valerem a pena. Por isso os capitães dos navios são quase todos europeus, porque estamos habituados a navegar e não facilitamos, só os tripulantes são naturais dos países das cercanias, Singapura, Paquistão, Indonésia, Malásia, uma mistura de raças e de credos que é preciso saber gerir com muito cuidado a bordo. Costumo fazer equipa com um imediato canadiano, o chefe de máquinas é alemão assim como o primeiro maquinista, todos os oficiais que navegam comigo são ou europeus ou americanos.


Já naveguei com alguns marinheiros portugueses e brasileiros também, mas em viagens de um lado a outro. As tripulações estão sempre em mudança, o que por vezes se torna muito difícil de gerir. Acontecem por vezes falhas a nível de segurança a bordo em algumas aflições por que passamos por falta de prontidão e preparação da tripulação. Mas é tudo uma opção das companhias. Baixos salários e baixa preparação dos marinheiros, alguns nunca andaram no mar, e os barcos são a porta de saída para fugirem à miséria nos seus países de origem.


( Continua)
Fotografia de Barcoantigo em 2008

1 comentário:

Sónia disse...

Gostei.Muito! A história está mais densa, gosto das descrições, completas sem se tornarem cansativas, não existem palavras a mais...Muito bom mesmo. Espero ansiosa e desejo que não demore muito o reencontro, estou certa que conseguirei visualizar o brilho dos olhos das personagens através da tua escrita.Até breve(espero). Beijo