domingo, outubro 22, 2006

Divagação de ti…


Na minha cabeça passam muitas histórias ao mesmo tempo. Chamo-lhes histórias para não dar outro nome qualquer. A minha cabeça já não é o que era antigamente.
Ás vezes deixa-me ficar mal. Está a deixar-me ficar mal muitas vezes seguidas. Ou então sou eu que confundo as histórias e as omito ou as guardo. Uma espécie de cofre com chave e código secreto de alta segurança. Tanta que até eu me perco da história ou a própria história não existe fora da minha cabeça.

Mas hoje estou feliz. Soube de ti. Porque me parecias já, mais uma história na minha cabeça e não quero que sejas. Pelo menos tu. Não quero que sejas mais uma história na minha cabeça, daquelas a que nem eu já tenho acesso. Porque a minha cabeça já não é o que era dantes. Acho que entre o dantes e o agora presente em que soube de ti, e te escrevo, se passou alguma coisa. Alguma coisa que está dentro de mim escondido. Mas é culpa da minha cabeça mesmo, eu acho, porque já não sei o que é, mas se passou. Os anos passam. Os dias passam. As horas passam. Os minutos passam. Acordo e adormeço todos os dias, e as historias, ou serão estorias? Não sei. Qualquer coisa se passa, porque a minha cabeça regista e depois guarda e depois eu já não sei onde ficou guardado e fico aflito.
Por vezes tudo isto é uma espécie de filme. Eu estou no cinema. No ecrã passa um filme com som surround, efeitos especiais. Luz, cor. E tu estás lá. És a personagem principal. Adoro a tua interpretação. Venero-te. Admiro-te. E tu estás lá. Eu é que sou anónimo e mero espectador. Nem te posso oferecer um ramo de flores. Nem posso esperar um autógrafo à porta do teu camarim porque és uma artista de cinema. Ainda se fosses uma artista de teatro. Tinha a remota possibilidade de ir aos camarins e descobrir o teu nome na porta em letras douradas, ficar esperando para te oferecer as tais flores. Seriam rosas vermelhas. Gosto delas vermelhas porque significam paixão. Mas assim não sou capaz. Volto à minha cadeira na sala escura deste cinema onde te contemplo. Agora estou a escolher a sala, a minha cabeça processa a informação que existe como um computador. É mais lenta porque é antiga, do tempo das válvulas. Pesada portanto, em contradição aos modernos portáteis com não sei quantos gigas de velocidade e uma memoria de dúzias de elefantes pelo menos. Definitivamente eu não sou assim. Ouço Brel no momento, não vem ao caso, mas ele é ainda mais antigo que eu e canta, coisa que eu não faço. Canta e eu escuto as suas palavras e deixo-me ir na sua voz. Sou um apaixonado pelas canções francesas, gosto da sonoridade da Edite, do Leo, do Brel, sei lá. Gosto. Não se explica. Sente-se.

Ainda estou a processar a informação que tenho escondida no cérebro. Escolho a sala de cinema. Socorro-me das minhas memórias, dos meus tempos de cinéfilo. Acho que devo escolher uma sala emblemática para te contemplar no ecrã. Mundial, Monumental, São Jorge, Tivoli, Lettes, Batalha, eu sei lá. Algumas salas já não existem, outras são centros comerciais outras não sei o que são. Olho-te então numa pequena sala estúdio intimista, com as paredes a negro. Umas luzinhas vermelhas nos degraus e números a branco brilhantes, espécie de marcas de uma pista de aviação de emergência. As colunas estão dispostas ao redor em 5.1 este moderno sistema já ultrapassado pelo 7.1 ou outro que surja por ai. E a tua voz, o teu riso entoam por dentro dos meus ouvidos em ondas sonoras que são vagas de um mar ora calmo ora violento, e eu como sou um homem do mar sinto-me como em casa, não interessa a tempestade ou se hoje chove. O teu riso, a tua voz, são o alimento para os meus ouvidos. E o teu rosto, o teu olhar não tem explicação. Como eu costumo dizer existem coisas que não se explicam, sentem-se. Não gosto de te explicar, gosto de te sentir o que é verdadeiramente mais reconfortante. E esta sala não existe.
Estou ainda no cinema. Alheio-me do enredo do filme, só de ti quero saber, espero que dure mais de quatro horas, numa realização do Manuel Oliveira pelo menos. Assim tenho tempo de me abarrotar de ti, de saciar a vista. Conhecer a tua arte de representar. Espero que possas sair do ecrã e vires então sentar-te à minha beira a assistir ao resto do filme. Sabes, já vi isto uma vez no São Jorge, um filme do Woody Allen: Star dust memories, se não me falha a lembrança. O artista principal saiu do filme e foi uma confusão. Também me lembro de uma outra história passada na Fuzeta no cinema Topázio, mas não vem para o caso esta lembrança.

Vês! A minha cabeça a misturar as histórias. Já não sei onde ia eu. Tenho de parar e fechar os olhos uns momentos para que regresses. Espero que regresses, porque eu confesso que não sonho, pelo menos a dormir. Descobri um mecanismo em mim que se desliga completamente. Fico ausente. Por isso sou um marinheiro ausente. Por vezes dou-me conta que ando ausente mesmo acordado e não me apercebo das coisas diárias. Os testes nucleares na Coreia do norte, os assassínios dos jornalistas na Rússia, os massacres em África, os atentados suicidas em Israel, os Palestinianos à pedrada uns contra os outros, uma espécie de intifada santa portanto eterna como o Cristo. As mortes no Iraque, os atentados no Afeganistão, a loucura do Bush, espécie de Deus moderno e visionário. As mentirinhas do nosso primeiro-ministro. O Portugal cada vez mais pequenino que somos. Uma espécie de monarquia ibérica que querem que sejamos e se calhar tem razão. (Afoguem os velhos do Restelo todos de uma vez. Afundem as caravelas e as naus que partiram do Tejo à descoberta do novo mundo, porque já não existem a não ser na memória. Esqueçam a língua porque ela pertence à Galecia portanto não é nossa…) Ás vezes ando ausente, mas acho que é uma espécie de protecção pessoal, um anti vírus que aprendi dos computadores. E já me desviei de novo de ti. A minha memória é assim como um vento que se desvia ou como um rio selvagem em busca da foz. Como já não temos rios selvagens não encontro nunca a foz e ando meio perdido para não dizer ausente.

Pronto acabou o filme. Foste embora. Agora sei que te posso encontrar numa sala de cinema qualquer, daquelas onde se comem pipocas e se bebem coca colas ao verdadeiro estilo americano enquanto no ecrã se desenrola a trama da vida. Gosto destas coisas modernas e vazias. Quando abandono a sala nem sei já o nome do filme, mas isso é um defeito meu, não do filme. E tu? Tu não és um filme ou és? E tu? Olha as histórias que invento para te fazer esta pergunta simples. Tu quem és?
Gosto tanto de ti nos momentos breves em que sorris. Gosto tanto de ti quando sei que me esperas. Eu é que nunca chego. E invade-me uma tristeza difícil de explicar por palavras porque é uma tristeza interior que não sinto em palavras. Mas passa como passam os dias e os anos e as horas ou os minutos que antecedem as horas, ou os segundos que antecedem os minutos. A vida é um anteceder de coisas que acontecem no futuro próximo, porque no presente estou eu e tu és a minha estoria presente, para a qual ainda não encontrei um final feliz ou uma continuação capaz de te prender ao guião. É difícil portanto este meu papel de artista das palavras, não poeta, que não o sou, mas criador de palavras, criador de sonhos, porque tenho já a plena consciência que as palavras que escrevo não são meras palavras, encontram sempre o tal porto de abrigo no coração de quem lê e sente o que elas querem dizer, mesmo que não digam ou passem só, de uma simples criação especulativa do cérebro em movimento atando as pontas das histórias que sucedem, construindo assim uma espécie de rede onde vão emalhar os sonhos misturados com os peixes cor de prata.

Hoje soube de ti. Coisa breve. Um relâmpago da memória. Não és uma história inventada. Invento a tua ausência para te sentir próxima, isso invento, porque não te posso ter por perto. Mas também não tem importância, isso. Assim posso criar a tal obra do artista, uma espécie de escultura perpétua no tempo. Chamo-te de minha deusa, parece uma coisa pagã. Minha deusa. Mas não é. Não sei ainda é outro nome para denominar esta escultura. Dou-me conta que não precisas de ser real. Dou-me conta que não precisas de ter um corpo físico belo e perfeito, preciso só que existas em mim, a minha criação de artista e assim posso dedicar-te os meus pensamentos, as minhas palavras, a minha admiração silenciosa, o meu querer, quando fecho os olhos na esperança que chegues e me faças uma festa no cabelo, ou me brindes com o teu sorriso maravilhoso, ou me olhes de olhos nos olhos, o teu olhar que mais parece o sol. Perdoa-me o não olhar-te de frente, de olhos nos olhos, é que o sol é muito forte e a minha vista já começa a dar sinais de fadiga, tenho que a proteger com uns óculos grandes, escuros para que tu ao fitares-me, não possas ler e assim saberes o que o meu olhar revela e eu por timidez não tenho a coragem de te falar. Escrevo-te. É outra forma de te falar. Escrevo-te e as palavras escritas ficam. Se guardares as folhas onde escrevo, se fizeres um print como se diz agora, ficas com as palavras escritas, porque as palavras ditas quando se soltam pertencem ao passado e são breves, escassas, por vezes têm um eco que se prolonga por segundos, mas para isso teria eu de estar a chamar por ti num vale propicio a essa faculdade para o eco se propagar. Como de certeza não te encontro num vale, não te chamo, fica em mim essa dúvida. Se existes também num vale montanhoso onde eu te possa buscar. É mais simples e menos cansativo escrever-te. Podia ligar-te mas acho que mudas-te de número, nunca atendes, e as mensagens que eu te mando também não obtêm respostas. Tenho uma função activada no telemóvel que se chama relatório e que quando te mando uma mensagem diz sempre: entregue. O meu problema aqui e que me leva já a desistir, é que não sei a quem é entregue a mensagem. Não obtenho resposta, não obtenho um eco, não obtenho nada. Assim escrevo-te. Ás vezes cartas, mas também essas já rareiam por não saber mais o que te escrever. Acho que estou a ficar sem palavras, resumido ás memórias, apagado dos sonhos, acordado ausente do sentir. Não sinto nada já. E isto é outra história que começa e não sei quando acaba, ou se me importo em que tenha de acabar, porque ainda não descortinei onde começa o principio ou se me encontro a meio de algo. Tudo é bastante confuso em mim, sombrio como as paredes da tal sala de cinema intimista que falei atrás. Não sei se existem salas assim. Na minha cabeça existem e tu estás lá. E tu destacas-te no fundo da tela. E tu és luz branca. E tu és. E tu és. Tens que ser o amor. Só podes ser o amor. Porque para mim o amor é branco e tu és branca na tela, portanto por associação simples de ideias tu és…eu é que não sou nada. Não existo. Tenho de ter cuidado para que não confundam e pensem que eu existo. Eu não existo fora de ti. Não sei viver fora de ti. Tu és a luz. Tu és a vida. Eu sou só a terra árida onde se plantam as sementes na esperança que germinem. E esta já começa a ser uma outra história. Tenho de ter imenso cuidado, uma atenção redobrada para não me perder. Porque hoje nos tempos modernos em que vivemos, já não faz sentido que me perca. Se existem gps, que dão a localização quase exacta. Se existem satélites que focam todos os lugares da terra com uma precisão que até custa a crer. Se Internet dá a possibilidade de navegar por dentro de tudo até das entranhas onde corre o sangue. Para que me vou eu perder. Até parece que não sou deste tempo. Sou. Mas sou muito ausente. Essa é a verdade que descubro aos poucos em mim. Restam-me as palavras a ti. Não te digo que te amo. Estaria a mentir. Porque para amar temos que ser dois, esta é uma constatação que observo. Temos que ser dois no mínimo e eu não existo. E tu és uma artista na tela da tal sala do cinema com as paredes negras e o som surround.
E tenho no momento uma janela de onde observo a rua torta e deserta. O céu meio cinza porque hoje choveu. Quatro rosas tardias numa cor rosada e lavada pela chuva. Um diospireiro quase sem folhas e sem frutos. E este é o mundo que observo no momento, o mundo real. E na rua, ás vezes, mas raramente, passa um carro com pessoas dentro, que são outros mundos e outras histórias que não quero nem posso nem devo conhecer, porque são de outro tempo, o tempo delas. E o meu tempo é teu. Hoje é por inteiro teu. Hoje só tu existes em mim. És tu que bates ritmada no meu coração, o músculo grande e vermelho como as rosas de paixão que te falei és tu. E andas por dentro de mim. Descobres-me todo na plenitude. Vais a cada poro do corpo, a cada vaso capilar, à ponta dos dedos. Até à ponta dos meus cabelos já grisalhos. Descobres-me totalmente. Fico sem roupa, nu. Completamente nu aos teus olhos. E não sei se me excite ou me tape com as mãos num gesto de pudor desnecessário porque estás por dentro de mim, e sabes tudo de mim. Os meus segredos não revelados, os sonhos ainda por sonhar, as histórias por contar que andam bailando no meu cérebro, baralhadas por excesso de informação, e eu ter um processador lento e pesado. Sabes tudo de mim. As chaves secretas, as passwords de acesso aos ficheiros guardados não sei onde um dia. Sabes tudo mas tudo de mim. Eu é que não sei rigorosamente nada de ti, e tu não fazes rigorosamente nada para que eu saiba e deixe de não existir, e passe a existir com vida própria fora das palavras escritas, e possa ir ter contigo aonde te encontres. Possa entrar nessa tela gigante do filme que vi, e onde tu eras a personagem principal, e posso estar como adereço no cenário onde tu vais pisar. Isso me chega porque o importante és tu, e eu sem ti continuo a não ser nada e a ser inútil, porque sem ti não vivo, porque me alimentas o sangue e me fazes bater o coração.

Na minha cabeça continuam a passar histórias, e eu continuo a chamar-lhes histórias porque efectivamente não sei que outro nome lhes dar, porque não são amor, nem desejo, nem paixão, nem outra coisa parecida. Mas o que sinto quando sei de ti. As noticias poucas que chegam. É um estremecimento interior forte. E então sinto-te acelerada em mim. Um calor que se espalha ao corpo. O sangue aquece porque és tu a responsável pelas batidas do coração que tenho.

E isso não é amor é sobrevivência.

Outono de 2006

6 comentários:

Anónimo disse...

grande imaginação; e tão bonito comparares a que dizes ser a tua deusa com a luz branca das telas dos cinemas :) depois o final, empolgante! A conclusão que afinal todos chegamos: nao é amor, é sobrevivência. Claro, precisamos para sobreviver de algo que nos desperte, nos deixe a sonhar, o coração a bater,o nó no estomago.. sentir-mo-nos amados, tocados, sentir novas emoções que dêm sentido à vida. tal como conversamos há minutos... quase que falamos do mesmo nos nossos posts. Tu, de uma forma longa e sucinta. Eu de uma forma mais curta e mais secreta. e contudo a mensagem é a mesma ou não?
beijos

Anónimo disse...

São pequenas grande coisas que fazem com que nos sintamos vivos.
O texto bem construído, com imagens bonitas, analogias bem conseguidas, mas a meu ver, um pouco repetitivo nas ideias. Sei que és capaz de fazer melhor.
Beijinhos

Sónia disse...

Comecei a ler devagar e a dado ponto dei por mim a acelarar, como se tivesse pressa, como se fosse para algum lugar...Curioso, quase te vi, a forma como estavas a escrever, essa furia, esse fogo, esse deixar vazar a alma pela ponta dos dedos.Acho que não deves ter parado muito, foste deixando sair...Faz um bem terrivel quando damos vida ás palavras, quando soltamos a alma no mundo das letras, não faz?
Senti-me bem porque senti liberdade na viajem que me levaste...Nesta sala de cinema, neste filme! Adorei o fim: Resumiste tudo!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

...è, quando começas perdes a noção do tempo...

Su disse...

eu que sou realizadora de tantos filmes....entendo.te...pois minha cabeça tantas vezes ausente em filmes que faço.os tão presentes...
gostei muito de ler.te
dez.me bem passar por aqui
jocas maradas

APC disse...

Estou estraçalhada com esta história... De amor.
E tenho duas coisas para te dizer, uma sobre o Amor, outra sobre as Histórias:

1) "Amar é um mar bravio de ondas e ventos sem porto nem enseada". (Ramón Lull)

2) Respondi ao teu último comentário no meu blog! ;-)