quarta-feira, agosto 16, 2006

Não sei se eras tu?


Não sei se eras tu?
Fiquei a tremer por dentro porque não estava preparado para te encontrar. Não sei se eras tu. Queria que fosses mas não ganhei a coragem suficiente para aceitar uma rejeição tua ou o fingires que eu não existo. Por isso não me aproximei. Agora fico na dúvida. Eras ou não eras? E isto consome-me. Estou já habituado à ausência. Haja o que houver. Eu sei que não voltas. Eu sei na plenitude do sentir. Tento substituir-te, mas são enamoramentos precoces, ninguém é como tu porque és una e omnipresente em mim. Espécie de hera trepadeira que ganhou raízes por fora e dentro do corpo. Ninguém está ao teu nível. Eras, foste tudo. O resto são tentativas ou aproximações a ti. As imagens são sempre difusas. Só tu és perfeitamente visível mesmo na noite cerrada nas minhas navegações mar adentro, só a ti te sinto na brisa ou no vento forte da tempestade que fustiga as velas, retesa os cabos, abalroa o casco deste meu velho veleiro onde aprendeste a ser marinheira…És a brisa da manhã, o sol que nasce, o calor na pele, e eu aqui sozinho navego aproveitando a tarde quente, o vento de norte que me afasta de ti. Nada mais que uma viagem que me afasta de ti. Nada é já urgente, fora a angustia que sinto por dentro, e me faz ficar confuso e triste. Percorro um oceano imenso em tua demanda, e não tive a coragem de me aproximar a ver se eras tu efectivamente. Tem coisas para que um homem não está preparado, e eu não estava no momento. Agora estava, mas estou de novo longe. Navego rumo ao sul, sopra um norte fresco, aproveito o embalo bonançoso, o balançar ritmado do meu companheiro barco de viagens e escrevo-te de novo. Esta é a minha libertação de ti. O meu fantasma que habita por dentro e me faz ser assim, o olhar cansado, distante. O corpo sempre ausente insatisfeito. Vou só que é como costumo navegar, em solitário, o mar e eu sobre um pedaço de madeiras com alma o meu barco-antigo. Recordo-te ao meu lado junto à roda do leme no início em que tudo era estranho para ti, a novidade, a emoção, o quereres dominar o vento e o mar, aprendeste depressa que o vento e o mar não se dominam, são livres, fortes, amigos ou inimigos implacáveis sem compaixão. Aproveitamos o melhor de cada um, num respeito mútuo, nunca, mas nunca em momento algum os podemos subestimar, ou ultrapassar os limites sob pena de sermos engolidos pela sua fúria, a sua força. Subestimei-te também a ti, eu que sou um marinheiro habituado a ver ao longe, a entender os sinais do mar, das nuvens, dos pássaros a caminho de terra. Perdi-me de amores por ti a assim perdido deixei de ser eu para tentar ser tu, e isso não é um caminho seguro, de bons resultados, não podemos ser outro no amor, temos de ser nós, verdadeiros e unos. O amor é partilha, igualdade complemento um do outro. São precisos dois para amar lembras. Para amar na plenitude, assim é sofrimento porque é um amor sem eco, silencioso utópico, platónico. Sei lá as palavras para te explicar o que é no momento ou o que sinto. Já não te importas. Já não vale a pena. Mas gosto de pensar em ti, nos meus momentos de fraqueza em que me sinto a sucumbir, a fechar os olhos, busco-te com o pensamento e tu vens. Poderosa. Diáfana. Sublime. Transbordante de amor. E todos os meus males, os pensamentos negros, as dores, tudo desaparece e eu renasço em ti de novo fortalecido porque te amo e o amor é imortal. A sorte que tenho de te ter a ti como mulher feiticeira ou deusa que povoas os meus sonhos, os meus pensamentos, acalmas os meus temores, ajudas a vencer os medos e as fúrias dos ventos, a força do mar. Um dia regresso definitivamente a terra. Encalho o barco numa ilha distante, só nossa e venho embora. Irei em tua demanda. Irei. Chego tarde eu tenho a plena consciência disso. Demasiado tarde para mim, para ti, para nós. Nunca é tarde para o amor é tarde para amar o que é diferente do amor. Amor é o que sinto por ti, não sei é já se te amo. Pronto! Confesso que te amo ainda, que me fazes falta, que me sinto só. Incompleto. Amor é isso. Uma palavra forte, plena sentida, grande, redonda. O amor é redondo! Volto sempre para ti! As voltas que o mundo dá em mim…O meu amor é redondo!
Não sei se eras tu? Estavas de costas do outro lado da rua. Olhavas a montra, andavas às compras. Os sacos nas mãos denunciavam isso. O coração disse-me que eras tu, eu é que não quis acreditar no que os olhos viam e o coração dizia. Continuas bonita. O cabelo perfeito sobre os ombros. Continuas uma mulher plena. Os anos não passam, passo eu apressado.
Hoje é dia de Assunção dia de festa, 15 de Agosto. Durante uns anos, muitos, lembro que era dia de carregar o andor na procissão, tradição da família que se perdia nos tempos. Hoje já não. A família dispersou. Morreu a avó, acabaram os laços. Acabou a casa. O andor lá vai, aos ombros de anónimos…Desde miúdo que lembro isso, nunca te contei, a minha ligação à tradição da família, ao religioso, à fé demonstrada no sacrifício de carregar o andor mais pesado por quilómetros sob um sol quente, as costas a cederem pelo peso e o esforço para chegar ao final e recolher de novo para o ano seguinte, hoje nem lá vou, abandonei a terra o santo a capela.
Lembro também a festa na Póvoa na igreja junto à minha casa na Lapa a imponência da bênção aos barcos todos engalanados com bandeiras e as sirenes a tocarem em agradecimento ao santo protector de cada um. Sr.ª das Dores Sr.ª da Bonança, Sr.ª da Assunção, São Pedro, São José, Sr. dos Navegantes. O santo particular de cada um. Até estremecia o coração tal a emoção que se sentia nesse tempo, o respeito instalado enquanto o padre Telmo fazia a homilia da bênção e os foguetes durante uma hora troavam no céu. Único e assustador também.
Hoje não vou a esses lugares da memória, deixo-os dentro de mim como os senti, para não serem maculados com a globalização do progresso. Nem sempre o melhor progresso, coisas de cada um…Tu sabes que eu gosto das coisas antigas, das tradições que se perdem. Tu sabes que gosto do mar. E o mar é um sacrifício para o pescador. Os naufrágios que assisti. Os amigos que se foram… Tu sabes porque muitas vezes te falei nisso. Acho que ainda te lembras. Se não te lembrares já não faz mal. Não será importante em ti. E estas são recordações tristes, portanto esquece o que te disse ou o que desabafei contigo nos nossos serões junto à lareira ou nas navegações que fizemos juntos… Gostava de te ver com a minha camisa de xadrez e a minha boina basca na cabeça e os cabelos em cachos sobre os ombros ao vento quando vinhas ter comigo pela manhã e fazias durante um tempo o quarto ao leme, gostava de contemplar a tua atenção à agulha a corrigir os desvios por força das vagas pequenas a saltitar por sobre o mar imenso. As saudades que tenho da tua companhia a bordo. Acho que o barco nunca mais foi o mesmo sem ti, perdeu a alegria deixou de ser altivo e dócil ao movimento do leme. Envelheceu junto comigo. Precisa de uma reforma profunda desde a quilha ao convés…Está pesado e cansado de tantas milhas náuticas. O tempo agora é imenso, custa a passar, as noites são longas, as vigias penosas, faltas tu a bordo e o barco dá-se conta da tua falta. O barco tem alma. A alma da gente. Não sei da tua?
A minha perde-se na ardência deixada na esteira…
Lembro um poema, acho que nunca te falei que gosto de ler poemas, no entanto agora escrevo-te, não sei se algum dia vais ler o que escrevo para ti, não sei se serão poemas algumas das palavras a ti dedicadas, sejam o que forem, o importante é que são sentidas porque saem de dentro como a água das entranhas da terra pura. Portanto são puras as minhas palavras a ti porque saem de dentro de mim onde a poluição ou a contaminação não chegou ainda. E lembro um poema. Nunca te tinha falado nos poemas que gosto acho, mas deste gosto e quero partilhar contigo, não sei se conheces o autor, Hamlet L. Quintana e diz assim:

…Ninguém tem o rosto da minha amada
Um rosto onde os pássaros
Distribuem tarefas matinais.
Ninguém tem as mãos da minha amada.
Umas mãos que se aquecem ao sol
Quando acariciam o pobre da minha vida.
Ninguém tem os olhos da minha amada.
Uns olhos onde os peixes nadam livremente
Esquecidos do anzol da estiagem,
Esquecidos de mim que os espero
Como o antigo pescador da esperança
Ninguém tem a voz com que fala a minha amada.
Uma voz que nem sequer roça as palavras
Como se fosse um canto permanente.
Ninguém tem a luz que a rodeia
Nem essa ausência de sol quando se abisma.
Às vezes penso que ninguém, mas ninguém, tem isso tudo,
Nem sequer ela mesma.

Gostas?
Eu gosto deste poema por isso hoje me apeteceu partilha-lo contigo.
Porque ainda estou na dúvida se eras efectivamente tu que estavas na rua ontem. Pena que eu tenha vindo a descer e tu estivesses do outro lado. O coração diz que sim que eras tu, mas o coração já diz coisas estranhas, sente coisas estranhas, está estranho. Vou estar atento agora e subir a rua Formosa do lado onde estavas, quem sabe o destino não me prega uma partida e tu está lá de novo. Agora vou estar preparado, eu acho.
Mas verdadeiramente não sei se eras tu.

João marinheiro ausente
Praia de Fornelos 15/08/06
Fotografia Barcoantigo

11 comentários:

joshua disse...

Lembro-me do tempo em que ver as mulheres da minha paixão era uma emoção que me varava o corpo todo.

Tal é esse poder que os orientais resolveram tapá-las, às mulheres.

(Escrevo e ouço o dobrar dos sinos enquanto se enterra o meu primo Paulo, com 37 anos, e chove, chove desalmadamente).

Abraço

Bela escrita.
Belo blogue.

Anónimo disse...

é bom ser assim, livres e fortes, como o vento e o mar...
Beijo livre como o mar

Su disse...

gostei de ler.te...apesar de tanto lembrar e esquecer...

jocas maradas .. de tempo

Frederico Pereira disse...

Ao ler-te sinto em mim a tua solidão, a tua dor, a ausência de quem há muito se havia acostumado, padeço da mesma dor, e em silêncio, como tu, navego, não pelos mares, pois me falta a habilidade no mar, mas pelos céus em planadores e monomotores que me fazem ver de cima as imagens de vilas, campos e mares, onde tudo é pequeno, como pequeno sou diante de tudo.

Saudações Marinheiro desse Aviador que vos admira.
Mazal Tov!

APC disse...

Bolas, que sentes e escreves!
Gostei da viagem p'los sentires.
Como sempre!:-)
Bjs

PS - "enamoramentos precoces" ou "efémeros" (porque terminam precocemente)? Terá sido um pequeno acto-falhado de quem já só pensava no que sentia?:-)

Sophie disse...

Existem pessoas que têm cheiro de passarinho quando cantam. De Sol quando acordam. De flor quando riem. Ao seu lado, sentimo-nos no balanço de uma rede que dança gostosamente numa grande tarde, sem relógio e sem agenda. Existem pessoas que têm cheiro de colo de Deus. De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul.
Costumo dizer que algumas almas são perfumadas, porque acredito que os sentimentos têm cheiro e tocam todas as coisas com os seus dedos de energia.
Tu és uma pessoa assim, João.
Obrigada pelas tuas palavras.
Sophie

Anónimo disse...

ha muito tempo que n
ão lia nada tão belo. E eu leio muito

APC disse...

Há uns tempos atrás (um par de meses) disse-me alguém muito especial de quem perdi o rasto há mais de 15 anos, reencontrando recentemente:
- "Naquela esplanada... Parecia-me mesmo tê-la visto. Dei uma volta, e outra, sem saber se sim, se não, sem conseguir saber".
E depois não parou, e não soube; não quis parar se não fosse, não quis que fosse sem que eu tivesse parado".

É autêntico. De tal forma, que eu já aqui tinha vindo, já havia lido o teu texto, e não tinha tido muita coragem de o comentar. Saiu-me hoje. :-)

PS - Soube-o, por fim.
Não, não era eu.
Por falta de coragem também.

APC disse...

* Ressalva: não quis que fosse sem que tivesse parado (e sem aspas no fim).

Sophie disse...

Andas triste João? Não desistas, luta por aquilo que queres.
Beijos muitos
A.

Anónimo disse...

João querido...
nem sei o que dizer.



Quero muito que sejam apenas palavras escritas.Que não seja a vossa realidade.

Não sei da C.
Como estás?

Grande abraço meu amigo dos mares.