Quero dizer-te que a tua
falta também me incomoda.
A tua falta também me
incomoda porque a sinto.
E as madrugadas são longas
agora que se aproxima o equinócio de inverno em nós.
Também te quero dizer para
que saibas que gosto de receber cartas. Dou-me conta que não recebo cartas faz
anos por não ter um porto de abrigo certo. Um endereço postal, um sítio. Dou-me
conta.
É bom escrever. Muito bom
escrever, mesmo que seja uma carta a um anjo viajante.
Faz tanto tempo que
abandonei a escrita em mim, e é preciso que me empurres para voltar às palavras
sentidas.
Tens razão, por vezes na
loucura que me assiste ando por ruas sem sentido. Os sentidos são os das
emoções do corpo, e esse repousa como o velho barco na praia alquebrado.
Observo de longe, sou um
espectador furtuito, de ocasião.
O velho lobo-do-mar arfa
aflito, o peito dói, o ar não chega para oxigenar o coração. Doido, um dia
deitou o coração ao mar, jogou-o borda fora por ser um coração inútil. A falta
que lhe faz esse coração mesmo velho e inútil. O lugar dele era ali, bem dentro
do peito, onde confluem todos os caminhos, todas as ruas de emoções. Que
importa que sejam de sentido único ou em contra mão. Só se vive uma vez, só
estamos no exacto momento no milionésimo de segundo no universo imenso do
cosmos, uma única vez. E quando os olhos se encontram acontece um milagre, se é
que existem milagres, ou se expliquem. O coração desacerta-se arrítmico, e
todas as estradas e caminhos são agora avenidas que terminam numa imensa
rotunda onde circulamos de mãos dadas em sentido contrário. Os olhos aninham-se
uns nos outros e o momento é único. No céu um traço de luz rasga a noite, uma
estrela cadente, um desejo, um segredo. Uma jura de amor. Para sempre!
Observo a transformação
operada. Cismo. Para sempre é demasiado tempo…
Todos os anjos viajam, para
isso tem asas alvas de brancura e brisas leves em nuances perfumadas que deixam
rastos, traços de luz, ardência no mar nos dias de lua.
Por vezes eu próprio não sei
se serão anjos ou ninfas ou sereias no meio do mar alto, a imensidão húmida que
se entranha na pele. Por vezes imagino o toque da pele e a medo estendo os
dedos até ao teu contacto breve, electrizante. Então no universo paralelo,
imaginário, desabam os trovões e os raios de luz caem dos céus plúmbeos mergulhando
no mar e centenas de miríades de pequenos flocos de luz tingem o mar em prata e
ouro. As sereias de longos cabelos entoam cânticos enquanto os golfinhos
volteiam em acrobacias fantásticas de alegria e suprema sabedoria.
Sente-se no ar e na brisa o
aroma dos sargaços, o cheiro do sal, a humidade do mar cola-se na pele como uma
segunda pele e o corpo arrefece. O tempo avança monótono e certo na ampulheta,
grão a grão, em voltas e reviravoltas.
Por vezes eu próprio não sei
do tempo deveria saber, deveria saber olhar o tempo como se olha o horizonte a
descortinar uma vela. O mar já não tem velas, é por isso que perdi a noção do
tempo. Abandonei os barcos. Foi isso.
Nunca me perdoaste.
Abandonei os barcos e abandonei a luta pela sobrevivência dos pequenos e frágeis
barcos tradicionais…
Observo o tempo agora a
reencontrar o saber e chove.
Pequenas gotas frias que
percorrem a vidraça em sentido descendente até formarem lagos confinados ao
chão. Parecem rios. Parecem lágrimas e os teus olhos surgem com estrondo por
dentro dos meus alagados.
Não quero que chores, as
tuas lágrimas são preciosas perolas e eu não mereço perolas. A dor que sinto é
uma dor antiga, portanto não me incomoda já, coabita em mim. Não quero que
chores a minha ausência, porque um dia volto, cíclico como as estações do ano
ou o ciclo das marés.
Preciso de me reconstruir
como se reconstrói um barco. Tabua a tabua no lugar certo. Calafetar o coração
com estopa e breu, tapar todas as juntas. Vistoriar o casco, as obras vivas e
as obras mortas. O velame. O poleame. Levantar ferro, armar pano, afeiçoar ao
vento depois deixar ir, navegar rumo ao alto mar num bordo espaçado e longo,
preparar o regresso.
Sei o caminho de volta,
todos os velhos lobos-do-mar, tem as estradas e os caminhos escritos nas estrelas,
as marcas, as conhecenças a terra numa derrota estimada numa navegação á vista.
Todos os lobos-do-mar sabem o norte e a declinação magnética. Os azimutes na
carta, os rumos, os desvios da agulha, a altura do sol, os sinais, o voo das
aves. Só os mascatos voam, voam, voam, milhares de milhas sem regressarem a
terra, só eles nos confundem, porque às vezes nos parecem anjos, só as asas
são de cor alterada, mas á distância de terra é só um pormenor pequeno.
Só os teus olhos são as
luzes do farol que nos guia na noite, os viajantes do mar. Se os apagas como
encontro as marcas do enfiamento á barra para regressar ao meu porto de abrigo
em segurança?
João Marinheiro
São Paio de Antas
Novembro de 2013.
Fotografia de Barcoantigo em 2013
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