“Às vezes, penso que é impossível que entendas completamente aquilo que
sinto”…
E esta frase anda de roda de mim,
bailando devagarinho, rodopiando, insinuando.
Às vezes paro para a observar.
Fico a olhar. Quer dizer. Finjo que não olho para que ela não se aperceba da
importância em mim. Às vezes para mim, é impossível eu entender o que sinto. E
ela anda de roda, volteia como uma pena que eu em miúdo atirava ao ar para ver
cair rodopiando, uma e outra vez até ficar cansado. Estou exausto dou-me conta.
A culpa não é tua. A culpa é só minha. E agora releio as palavras que me
ofereceste, e demorei a responder porque preciso de as assimilar em mim, porque
como tu, eu também não tenho palavras, e deveria ter, porque sou um homem de
palavras. Era um homem de palavras…
Tu tens o dom de me tirar as
palavras do pensamento e ele fica ocupado pela tua presença. Repara o
importante que és em mim. A tua grandeza em mim. E eu sinto-me casa vez mais
pequeno, a definhar nas palavras que já não sei dizer, porque se acabaram. És
tu que ocupas o pensamento. Sei perfeitamente que és um beco sem saída uma rua
de sentido único. Tenho de rever todo o código que aprendi faz muitos anos atrás.
Não quero ser apanhado em contra mão. Quero só a tua mão na minha que é algo de
completamente diferente e único. A culpa não é tua. Como diz o texto que me
ofereceste, não existe culpa. Existimos nós, e quando existimos nós, tudo o
resto é acessório, portanto dispensável. A mesa do café, o empregado que nos
serve os cafés e os outros pequenos pecados. Tudo pode ser dispensado. É como
se não existissem. Fica só porque eu não me importo e tu também não, o pequeno
pardal novito que se aquece ao sol em cima do muro, e do qual te chamei a
atenção. Ele pode ficar connosco porque também é puro.
Acredito que partilhamos
palavras. Essencialmente palavras. As palavras que gostamos. As palavras que eu
não sei e tu me ofereces, para que eu fique assim, demorado na resposta. Acho
que fazes de propósito para que eu me revele. Não me importo, posso é demorar a
resposta. Porque tem como todas as palavras que te digo de ser uma resposta
sentida, vinda de dentro, e não apanhada num qualquer sítio, num qualquer
livro.
O José Peixoto sabe dizer
palavras porque as sente como eu, ou eu como ele. Ficam-me cá dentro como uma
imagem projectada em ecrã plano as suas palavras que encerram e libertam tudo...”
E podemos dizer essa palavra dentro de um
beijo”...
Um beijo diz tanto. Um beijo diz
tudo! Nós nunca dissemos tudo um ao outro. Na maioria das vezes, eu também te
falo de memória, toco-te de memória, quero-te de memória, porque tu nunca
estás, está a tua presença em mim. E todas as palavras não chegam para me
dizerem o que sinto e não revelo. E tu insistes para que a revelação aconteça…
E tu não tens culpa de nada, e eu não tenho
culpa de nada. Acho que escolheste o texto correcto, exacto, frio. Que talha a
golpes de navalha em nós o sentir. Que dilacera aos poucos. Por isso te disse
que ficamos diferentes. Eu fico diferente, menos ousado, mais fechado em mim. A
tal carapaça instituída. Socorro-me de novo das suas palavras:
…” Nós
somos impossíveis e, no entanto, no entanto, no entanto, estamos aqui…”
Nem sei porque não encontro
palavras minhas, mas as do José Peixoto já dizem tudo, as minhas não diriam
tanto, e eu quero que digam muito. Não existe culpa. As minhas palavras é que
não são perfeitas. Por isso compro e leio muitos livros, destes escritores que
agora aprenderam a escrever as palavras perfeitas, que dizem tudo em poucas
palavras. Eu não sou assim. Acho que digo demasiadas palavras. Que ando com
rodeios, volteando, rodopiando. Exactamente igual. Como o efeito da tal frase
no início das palavras que te escrevo. Também ando às voltas…Um dia paro de dar
voltas e das duas uma, ou desisto. Ou o tal passe de mágica acontece.
Ganho-te aos pontos numa coisa, ao contrário
do José Peixoto sou eu que te ganho ao falar de mar, porque indiscutivelmente
sei mais de mar que tu. Eu, é que sou o João marinheiro. Mas não me importo,
ensino-te a saberes de mar e tu ensinas-me a saber de palavras.
Por falar em palavras, recordo o início das
nossas breves conversas, como gostava de ler um livro na tua companhia. O sítio.
Porque para se ler um livro é preciso um sítio. O sítio. Sei de memória onde
será. Na casa de chá, sobre os rochedos com a lápide em mármore e as frases do
António Nobre gravadas nas pedras em frente. Já não recordo o que diziam, mas irei
rever, assim como o mar da larga janela, e tem que ser num dia de Inverno ou de
Outono com chuva e vagas de espuma branca. O livro escolhes tu. Porque tu é que
sabes as verdadeiras palavras que me trazes a conhecer. Confio em ti na
escolha.
E continuamos a não ter culpa de
nada. Cada vez nos desencontramos mais. Rareamos a escrita. Deixamos de ter
tempo para nós. Dedicamos o tempo aos outros, e, no final estamos demasiado
cansados para nós. Mas nós é que somos verdadeiramente importantes. Demasiado
importantes. Tu para mim és! E um dia sem ti, é um dia triste. E não gosto dos
dias tristes. Gosto de ti. O que revelo mesmo sem querer. Mas dei-me conta,
estou na tal rua sem saída. E agora que já sabes, faz o favor de me fazer feliz
com a tua presença, porque sou feliz com pouco. Assim fui habituado de
pequenino e não é agora com esta idade que irei mudar e querer muito. Acho que
muito é demasiado e o que é demais estraga-se, ou tem tendência a
deteriorar-se.
E corro sempre o risco de usar as
palavras dele que me trouxeste para ler, e que motivam esta nova carta, para te
falar de mim ou de nós, porque a carte tem remetente e destinatário, e toda ela
se destina a ti, mesmo que fique sem resposta. Já te disse que me contento com
pouco. E saber que a recebes já me faz feliz. Agora se me quiseres mais feliz
ainda, responde. É que eu já escrevi muitas cartas sem resposta. Acho, fico na
duvida, se o destinatário existiu alguma vez, ou se tudo não passa de
imaginação minha.
Tenho uma imaginação atribulada e
se eu te contar o que imagino, não sei se me respondes, ou te enfadas comigo,
ou se me compreendes. Mas estou habituado a só eu próprio me compreender. Quer
dizer, eu tento. Na maioria das vezes desisto por ser missão impossível. Mas
não é impossível tu responderes a esta carta que demorou a ser escrita a ti.
Para ti. Dedicada a ti. E não te chamas Margarida, porque as Margaridas são
outras, e tu és Cláudia e esta carta é para ti.
Agora vou, e vou com as tais
palavras que me trouxestes a fazerem um bailado no meu pensamento, enquanto
escuto a música da Teresa que pergunta: …”Onde
é que está o meu amor… Onde é que está o meu amor…o meu amor onde é que foi…”.
E vou com um sorriso nos
lábios. Aprendo cada dia devagarinho.
Excerto de, Cartas a
Cláudia VI 2006
João Marinheiro
Fotografia de Barcoantigo em 2008