terça-feira, março 20, 2007

Nada sabes ainda...



Nada sabes de mim. Das minhas memórias esquecidas que invento hoje na tentativa de reviver a vida que sinto aos poucos se desprende do corpo cansado. Tu não sabes rigorosamente nada de mim
Das minhas memórias tão íntimas, das minhas músicas, as musicas que me acompanharam nos sonhos. As noites de insónia os amores proibidos. Porque tenho sempre amores proibidos em mim. Porque me sinto sempre uma ilha aqui nos sentires. Só, demasiado só. Tu não sabes nada de mim e não te dás ao trabalho de dedicares dez minutos do teu tempo para poisares o teu olhar em mim. Eu sei que é difícil de poisar o olhar, mesmo por dez minutos que seja para quem quer viver a vida a correr. Sei que tens pouco tempo e eu tenho todo o tempo do mundo deste e do outro que há-de vir eterno e sem tempo. Gostava de cavalgar o tempo por sobre as águas, por sobre os montes, por sobre as cidades, e todos os dias acordar numa distante e olhar nos olhos de outra mulher que não tu, que tens ares de feiticeira e me enfeitiças. Não sei olhar para outra que não sejas tu, e se olho nos olhos de outra são os teus olhos acusadores que vejo. Desvio o olhar, ou se insisto, é o teu olhar de novo que vejo e por não estares acordo. Abro desmesuradamente os olhos, sei que não és tu. Podias ser tu, disfarçada, a tentares-me como a serpente tentou o Adão. Mas não vivo no Paraíso. Vivo aqui nesta terra que não é minha, e é estranha. Sinto-me estranho aqui e ai. Mesmo quando estava à tua beira, nos breves momentos em que tudo parava e éramos só nós, me sentia estranho. Nunca te deste conta. Nunca reparaste que não te olhava nos olhos teus, nunca te falei com o coração aberto. Não sabes nada de mim nem dos meus medos, ou mais importante do meu amor por ti que é uma doença estranha. Não sabes dos médicos que já corri a queixar-me desta dor que sinto e não sei explicar. E todos encolhem os ombros todos me acham lunático, meio maluco. Eu aos poucos convenço-me disso. Meio maluco é o que verdadeiramente sou. Maluco verdadeiro.

Às vezes para me reencontrar leio um livro. Quando leio não sou eu. Afasto-me de mim e de ti. Às vezes choro a ler um livro. Porque não sou eu a ler o livro, mas um coração que sente e que ama. O meu amor é assim. Saudoso. Ausente até às lágrimas. Não tem cura. Os médicos não lhe encontram cura. O doido sou eu. E tu não sabes nada de mim e não queres saber. Nem dez minutos me dedicas do teu tempo sem tempo. Eu não me importo já. Espero eternamente. Na espera leio um livro. Outro. Só não leio os teus autores famosos, os autores da moda. Todo eu sou um marinheiro à moda antiga, portanto fora de moda já. Não sei se é por isso. Que possas ter vergonha de eu ser assim desta forma antiga fora de moda. Mas tu não sabes nada de mim e eu já não me importo.

Volto a um livro que me faz a companhia que tu não fazes. E fica-me por cá o poema a cair por dentro deste corpo magoado e deste coração cansado. Fecho os olhos e imagino as palavras que chegam como as águas de um riacho formado pela última chuva. Não sabes que o Inverno vai adiantado? E que hoje é um dia de verdadeiro Inverno, com chuva miudinha e vento e neblina daquela que nos faz estar vigilantes e atentos à navegação. Mas que sabes tu de mim ou dos barcos que amo se nem do meu amor queres saber. E as palavras do poema no livro que folheio fazem um murmúrio como as vagas de espuma cortadas pela proa fria do barco onde vou agora e me afasto outra vez….

...Vieram de longe. A pé
Na hora do sol sem sombra
E ensandeceram à procura da fonte
Agora vivem em casas de paredes grosseiras
E vestem-se de luto à espera da morte
É irremediável a solidão,
Costumam murmurar baixinho…*


São elas as palavras, que vieram baixinho na hora do sol no esplendor do zénite, na hora em que diariamente pego no sextante e tiro a posição exacta e depois de um emaranhado de contas e tabelas náuticas me reencontro no meio deste oceano de sentires. A água aqui é de um azul sem explicação. Uma espécie de vidro grosso transparente com reflexos brilhantes, espécie de adaga que corta e brilha ao sol. Os meus olhos estão cansados deste horizonte onde o sol se põe dormindo numa bola de fogo vermelho.


Foste o meu fogo. A minha ardência o meu calor. Hoje és um fogo-fátuo, um fogo de Sº Telmo. De ti ficam as cinzas no meu coração, a mortalha de pano-cru com que embalo o sentir.


* Quando as estevas entraram no poema, Graça Pires

João marinheiro 2007
Fotografia de Barcoantigo

9 comentários:

Anónimo disse...

hoje és um fogo que já ardeu
voluptia num ar amarelo
esfumado em rodopios frenéticos
esbatendo-se, esbatendo-se..
sobrando-me só nesta tela
que te pincela
que me pincelo.

Eme disse...

É verdade, ao fim de algum tempo percebemos que no fundo ninguém sabe nada de nínguém,julgando saber, de modo errado que se entende o que vai na alma do outro por completo. E já ninguém perde dez minutos, apenas porque não quer, ou porque talvez tenha medo, aquele medo de voltar ao mesmo,medo que aconteça tudo outra vez... E às vezes é assim: só nos restam mesmo as palavras.

Maria disse...

Perdi-me nas tuas palavras.
Devo ter o corpo cansado...

Um abraço

rtp disse...

"Vale a pequena dedicar dez minutos" do nosso fugidio tempo "para poisar o olhar" neste post e lê-lo sorvendo cada precioso pedacinho destas bela palavras. Sabe bem ler estas memórias de um "dia de inverno adiantado", neste dia de Primavera recém-chegada.

isabel mendes ferreira disse...

de ti só sei que gosto de te ler....




MUITO!



bom dia POESIA.



abraço.

Clotilde S. disse...

Gosto deste teu jeito de sentir, dos barcos beijando as vagas, da gaivota que se desenha no ar.

Bruna Pereira Ferreira disse...

É triste, mas bonito.
Como as mãos duma velhota que faz um bolo caseiro com sabor a canela...

:)

Anónimo disse...

..ora;..e se não houvesse armadura?..já viste que queda tão dura?!..

(não tinha nada pa fazer e apeteceu-me pôr isto aqui)
he.he..ás vezes apetece-me ser tão absurda, porque será?)
olha, entretando beijocas e bom wekend; (deves ser todo torrado do sol ó quê?
smak! smak!

Suspiros disse...

Dorido, sedento mas ainda ávido! Um marinheiro simplesmente não desite. Navega o que for preciso.

Uma excelente semana e um tempestivo emergir!
:)