sábado, outubro 14, 2006

Berlengas...


O pai torceu um pé a jogar futebol com os marinheiros da vedeta. A Dourada que já não existe. Foi a primeira vez que estive a bordo de um barco em ferro, um barco da marinha, pela primeira vez vi e toquei num motor marítimo. Um enorme motor marítimo de um barco de guerra. Gostava de ir a bordo com o pai, a todos os navios. Dos que mais gostava eram os Russos. Não nos entendiamos a falar mas por gestos dominávamos o mundo. Ficaram por cá as memórias de uma dessas visitas…
Um dia encostou ao socairo da ilha um enorme navio cinzento, de madrugada. Uma cidade cheia de luz como eu pensava sempre. De manhã o pai e o chefe, vestidos com as suas fardas e os chapéus com os amarelos reluzentes foram a bordo, fui com eles e soube que era um navio fábrica. Os russos arranhavam o inglês e o francês, mais gesto menos gesto, mais cigarro, menos copo, umas quantas palmadas nas costas, uns apertos de mão, o comandante, homem impressionante, com uma calma no rosto que eu nunca tinha visto lá nos disse que tinham uma avaria num gerador. Um anel do colector estava partido. Na altura não se podia ir a terra, eram comunistas e os comunistas estavam no forte em Peniche. Lembro de ver alguns trabalharem a limpar as bermas da estrada enquanto os guardas de espingarda na mão os vigiavam… Os russos eram portanto gente perigosa, estranhos, diferentes.
Afinal não eram, os russos que eu conheci eram como o pai. Sorriam, fumavam, bebiam, falavam alto, gargalhavam e tocavam umas músicas dançando uns com os outros. Gostei daqueles russos comunistas que deviam de estar presos como os comunistas portugueses, mas não estavam.
Levaram o pai a ver as máquinas e eu também fui, fiquei abismado, não eram máquinas, eram dezenas de máquinas reluzentes, potentes motores. Pensava eu que os 12 motores que tínhamos na central na Berlenga eram já muitos motores, que enganado estava. Mostraram ao pai a avaria no gerador, o pai dizia: - No problem. No problem. Ok! Ok! Um inglês de doca como ele dizia…acho que os marinheiros tem uma linguagem secreta…entendem-se. Os russos não tinham um torno grande para tornear um anel suplente, mas tinham o bronze para fazer a peça, o pai trouxe a peça defeituosa e o bronze para a ilha, veio um chefe de máquinas com ele arriscando-se a ser preso por estar em terra estrangeira sem autorização. Mas alguém queria saber, estávamos ali abandonados à nossa sorte no Inverno. O barco ás vezes nem sequer atracava na ilha devido ao mau tempo. Gostava desse tempo de maresias, de ventos fortes, do mar cinza e branco da espuma das ondas, dos gritos das gaivotas, do troar das ondas nas grutas… Uma altura estivemos quinze dias sem que o Berlenga atracasse. Foi o melhor tempo, cozemos o pão no forno que existia para esse efeito. Tínhamos rações, que o chefe distribuía se necessário. Éramos auto-suficientes para um mês… Volto ao pai e aos seus trabalhos. Num dia maquinou a peça, torneou, frezou e furou. Na montagem funcionou à primeira. Já não existem homens assim nos faróis, também já não existem faróis assim…hoje caem aos pedaços. Sem alma, automatizados…
Os russos ficaram agradecidos, tanto que nos encheram o barco de marisco, nunca tinha visto lagostas tão grandes nem lavagantes. Trouxemos não sei quantos maços de tabaco, um tabaco forte de fumo espesso, e vodka, uma quantidade de garrafas enorme, não trouxemos mais porque o barco não aguentava a carga. E eles lá foram. Levantaram ferro deram 3 buzinadelas e lá foram mar adentro. Mas tarde soube que os russos também tinham um foguetão chamado Sputnik que era para irem à lua…Não foram eles mas foi uma cadela a bordo. Estranha gente…

...Memórias d`um menino…

8 comentários:

Anónimo disse...

Adoro estes contos !
Espero por mais...

Abraço de uma amante do Mar

Elsa

Su disse...

gostei de ler.te
gostei
jocas maradas

isabel mendes ferreira disse...

bela a tua maneira de "contar"....



beijo presente.

______________-

I disse...

estas memórias mereciam ser passadas a livro

APC disse...

Como a memória é!...
Como TU és!...
:-)))

Anónimo disse...

Bom seguir as memórias...
jinhos

tb disse...

voltei para reler, agora aos olhos de uma nova luz (realidade). É bom. Como é bom entrar na história pela tua mão.
Gosto da tua forma de nos prenderes com a tua forma de contar...

apontinho disse...

Que belo conto!!!
Adorei!
bjs
:-)