domingo, junho 28, 2009

do desencontro IX...


( livro de contos)


...Sabe Armando, não tenho muito para contar da minha vida, digo, enquanto observo que todos me olham suspensos das minhas palavras. A mãe está reformada, embora ainda esteja ligada à faculdade, dedica-se a fazer conferencias e escreve artigos em revistas especializadas. O meu pai Morris, faleceu fez três anos em Fevereiro, também se tinha reformado. Quase não aproveitou a reforma, seis meses depois faleceu, repentinamente um AVC fulminante. Eu estava no mar, recebi por mensagem a notícia. Desde que sai de Lisboa passei quatro ou cinco semanas em Inglaterra, falo com a mãe por telefone por mail ou vídeo chat, estas coisas modernas que encurtam as distancias e disfarçam as saudades. No mar habituamo-nos a disfarças as saudades, só custam os primeiros tempos, depois a rotina entranha-se em nós, e estamos tão limitados ao espaço físico do navio que tudo o que ficou para trás em terra deixa de ter significado.
Entre os capitães existe uma rivalidade disfarçada, uma competição feroz que se sente. Os navios entram e saem dos portos no menor espaço de tempo, sempre a cumprir contratos e encurtar tempos. As companhias privilegiam os capitães que lhe dêem lucros e poucos trabalhos. Eu também ando metido nessas competições, digamos assim, até ter um estatuto de reconhecimento do meu valor como capitão a luta é tremenda. Às vezes penso que nada disto vale a pena porque num minuto o mundo se vira do avesso, ou a vida se transforma. A minha transformou-se meio ano atrás.

Então que se passou João Pedro? Pergunta dona Rosário com um olhar inquiridor. O menino casou? Abandonou os barcos?

Esboço um sorriso, e desvio o olhar, começo a sentir-me aflito, bebo mais um pouco de vinho para me acalmar.

Sabe dona Rosário de repente ganhei dois pais. Dois pais mortos.

Como assim interroga Armando surpreso? Como dois pais João Pedro?

É verdade. É por isso que estou em Lisboa, tirei umas férias por seis meses, uma licença sem vencimento. Á cerca de meio ano a mãe mandou-me uma carta para Sidney, só a abri umas semanas depois quando cheguei de viagem. Quando tenho o navio na Austrália se for perto aproveito e vou até casa, foi o que aconteceu, tinha um monte de correspondência sem interesse à minha espera e uma carta da mãe. Uma carta diferente. A falar-me da sua juventude em Portugal. A falar-me de um namorado um antigo amor. Um capitão da marinha mercante como eu, que, disse-me, é o meu verdadeiro pai. Morris casou com a mãe antes de eu nascer. Como calculam para mim foi um choque, mas ao mesmo tempo as respostas para muitas das minhas perguntas interiores. A minha ligação ao mar, o gosto pelas viagens, a aventura, o estar sempre de partida, o gostar de estar aqui em Portugal. Sempre fui inglês, aliás sou pelo registo de nascença, mas ao mesmo tempo inexplicavelmente sentia-me português, não sabia explicar, agora procuro as respostas. O meu verdadeiro pai faleceu há três semanas, vivia em S. Martinho junto ao mar num lar.
A vida é uma temenda data de coincidências que se passam em simultâneo. Muitas vezes não nos damos é conta do que se passa à nossa volta de tão apressados em querer viver.
O pai que agora vim procurar aqui em Portugal reformou-se na mesma altura que Morris. Tinha uma casa cá em Lisboa que vendeu, e existe uma no Porto abandonada onde viveu com a mãe. Amanhã estou a pensar ir ao porto rever a casa.

A mãe quando enviuvou, retomou o contacto com uma amiga de infância que lhe deu a morada do pai, então escreveu-lhe a contar da minha existência. Ao mesmo tempo também me escreveu a contar a verdade. As cartas chegaram atrasadas. O capitão Júlio recebeu a que era para ele quinze dias antes de morrer. Sei destas coisas porque me deixou um pequeno computador portátil com tudo escrito. Estava à minha espera. Sem saber de mim parece que me conhecia desde sempre. Surpreende-me em cada palavra que deixou escrita para eu ler. E depois o amor que teve pela mãe foi um amor universal e único. Nesse aspecto sem o saber acho que cometi os mesmos erros que o pai. Já não terão remédio, mas quem sabe o destino assim quis. Para mim tem sido difícil tudo, estas revelações que guardo, pois não tenho com quem partilhar, é a primeira vez que revelo porque cá estou. Mas afinal também não tenho amigos em Portugal, vocês são as únicas pessoas que conheço e recordo com amizade.
Portanto estou por cá a tentar descobrir as minhas origens, e a recolher os pertences do capitão que deixou em S. Martinho para levar para Londres.
Fiquei com uma mágoa não ter chegado a tempo de o conhecer pessoalmente. Por incrível que pareça não tenho uma foto dele. Espero encontrar alguma nos seus documentos mas não tive tempo de verificar.

A verdade é que ontem à noite estava no hotel, me deu uma vontade enorme de vir até cá de os rever, de rever a Laura, enfim entendem, acho quem não me portei da melhor maneira quando estava cá a acabar o curso. Fui embora quase sem me despedir sem uma explicação. Agora é tarde, mas como dizem por cá num dos vossos ditados populares mais vale tarde que nunca.

Tens razão João Pedro mais vale tarde que nunca, diz a dona Rosário, enquanto armando esboça um sorriso e termina o resto do vinho no copo.
A Laura está para chegar ai pelas duas e meia, falta pouco, entretanto vamos comer a sobremesa e se calhar ainda esperamos por ela para o café.

Bem, continuando, não me casei dona Rosário, e os barcos só os coloquei em segundo plano por uns tempos. Precisava de umas ferias, em seis anos quase não tive ferias. Sinto-me um pouco cansado. É tempo de fazer uma análise da minha vida, traçar novos rumos e objectivos. O capitão Júlio deixou-me uma pequena carta que me fez pensar, pensar muito, por isso estou aqui.
Somos interrompidos pelo som da campainha, e eu sinto um baque no coração, um estremecer no corpo, sei que é a Laura que está do lado de fora. A dona Rosário levanta-se e vai abrir. Espero, acho que o tempo neste espaço de minutos se demora propositadamente a passar. Escuto a voz de Laura a mesma voz que tenho de memória, levanto-me e Laura entra na sala com a mãe.

- Então João Pedro que surpresa! A mãe disse-me que estavas cá, quase não acreditava, não te imaginava em Lisboa.
Damos um abraço que me pareceu tão fugaz. Olhamo-nos olhos nos olhos e por momentos somos só nós ali. Laura está preciosa, uma barriga enorme, grávida, sorri enquanto eu a olho.
- Gémeos. Estou de oito meses João, vou ter um casal de gémeos, incrível não é. Tenho já uma Margarida com dois anos, ficou com os avós no norte, eu vim com o Carlos o meu marido e aproveitei para visitar os pais, mas tu és uma surpresa hoje.

Ainda não consegui dizer uma palavra, de repente sinto-me aliviado, invade-me uma ternura imensa, Laura está bem, sei que está, vi isso nos seus olhos, o brilho de felicidade, uma luz intensa, Laura tem uns olhos magníficos que me encantam, sempre soube disso, eu ficava momentos intermináveis a olhar os seus olhos, até se fartar e me chamar doido. Uns olhos grandes de um negro misterioso que cintilam como diamantes. De repente o desejo que eu sentia por Laura, as memórias, tudo o que lhe queria falar deixou de fazer sentido e eu sinto-me liberto de uma culpa confusa que deixei dentro de mim por resolver.

É verdade Laura sou uma surpresa hoje. A minha vida nos últimos tempos tem sido uma surpresa. Como estava em Lisboa vim à tua procura e dos teus pais, tive sorte pelo que me contas, em te encontrar hoje, tive sorte em muitas coisas hoje aliás. Já falamos sobre isso a tua mãe e eu.
Somos interrompidos pela Fernanda – vamos tomar café meninos. A Laura não toma café pois não?

Tomamos o café na biblioteca, a Laura tem que se sentar e lá estão mais confortáveis diz Rosário, os meninos tem muita conversa a colocar em dia e leva Laura com ela, vamos atrás eu e Armando. Fernanda serve o café em chávenas de porcelana finíssimas, nem sei porque reparo sempre nestes pormenores aqui, a pequena colher com cabo de prata lavrada, uma preciosidade rara nos dias de hoje. Armando trás uma garrafa de aguardente velha e serve-me um cálice. Provo, excelente, boa para rematar uma suculenta refeição, e o café saboroso intenso aromático. Tudo demasiado perfeito hoje. Parece que o tempo se dispôs a abrir a porta da perfeição, do paraíso e permitiu que eu pudesse durante umas horas usufruir desse paraíso dos sonhos imaginário. Laura sentou-se ao meu lado, sinto o cheiro do seu cabelo brilhante, ainda usa o cabelo longo pelas costas negro a contrastar com a pele morena, nota-se que é uma mulher feliz, que não ficou perturbada pela minha presença. Ainda bem. A sua ausência fez-me desejar um amor impossível que nunca aconteceu de verdade, criar expectativas irreais em mim, porque o tempo que é um carrasco de nós avançou sem mim. Fiquei parado à porta do tempo e ela lentamente fechou-se e transformou-se em memórias que só alimentam o cérebro e não nos deixam viver no tempo presente. Somos assim, capazes de viver em tempos diferentes ao mesmo tempo sem nos darmos conta, e quando damos esse mesmo tempo avançou sem nós e ficamos perdidos, desiludidos e velhos. Acho que foi isso que aconteceu com o capitão Júlio, vivia em dois tempos diferentes, e eu estava a seguir o mesmo rumo? Estou a tempo de corrigir.
Tinha no coração a preocupação de Laura estar presa ao mesmo tempo passado à minha espera, ainda bem que isso não aconteceu, vive no tempo presente, e no futuro que se avizinha. Espero que me conte, porque eu verdadeiramente tenho demasiado pouco que contar, um baú cheio de memorias e pouco mais. ...
(Continua...)


Fotografia de Barcoantigo em 2009