quinta-feira, dezembro 25, 2008

Do desencontro... VI parte



(livro de contos)


Vou para o hotel, está decidido. Falei com o Dr. Ernesto e todos os pertences do pai vão ficar aqui guardados, os mais pessoais, os livros vão para Londres para casa da mãe, eu também vou, quero com calma mergulhar dentro deles colher palavra a palavra a tentar conhecer este homem, a tentar conhecer esta parte da vida desconhecida da mãe. Agora vou para o hotel, levo o computador portátil do capitão. Mais logo pela noite no sossego da madrugada vou ver o que encerra, o que me deixou escrito, as pistas, ainda me parece que tudo isto é um jogo, uma espécie de jogo virtual do qual não sei as regras, onde não conheço os adversários. Tenho momento que penso, nada disto está a acontecer, depois dou-me conta que tudo é demasiado real, demasiado forte, demasiado grande para estar a acontecer agora. Mas está, acontece, por vezes demasiado rápido para o entendimento, por vezes demasiado lentamente. Espécie de filme de imagens paradas, fotograma a fotograma, uma nitidez impressionante de arrepiar, que assusta. Tudo aqui foi pensado para a minha vinda, tudo aqui foi pensado para a morte, tudo aqui foi pensado com tempo. Todo o tempo do mundo. Num repente um flash de luz na minha cabeça, foi isso, eu vi o livro pousado na secretária, marcado, um marcador em couro, uma tira com um monograma dourado, é isso o livro, “ Todo o tempo do mundo” instintivamente dirijo o olhar para lá, a secretária. O livro permanece no mesmo lugar, pego-lhe e abro na página marcada, um poema sublinhado, demoro a ler:

Espero-te ainda

Tu não sabes que do outro lado do mundo eu penso em ti
Que te sinto em cada batida do coração a ressoar por dentro dolorido
Que te desejo intensamente. Um vazio estremo
E que o olhar morre lentamente
As palavras dão á costa naufragadas na memória
E que já não tenho memoria do tempo dos amantes de uma noite


Não podes saber que as noites agora são sombrias
Os braços de luz do farol se apagaram
O rio secou assoreado nas lágrimas salobras
O mar recolheu a uma terra estranha
E a linha de costa
É uma beira-mar juncada de sargaço morto
E que eu estou aqui ainda
Sentado na beira-rio esperando por ti
Enquanto o frio me invade os sentidos
O mar se recompõe da noite longa e acorda em maresias de sal
A névoa se instala abraçando o mundo
E eu cego, tacteio o rumo que me afasta de ti
Espécie de suicídio negro na estrada

Tu não sabes
Da minha vontade de escutar a tua voz
De te sentir no olhar
De te amar outra vez
Tu não sabes porque és espécie de andorinha que partes
Porque o Verão é doido e parece Outono e te desnorteias
E assim inicias o regresso sempre
E eu fico aqui no outro lado de mim a olhar o mar na noite e o rio e a foz
E o farol apagado que me guiava até ti na lonjura da memória dos tempos…


Um poema que fala da memória dos tempos. Um poema a sentir-se a imaginar-se, quase um grito de desespero, estranho, a provocar um ardor por dentro. Folheio mais um pouco o livro e cai uma folha seca, esquisito, uma folha dentro de um livro de um homem do mar, agacho-me para a apanhar. Seca. Arroxeada. Parecia uma folha, não é, pego-lhe com cuidado, um amor-perfeito, é isso, a flor é um amor perfeito, pouso o livro e folheio a tentar descobrir onde estava, descubro a forma impressa na folha parda de papel, o lugar violado por mim, entro num espaço do tempo esquecido quase a medo, as palavras a bailarem vertiginosamente na frente dos meus olhos, quase um balanço brusco do navio. As palavras sublinhadas, e escrito a lápis em baixo uma nota de rodapé:

“Foste a flor mais perfeita, o amor-perfeito em mim, és ainda, só secas, só morres quando eu morrer em ti e tu em mim.
Amo-te Beatriz.”

Sinto-me a mais aqui, quase um ladrão a roubar os segredos, o lado mais íntimo do sentir, o pensamento, a emoção, o amor, não sei explicar o que sinto. Fecho o livro, levo-o comigo agora e o portátil, saio porta fora em direcção à porta principal, os corredores em silêncio na penumbra. Aqui o tempo passa demasiado devagar ou sou eu que me sinto a ficar sem forças, sem ar, um nó na garganta sufoca-me. Dou-me conta que este pai me fez sempre falta. Dou-me conta que sou como ele, cópia perfeita. Dou-me conta que foi isso que ele descobriu. Tenho de abrir o pc. Tenho de apanhar um táxi já e refugiar-me no meu quarto no hotel a ler. Vou ligar para a mãe a avisar que vou para Londres que levo os livros e os cadernos do pai, levo também o seu fato de capitão. O resto fica aqui guardado. Vou providenciar para que a casa do Porto seja arranjada de imediato, depois levo tudo para lá, e levo a mãe, quero regressar às origens, espécie de regresso ao ventre materno.

Estou meio doido com tudo. Depois vou fazer uma visita a uma pessoa, vou tentar que me receba. Espero que me receba. Não adianta telefonar-lhe que não atende. Não responde às mensagens, mas tem toda a razão, fui eu que fui embora sem uma palavra, éramos só amigos, eu pensava assim ela não, era amor que sentia, eu não sabia, não queria saber, fingia não querer saber não me queria prender, depois dei-me conta da sua falta em mim.
– Que porra! Fiz exactamente como o pai. Como pode ser possível? Como?
Tenho de mudar de rumo, tenho de traçar uma nova rota a aportar ao coração dela, lá é o meu porto seguro. Se me receber, se me quiser, se me amar. Se não tiver já o coração ocupado. Sinto um calafrio a percorrer a espinha, o meu corpo, uma espécie de choque eléctrico. Sou um homem parvo, nunca me tinha passado pela cabeça que ela pudesse ter o coração ocupado. Que pode ter o coração ocupado. Casada. Uma família e filhos. Sinto o mundo a cair em cima de mim. Os sonhos, espécie de castelos de areia a desfazerem-se nas ondas do mar furioso. O medo apodera-se de mim e o desassossego. Uma tristeza instala-se por dentro a minar-me as forças, um sobressalto. Acho que a perdi no dia que fui para o mar. No dia em que embarquei para a minha primeira travessia. Já passaram cinco anos meu Deus. Tão rápido o tempo. Tão voraz a girar.

O táxi deixa-me na porta do hotel. Não dei pela viagem de quase uma hora, saio a correr e subo as escadas como se uma matilha de lobos esfaimados estivessem quase a ferrar as presas em mim. Subo. E enquanto o elevador sobe ao oitavo piso tento acalmar, respiro devagar, pausadamente a desacelerar o coração descompassado. Como é possível nunca ter pensado. Como?
Abro a porta do quarto retiro o pc da mala de transporte e ligo. Enquanto se inicia, sinto um desconforto interior, o estômago a roncar baixinho com fome. Dou-me conta que hoje não almocei, não jantei, não comi nada. Olho as horas dez e doze minutos, pego no telefone e peço à recepção alguma coisa para comer aqui no quarto. O pc abre e inicia automático, uma imagem do por do sol no mar. Um único ícone no ambiente de trabalho. Clico em cima.
Lentamente abre uma pasta:

Carta do Pai Júlio para ti meu Filho

Estremeço, sinto-me num turbilhão de emoções. O mar assoma aos meus olhos, inunda-me a alma, afoga-me o coração.

Meu filho querido. Não estranhes ao ligar o computador esta mensagem assim. É propositada. No fundo eu sabia que virias. Que um dia virias à descoberta de mim, mas o corpo alquebrado pode não ter tempo para esperar o tal todo o tempo do mundo. Deves saber como é, um corpo velho como um casco de bacalhoeiro na última viagem, está meio carcomido pelo sal, encostado ao cais para morrer alquebrado, a ser engolido pelo lodo do rio, ou arder no inferno do fogo lentamente.
Chega de falar de mim. Esta mensagem que te deixo aqui neste pequeno computador ao qual me fui afeiçoando, e que me permitiu viajar pelo mundo nestes três últimos anos, tem cá dentro toda a história e as respostas que vinhas à procura. Estão aqui para o caso de te atrasares. De não apanhares um bom ventinho favorável. Em pequenas pastas arrumadas. Com tempo faz a viagem se quiseres, a descobrires quem está na origem das palavras.

Que digo eu, nem sei a tua ocupação ao certo. A tua mãe a minha queridíssima Beatriz escreveu-me uma carta que recebi faz pouco, atrasada, a falar-me de ti, a dizer-me que eras marinheiro. Não sabes a alegria que me dás saber-te marinheiro também. Vais entender-me porque os marinheiros têm a alma do mundo, o sangue dos oceanos a correr nas veias, o olhar do sol e da lua e dos vendavais. Vais entender-me.
Aqui encontras todas as respostas às tuas perguntas. Principalmente a explicação do amor que sempre senti pela tua mãe.
Único!
Puro!
Branco!
Como eu costumava dizer. Como se o branco fosse a cor a pintar o amor. Não sei. Acho que confundi a cor com a cor dos cascos dos bacalhoeiros daquele tempo. Pode ser isso.
A Beatriz na carta contou-me que tu fizeste como eu, que largaste a mulher que amavas e que partiste. Disse-me que estava a ver o mesmo erro em ti, uma espécie de alucinação do passado a repetir-se, mas que não te quis contar da minha existência. Que Morris era para todos os efeitos o teu pai de verdade, o único que conhecias. Ela fez bem, acho que sim. Mas agora peço-te que não cometas o mesmo erro que eu. Vai até onde te leva o teu coração. Se amas, segue o que ele diz. A tua mãe contou-me na carta que seguiste como eu o mesmo rumo. O mar, só o mar. Não faças isso! Se amas não troques o amor pelo mar, completa o amor com o mar, mas nunca o substituas. Olha o erro tremendo que eu cometi. Não o faças. Promete! Promete! Nenhum mar merece a troca do amor de uma mulher por ele. Nenhum mar, por mais que nos corra no corpo, por mais que esteja entranhado na pele. Nunca! O amor é insubstituível, e a saudade tão conhecida dos portugueses é um veneno que nos mata lentamente, nos suga a memória, nos embacia o olhar, nos tira o brilho, nos rouba as forças. Ficamos cinzentos, sombrios, assustadores, estranhos. É verdade meu filho, ficamos como lobos, lobos-do-mar solitários, sem alcateia, sem covil. À mercê de um tiro misericordioso que nos acabe o sofrimento. Os lobos são uma espécie protegida, assim o sofrimento será longo e penoso. O meu durou cinquenta anos, meio século de saudade e de ausência e de angústia. Fiquei com o coração avariado, destroçado completamente.
Estou cansado. Foge-me a vista, acho que agora posso dormir nos braços do mar finalmente. Se tu conseguisses imaginar o que me custaram estes cinquenta anos de solidão sem o abraço da Beatriz. Se tu conseguisses imaginar o doloroso que foi tudo. Saber que existias só agora tão tarde. Imaginar que nos podemos ter cruzado no oceano sem saber que éramos a mesma carne – Meu filho! Fico com o coração enorme no peito a dizer a palavra. Os olhos rasos de água ainda. Eu que pensei não ter já lágrimas. Mas estas são de comoção, de amor. São lágrimas verdadeiras de pai.

Promete que vais em busca do teu amor. Sei que irás. Eu sei que sim. Bastei eu para errar e para aprender com o erro.
Um homem do mar não erra duas vezes.
Ficas com as respostas.
A historia de amor sem amor nenhum que eu fui.
Um velho lobo-do-mar com o coração naufragado de saudade.
Dá um beijo à mãe, a minha Beatriz

Teu Pai Júlio

São Martinho, Novembro de 2007

(continua)

Fotografia de Barcoantigo em 2008

quinta-feira, dezembro 18, 2008

incomunicáveis...

Incomunicáveis


Incomunicáveis


Incomunicáveis !!!


Uma memoria cheia de ventos e de maresias que cabem num saco feito de velas rasgadas
Este sou eu
Um marinheiro fracassado, espécie de naufrágio em água revolta, fria, negra sem glória sem lembrança
Uma memória branca por dentro. Quem me mandou enfrentar as tempestades, se o coração vacila, o corpo pende curvado, a imitar a quilha alquebrada do navio que trago no coração.
Depois o sal
Sempre o sal
Espécie de cristal maravilha que faz bater o músculo vermelho
Depois a sede
Depois
Depois
Depois....

A morte
Ronda-me a morte.

Partiram as aves todas
O mar é um imenso vazio aos meus olhos
Onde estão as silhuetas dos barcos e as velas?
Partiram-se os mastaréus e as enoras agora são buracos sem fundo
Um barco sem mastros é como um corpo sem braços
Decepado
É isso que se respira aqui
Um decepar de memórias
Uma angustia

Renego-te. Vou pra sul !


João marinheiro, palavras ditas 2007

sábado, dezembro 06, 2008

Do desencontro...V parte


( livro de contos)

Volto á habitação do capitão Júlio percorrendo de volta os mesmos corredores, trago na mão o envelope. Não o quis abrir ali na frente do Dr. Ernesto, prefiro estar recolhido ali no seu aposento, o seu sítio. A minha cabeça fervilha de pensamentos. Em cada passada, em cada metro que venço a encurtar a distância ao quarto do Comandante Júlio, o meu corpo começa a ficar em alerta. Que trago nas mãos? Que papeis são estes. Que carta. que noticias? Afasto por uns momentos da ideia as perguntas. Traço um plano mental. Hoje vou arrumar todas as coisas e levar as importantes para o hotel, amanhã ou depois irei ao Porto, quero de novo ver a casa, depois vou para Londres ter com a mãe. Sim será o plano mais acertado. Organizar as coisas. Preparar tudo. Quem sabe estou a fazer um temporal para nada. Abro a porta. Olho de novo o pequeno quarto, abro a janela e sinto a aragem fresca a entrar, uma espécie de vento a saber a maresia. Fico a pensar. Que espécie de homem era ele para até nas pequenas coisas insignificantes nos surpreender sempre, como sabia que aqui desta janela o vento trás o sabor do mar, o cheiro do sargaço. Nunca vou saber a resposta. Não é importante já. Agora vou ler a carta, aqui na sua secretária. Isso o importante agora. Quero saber o que nos queria dizer. Tremem-me as mãos ao abrir a carta.
Duas folhas manuscritas a tinta azul.

…” Espero que me perdoes. Eu tenho quase a certeza que vais ser tu que vens cá à minha procura, senti isso quando recebi a carta da Beatriz. Com tempo vais saber as respostas todas. A tua mãe, a Beatriz vai contar-te tudo. Não é uma história bonita. Foi uma história de amor sem amor. Impossível, por erro meu. Fracassei no destino que escolhi. Não fui um bom namorado. Não fui um bom marido. Não fui, soube agora, um bom pai, isso não me perdoo. Peço-te é perdão pelos erros cometidos. Por nunca ter sabido da tua existência, pelo tempo que não tivemos. Pelo colo que não te dei, os mimos, os afectos. Tolda-se-me a vista como uma névoa quando penso em tudo o que poderíamos ter sido como pai e filho, e nunca fomos. Nunca te olhei, nunca escutei a tua voz, não sei rigorosamente nada de ti, e ao pensar nisso, metade de mim afunda-se num sorvedouro, um redemoinho de sentimentos. Fui um doido orgulhoso porque cedi ao orgulho em vez de ceder ao amor que tinha pela tua mãe, virei-lhe costas zangado por ela ter ido embora, iludi-me durante anos, iludi a minha memória, enganei o meu coração, tentei apaga-la, sem nunca o conseguir, eu sempre soube que era única. E quando regressei quase não reconhecia o meu Portugal, e depois era tão tarde, o tempo foi um carrasco que me aprisionou. Tive medo. Tive medo de ir à procura da tua mãe e ela não me reconhecer. Não me querer ver. Tive medo de ser rejeitado, e então fiquei por cá por Lisboa. Deixei a casa do Porto abandonada. Custava-me lá ir. Parece que a via sempre, a olhar-me, uns olhos acusadores. Deixei de olhar as pessoas frontalmente com o tempo, confesso. Deixei de me interessar pelas pessoas. Os barcos eram a minha paixão, foi por eles que troquei o amor, foi por eles que fiquei só, o coração amargurado de arrependimento. Mas já não posso voltar atrás ou reescrever a história. Depois vim para aqui para São Martinho e como já não tinha amigos fazia muitos anos ninguém deu pela minha falta.

Espero que me perdoes.

Não sei se vais ler esta carta no meu quarto, gostava que o fizesses, mas se o estás a fazer como eu penso, como eu pressenti que farias, olha então ao teu redor. Não são muitas coisas. Mas todas têm um lugar e uma história. Um tempo. Na secretária tens um pequeno computador, onde está tudo o que escrevi. Quero que o ligues Foi com ele que durante os últimos anos aqui neste lar substitui o mundo lá fora. As pessoas. Foi o meu confidente e companheiro dos dias felizes e dos dias tristes. As travessias longas e penosas. Os ventos ciclónicos e as calmarias. É teu. Aceita-o como uma forma de perdão, de me redimir da ausência. Dentro descobres que quase só escrevi a ausência, o amor ausente, a saudade. Não sou e não fui um escritor, ou um poeta do mar, como algumas pessoas me disseram. Pessoas com quem conversava por lá pela Internet. Fui um marinheiro de porto em porto como os barcos que comandava. Também tens aqui os meus livros e mais alguns pertences, são teus por direito, faz com eles o que muito bem entendas. Existe também uma conta bancária, tens tudo ai no computador, no banco tem instruções para quando os contactares. A Internet é prodigiosa, tratei de tudo por aqui para poder partir em paz.

Sei que já não posso esperar por ti, nem pela Beatriz, o meu tempo chega ao fim. Não julgues mal a tua mãe, fez o que achou melhor na altura. É uma grande mulher, eu compreendi o seu gesto e perdoei-lhe logo de seguida, mas o orgulho cega o coração e tolda-nos o pensar. A tua mãe na carta que recebi diz-me que tu também partiste para o mar que deixaste tudo e todos. No computador tem um texto pequenito escrito quase uma carta, a pedir-te algumas coisas, são uma espécie de lamentos sei lá, uma remissão dos pecados avalizados pela minha experiência, pelos meus erros. Lê com atenção e faz o que o teu coração te aconselhar.

Pronto agora já tens aqui as orientações todas. Perdoa-me mais uma vez não ter sabido cuidar de ti, de te ensinar a cresceres na minha companhia. O destino assim o quis.
Acabei também de escrever uma longa carta de despedida para a Beatriz, mais uma, confesso que lhe escrevi uma data de cartas que nunca enviei porque não sabia para onde enviar. Não sei porque o fiz, quando me dei conta era para ela que escrevia a fazer renascer a memória, a faze-la renascer na memória. Só a memória alimenta e produz e nos permite saber de onde vimos e para onde vamos, só ela. Comecei a escrever e publicar na Internet as palavras, acalentava a infantil ideia que ela a Beatriz ia ler e me encontrar, como se isso fosse algum dia possível. Todos os dias, religiosamente abria o computador no meu sítio a ver se ela lá estava. Nunca esteve.
Depois as palavras começaram a rarear em mim na mesma proporção que as forças se iam embora, e a vista, e o coração maltratado ia baixando o ritmo, baixinho cada vez mais. Hoje em que te escrevo as derradeiras e ultimas palavras quase não o sinto no peito a bater, amanhã ou depois pára, é como um velho motor sem concerto, fatigado.
Deixo-te mil abraços e beijos, para ti e para a mãe, a valerem todo o tempo do mundo.
Dá-lhe um abraço por mim.
Faz isso.

Teu pai

Capitão João Júlio

São Martinho, Novembro de 2007



Tenho as mãos a tremer e o coração apertado. Por uns momentos fecho os olhos e escuto o murmúrio do mar o som do oceano e compreendo as palavras dele e entendo a sua dor. Que espécie de homem era para me surpreender em cada descoberta, como sabia que eu iria aqui ler a sua carta. Não sei se tenho coragem de ligar agora o computador, ou o leve comigo para o hotel e depois de andar um pouco, de arejar as ideias, então sim o ligue e possa entrar no seu mundo de memórias.


Logo tenho de ligar à mãe a dizer que cheguei tarde, que o capitão faleceu. Que não cheguei a tempo de o abraçar. Agora sinto-me como um saqueador de naufrágios à espreita que os despojos dêem à costa. O coração amarfanhado também…
(continua)
Fotografia de Sofia Trincão 1997